Volume 1
Capítulo 51: O Plano Maluco
Tem vezes na vida em que tudo parece estar dando errado, onde até mesmo as menores coisas se tornam impossíveis. Era assim que San sentia. O amigo, mau e perto da morte, e sua salvação a passos de distância.
O problema dessa vez é o obstáculo desses passos. Um lobo do tamanho de uma casa, o pelo completamente escuro e dentes afiados, rondava o hospital, cuidando se uma alma corajosa decidisse sair, ou uma desavisada tentasse entrar.
Ocasionalmente, o monstro parava e encarava um ponto da esfera azul cobrindo o lugar, e, tomado por uma animação, usava suas garras assustadoramente afiadas para cavar.
Ao começar a fazer isso, rachaduras surgiam; contudo, mutantes apareciam em segundos, usando seus poderes o espantando, e por estarem protegidos, disparavam projéteis e habilidades à vontade.
San, olhando da janela de uma casa abandonada, prestava atenção aos detalhes, procurando uma oportunidade de entrar. Sua maior preocupação era, se de algum modo desse pra passar o monstro, daria para atravessar o domo? Afastava o lobo, incluía humanos?
Roendo as unhas a ponto de cair sangue, tentava bolar planos, considerando a velocidade do seu pequeno grupo, estado do amigo e essência sobrando.
Suas chances eram ruins, descansou por um tempo e gastando o mínimo necessário, ficou com quase metade de energia.
As garotas podiam correr, mas a condição de Leo era ruim, tremendo, delirando a cada poucos segundos e tendo espasmos.
As garotas, durante o caminho, aguentaram o choro, acreditando em San, porém, ao ver o monstro enorme, as arruinou, tirou toda a esperança.
Emma, a que sempre consolou a irmã, se isolou em um canto com o rosto entre os joelhos. Emile passava limpando as lágrimas, acompanhando Leonardo, tentando de todo jeito o ajudar, seja arrumando a posição ou falando com ele.
Enquanto San focava o olhar à frente, o som de passos veio de trás. Sem nem virou, sabia quem era, afinal de contas, o sentia.
Indo ao seu lado, falou:
— Nada… Tudo… Pego…
Assegurando pra não socar algo, xingou na sua mente. Havia mandado Garmir ir na loja no bairro rico que vendia armas bestiais. Se arrumasse uma armadura, ou qualquer ferramenta, poderia ter uma vantagem enorme.
No entanto, outras pessoas também tiveram essa ideia, o armazém esvaziado.
— As suas chances são baixas. — falou Sacro.
— Nem percebi. — A voz de San carregava amargura. — Uma dica?
Permanecendo quieto por um tempo, respondeu:
— É um lobo gigante, ficam distantes das cidades e vivem em florestas com árvores grandes. Tem garras afiadas, olfato apurado, audição melhorada e inúmeros dentes.
— Só isso?
— Bem, são rápidos, gostam de caçar e quando focam em uma presa, o perseguem até a sua morte.
— Tá legal, resumindo, uma máquina de matar.
As novas informações foram úteis, deram uma ideia inicial de um plano. Ficando levemente animado, San andou de um lado ao outro, melhorando o plano.
“Tá legal, é arriscado, altas oportunidades de morte e preciso de sorte. Em resumo, um dia normal.” Um pouco animado, esticou, alongou e aqueceu o corpo.
Juntando todos, contou o plano.
***
Em uma loja abandonada, onde um dia já foi uma cafeteira, San sentou em uma das cadeiras restantes. Usando uma camisa branca guardada no armazém, calças escuras rasgadas e preso à cintura, sua bainha. A cimitarra estava em cima da mesa, o sangue limpo e à espera de ser usada novamente.
Achando uma torneira funcionando, saciou a garganta seca e limpou o rosto sujo de sangue e poeira. As roupas cobrindo os machucados, o fazendo ter uma aparência levemente decente.
Como precisava esperar, San aproveitou e tentou invocar a máscara. Em um pensamento, a pulseira mudou de sólido para líquido, formando-se na sua mão. A aparência era a de sempre, sorriso e com uns chifres. A rachadura no meio consertada, nem dando sinal de um dia já ter quebrado.
Não pretendia usá-la, só a observou, imaginando o que aconteceria se sucumbisse aos sussurros, os entender seria ruim? Perigoso? Balançando a cabeça pra tentar tirar esse pensamento, embainhou a espada, levantou e foi até a porta.
Ao abri-la, a luz entrou, fraca, era o pôr do sol; em questão de minutos, a noite tomaria conta. Tentava evitar pensar nisso, as coisas só pioram ao entardecer.
Na calçada, caminhou nas ruas tranquilas, só o silêncio reinando. Virando à direita, viu o hospital, livre de monstros ou sinal de perigo.
Indo na direção, a passos calmos, olhava os lados, cuidando movimentos suspeitos.
Já vendo a entrada e pessoas dentro, encarou, esperando ser avistado. Quando o viram, seus rostos mudaram para desespero e correram do prédio.
Antes de gritarem avisos, o lobo saiu de trás de um prédio. Seus passos eram silenciosos, mesmo o tamanho enorme. Uma nova presa à mostra, correu animado.
San esperou, focado no problema à sua frente, o monstro correndo alegre, de boca aberta e prestes a chegar. Puxando o ar dos pulmões soltou um grito:
— O LOBINHO, VEM PEGAR ESSE LANCHE!
O som havia sido extremamente alto, sendo capaz ouvir de longe, e o monstro, tão perto e as orelhas de um tamanho grande, abaixou a cabeça e utilizando as patas as tampou.
Um humano normal realizar um grito tão alto seria impossível; resultado duma habilidade copiada de um garoto no meio da rua. San passou junto a Leo e deu um tapinha.
Balançando a cabeça violentamente, recobrou os sentidos e olhou o causador da sua dor, os olhos irradiando raiva. San, imediatamente ao gritar, virou-se e partiu em disparada.
Usando toda a força do seu corpo, correu como se a vida dependesse disso, porque dependia, e não só a dele.
Os bairros ricos têm pouquíssimos becos, por isso tentar despistar alguém seria difícil. Para sua sorte, os donos das lojas fugiram há tempos.
O lobo era maior e o tamanho das patas dava uma grande vantagem em uma caçada. Em segundos, o alcançou, já sentindo uma presença nas suas costas.
Virando à direita do nada, San ouviu um derrapar de garras. Avistando uma funerária, acelerou mais, dando de cara em uma janela grande, do tamanho do seu corpo, se jogou.
Rolando brevemente no chão, continuou a sua corrida, atravessando a recepção desolada e destruída, entrando nos corredores e ignorando os caixões vazios dentro dos quartos, procurou a saída dos fundos.
Faltando metros até a porta, um carniçal surgiu, vestindo um terno, a pele cinza e baba caindo no chão, de braços erguidos, querendo dar uma mordida no visitante.
San iria apenas desviar e passar. Sequer tendo tempo, um estrondo abalou a funerária inteira, derrubando os dois no chão. Tendo o pé puxado, chutou a cara do carniçal e foi até a porta, fugindo de volta à rua.
Passando a calçada, pensando no seu próximo objetivo, a besta explodiu de onde San tava, ultrapassando o teto e escombros, sujando o pelo e girando a cabeça freneticamente. Encontrando seu alvo, voltou a perseguição.
Sem a necessidade de forçar seu corpo, o monstro chegava facilmente perto da presa, abrindo a boca e notando o cheiro, focava somente no ponto à sua frente. Fechando a mandíbula, San pulou a tempo em outra janela, e os dentes atravessaram o concreto.
Jogado no chão, San arrastava o corpo pelos cacos de vidro, temendo a fileira de presas em cima da sua cabeça, mordendo tudo à frente. Conseguindo um espaço, agarrou uma cadeira e levantou, voltando a fugir.
***
Emma e Emile esperaram, tendo certeza do perigo estar fora de vista. Segurando com dificuldade o irmão, seguiram em frente até o hospital.
Olhando os lados, andavam apressadas, quase caindo e tropeçando. Garmir o acompanhava, exibindo os dentes e os pelos eriçados.
Ao menor sinal de perigo, ouviria e o combateria. Alguns passos de distância, um vulto foi em frente. O cão do inferno, atento, pôs à frente, rosnando.
Seu oponente era um bando de formigas, do tamanho de um animal grande, cercando os alvos. Garmir queria atacar de uma vez, o problema era as garotas; se saísse do lugar, elas seriam atacadas imediatamente.
A dúvida durou pouco; havia decidido, se necessário, morreria às protegendo. Por sorte, não precisou.
Uma onda de chamas cobriu as formigas, aniquilando-as facilmente. Em meio ao fogo, um homem apareceu, seus cabelos pretos voavam ao vento, a roupa simples de civil tendo partes queimadas. Aproximando, pegou Leo e as levou ao hospital.
***
Deitado atrás de um balcão, San recuperava o fôlego, o cansaço dominava o corpo inteiro; no menor sinal de ter sido descoberto, continuaria a correr.
O lobo era rápido e usava os prédios ao redor cobrindo seu corpo grande. San aproveitou e se escondeu dentro de qualquer local possível de entrar facilmente, irritando a besta soltando gritos enormes.
Após um tempo, tendo certeza de as garotas poderiam entrar, seu objetivo seria ir na direção semelhante. O problema foi o monstro ficar obcecado, o procurando numa ferocidade assustadora.
Engolindo em seco, só queria descansar, infelizmente, a parede foi destruída. Estilhaços foram jogados aleatoriamente e o teto aberto.
Ainda no chão, olhou pra cima, o monstro o encarava com uma ira avassaladora, indo com tudo, abaixou a cabeça tentando engolir a presa. Nessa hora, San pulou ao lado, tendo a pele raspando contra madeiras afiadas e pedras.
Recebendo uns cortes, o chão de madeira onde estava explodiu em estilhaços. Aproveitando a oportunidade de estarem perto, deu um segundo grito, usando sua essência o impulsionando.
O monstro se debateu, tentando dispersar o som irritante; nisso, usou a pata empurrando San. Sem espaço, desviar era impossível, sendo atingido na barriga e jogado contra uma parede fraca, caindo no meio da rua.
Rolando no asfalto e tossindo sangue, respirar era difícil, o sangue enchia a garganta atrapalhando, seu peito doía e a cabeça girava. Ajoelhando, levantou para cair no chão. O monstro, por outro lado, ergueu a cabeça, o vendo facilmente.
Prestes a dar um grito, foi incapaz. Sua garganta cheia de sangue, tossia constantemente. A passos lentos, o lobo vinha; sabia que a sua presa tava debilitada.
San só pôde encarar enquanto o motivo de morrer caminhava à sua frente, impossibilitado de criar uma distração, o corpo machucado e fraco. A boca repleta de dentes a centímetros do seu rosto, a ponto de cheirar o hálito de sangue, aceitou; dormir era seu único pedido. Já daria tempo das garotas conseguirem ir no hospital; o amigo seria tratado, e o mundo continuaria.
Fechando os olhos, esperou. Involuntariamente, sua mão esquerda, onde ficava a pulseira, moveu-se sozinha. Encostando no focinho do monstro, uma energia azul explodiu.
San sentiu toda a essência fugir do seu corpo; foi um dos tiros de energia na potência máxima, afastando a cabeça do lobo.
Energizado da chance de sobreviver e estar tão próximo, desembainhou a cimitarra e, forçando o corpo, acertou na pata da frente, cortando fundo.
Soltando um uivo enorme, cambaleou para trás até chegar em uma casa e se chocar contra. Sabendo tá acabando o tempo, San usou a espada de bengala e apressou o passo, indo longe.
Olhando os lados, procurou freneticamente algum lugar a se esconder. Pelo menos uma vez, a sorte sorriu; viu um bar conhecido, onde Emma trabalhava e deu uma lição no dono.
O seu estado era ruim e as janelas com grades de metal, então reuniu força nas pernas e impulsionou contra a porta de madeira. Arrebentando-a, caiu no chão. Gemendo de dor, levantou dificilmente o corpo machucado e a porta, pondo uma cadeira na frente.
Recobrando o fôlego, cuspiu o sangue no chão, até secar a boca. Apoiando-se numa parede, deslizou até o chão e descansou.
— Boa tática usar toda a sua energia. Melhor se arriscar com nada do que morrer cheio.
— …Realmente, uma boa tática, o problema é que não fui eu.
Ficando em silêncio, o relógio tentou entender e falou:
— Como assim? A sua mão disparou.
— Eu tava esgotado, já até havia aceitado. De repente minha mão se moveu.
Os dois ficaram quietos, Sacro considerando as teorias, San suas opções.
— Tem ideia do que pode ter sido? — O relógio perguntou.
— …A minha teoria é ter sido a máscara. O lance de maldição.
— Bem, se for isso, deve ser bom, salvou a sua vida.
San concordou em partes; afinal, tudo tem um preço. “Essa máscara é estranha, se eu pudesse, tacaria fora. Preciso descobrir mais dela.”
Balançando a cabeça, jogou esses pensamentos de lado; no momento, continuava vivo e precisava descobrir uma forma de manter. Retomando a perseguição, repassava parte por parte, pensando no motivo de ser encontrado.
Nessa hora, juntando as peças, talvez tenha descoberto. Tão rápido quanto teve uma ideia, se jogou contra o balcão destruído ao meio, procurou por um tempo entre as garrafas quebradas, cortando a mão.
Arranhando os joelhos nos cacos, achou uma garrafa de bebida e tirou a tampa. Sem hesitar, derramou sobre o corpo todo; no mesmo instante, se sentiu péssimo, ardendo e doendo.
Com os olhos arregalados e recuperando o fôlego, olhou pelas janelas embaçadas. Nessa hora, uma sombra apareceu, sem barulho ou sinal do dono.
Parado, saiu segundos depois. Sacro, aproveitando o tempo ganho, perguntou:
— O que acabou de acontecer?
— O lobo me achava rápido demais, estranhei, então me lembrei: seu olfato é apurado. Só fiquei nesse bar durante esses minutos, por eu tê-lo machucado.
— Verdade, imaginei ser a audição.
Com o silêncio reinando, finalmente pôde ter um tempo de descanso. Mas, tudo que é bom uma hora acaba. O monstro começou a destruir as casas ao redor, procurando sua presa, furioso.
Focando no som, tentou prever a distância entre eles. Após uma deliberação e um chute, imaginou ter uns minutos.
Forçando o corpo a levantar, foi até a porta dos fundos, onde por sorte, a chave ficou na maçaneta. Abrindo uma fresta, a noite já tomou espaço, sobrando apenas algumas luzes sobreviventes de postes.
Esgueirando na rua, escondeu-se entre pedaços de cimento quebrado. Continuando assim por um tempo, viu o hospital; suas pernas ameaçaram ceder.
Mantendo o foco, partiu em disparada, livre de essência ou algo que pudesse ajudar. Cambaleando a cada poucos segundos e tropeçando nas pequenas coisas, faltava uns metros.
No entanto, teve uma sensação estranha. Sua mente protestava, implorava, e a ignorou, a curiosidade dominou. Virando a cabeça, viu aqueles olhos vermelhos, o encarando no meio da escuridão; antes, era fome, agora, se tornou ira, uma tão grande onde só trucidando seu corpo resolveria.