Kapakocha Brasileira

Autor(a): M. Zimmermann


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: O reencontro

Talyra despertou novamente após uma boa noite de sono, naquela mesma casa de madeira. A luz do dia permeava a fina janela de vidro, iluminando as partículas de poeira que caíam ao chão.

A lareira estava apagada, e ela não via ninguém por perto. Fixou a visão para fora, conseguindo detectar a presença de Cálix, de braços cruzados — possivelmente segurando a bebê —, enquanto Vaia e o espadachim transportavam os corpos mortos.

A garota se levantou com muito esforço, apoiando-se nas paredes, até alcançar sua blusa e chapéu. Sua varinha ainda estava intocada. Talyra a segurou e olhou de perto, notando um pequeno livro de couro lacrado por magia, que pertencia ao seu pai.

Realizou um movimento leve de giro com a varinha diante do livro, desfazendo o lacre. Era seu bem mais precioso, já que continha uma coleção de magias convenientes, seus encantamentos por voz e movimentos da varinha — procedimentos vitais para realizar magia.

A maga folheou o livro, vendo diversas magias que a ajudaram na jornada até ali: magia de filtrar água, aquecer alimentos, camuflagem simples... Tantas magias incríveis, mas ela era incapaz de efetuá-las sem um guia. O livro era um lembrete desnecessariamente cruel de sua incompetência.

Magia de relâmpago simples. Magia de medição… Essa era especialmente complexa para a maioria dos conhecidos de Talyra.

— Ah! Magia de resistência ao frio — ela começou a ler as indicações escritas por seu pai. A caneta e a letra davam sempre um sentimento de familiaridade, um dos poucos benefícios de ainda abrir esse manuscrito. — “Para a auto-manipulação de aura, envolva o próprio corpo com a camada externa, invertendo-a e mantendo as partículas dentro de uma bolha. Isso irá agitá-las e aquecer uma fina camada invisível por fora da pele.” Heh, ele sempre sabia como economizar força mística.

No canto da folha, estava presente uma das anotações que seu pai fizera no livro. Ela dizia: “Já me falaram sobre uma piada envolvendo contatar uma pessoa e perguntar se sua jê ladeira é fria”. Talvez a garota descobrisse mais quando viajasse pelo mundo, assim como ele queria.

Talyra leu calmamente as instruções, seguindo cada passo com precisão e fidelidade. Após realizar o movimento final com a varinha, encostou-a na própria testa. Seu corpo se aqueceu, e o frio não incomodava mais.

A garota se retirou da casa, dando de encontro com os quatro, com a bebê sendo segurada por Lâmina, dessa vez. Ele e Vaia observavam Cálix rezando diante dos corpos cobertos por finas camadas de tecido. O jovem fez um agradecimento pelo uso das ataduras e comidas em conserva, levantou-se e sorriu para Talyra.

— Ah, Talyra! Você acordou — Cálix parecia contente com a recuperação da menina. — Já estamos nos dirigindo para Fajilla.

— Você parece de bom humor para estar no meio de tantos corpos — comentou Lâmina.

— A morte deles foi honrada. Aliás, sinto que uma de minhas bênçãos foi concluída durante a noite…

— Agora que estamos todos presentes aqui, gostaria de falar mais sobre a situação dos corpos: suas bocas estão pretas e suas línguas viraram pó. Os estados de decomposição estão semelhantes, o que significa que eles sofreram ao mesmo tempo — interveio Vaia.

— Nossa, estou impressionado! Como deduziu isso tão rápido, Vaia?

— Bom, se essa bebê realmente traz memórias de volta, eu espero que ela me responda. Tenho diversos conhecimentos médicos... e nem sei quando tive tempo de estudar…

— O que faremos agora? — perguntou Talyra.

— Bem, temos que deixar a bebê em um ponto de coleta. Se ela é o artefato em questão, vamos conseguir o que queremos como recompensa.

Mas isso ainda deixava algumas dúvidas na cabeça dos jovens. Se isso de fato era uma missão, por que a mulher que Vaia citou estaria atrás dela? Os indícios de luta no vilarejo conseguiam explicar que a mulher de fato caiu na casa onde a bebê estava. Contudo, ela foi embora sem razão alguma.

Não havia mais nada para eles ali. Apenas um campo nevado, sem risco de aparecerem monstros, em um vilarejo que seria esquecido pelo tempo. Cálix fincou uma estaca de madeira diante dos corpos enfileirados, como seu último símbolo de respeito aos mortos, antes de retornar a Fajilla junto dos outros.

 


 

Heinrich tinha acabado os preparativos do desembarque e estava extremamente cansado. Nenhum dos membros de sua tripulação sequer ousava incomodá-lo. Tirava um cochilo no sofá de sua cabine, tentando ter sonhos, mas tudo que conseguia pensar era naquele maldito jovem de cabelo rosa, suas falsas promessas e farpas provocativas.

“Não, não, veja bem, senhor Heinrich… A sereia com certeza vai aparecer amanhã.”

Era o que ele repetia sempre que era questionado sobre o dinheiro da viagem. O capitão tinha sempre problemas em cobrar passageiros que davam calote, mas Heinrich estava contente daquela forma — livre para viver pelos mares num navio cheio de bêbados imundos. Mas era livre.

Toc toc!

Heinrich ergueu a sobrancelha e virou sua cabeça para a porta, mas ignorou da primeira vez.

Toc toc toc!

Isso iria repetir-se mais uma e outra vez, até que Heinrich perdeu a paciência e se levantou do sofá, batendo os pés no chão. Tinha deixado claro que não queria ser incomodado durante a noite. E só haveria uma pessoa que desafiaria sua ordem.

— Aquele pentelho desgraçado!

Os passos de Heinrich eram ouvidos do outro lado da porta. Ele a abriu com força, fazendo um estrondo. Sem nem perceber quem estava diante dele, começou a gritar:

— Escuta, seu garoto infeliz! Eu não quero saber de você caso não tenha o dinheiro para a maldita viagem, tá me escutando?… — o tom de voz e o rosto de Heinrich murcharam o nota quem era a pessoa com quem ele falava.

Quase dois metros de altura, olhos azuis como o mar, cabelos louros como campos de trigo, um casaco preto de pele que sempre emitia um ar de ameaça. Ela segurava as costelas ensanguentadas enquanto encarava Heinrich. Sua boca estava roxa na parte da mandíbula, e ela tinha um corte aberto na perna.

— Jas… — Ele tossiu, recuperando a postura. — D-Digo, Conselheira Real Jasmyne.

— Capitão Cahrazan, é assim que trata uma velha amiga? — Mesmo com a falta de conduta por parte de Heinrich, Jasmyne ainda o olhava com um sorriso. — Se importaria que eu entrasse? Como pode ver, eu… não estou na melhor das condições…

Sua voz era ríspida e fraca, mas a Xamã tinha uma boa história para contar, já que Heinrich nunca ouviu falar dela se ferindo daquela forma.

O capitão, ainda com os olhos arregalados e o coração palpitando de vergonha, curvou-se diante de Jasmyne. Estava com o cabelo castanho solto e despenteado, a camisa desabotoada e a barba malfeita.

— M-Mas é claro! Entre, vou pegar algumas ervas para a senhorita… — disse Heinrich, coçando a nuca.

— Heh! Não precisa de tanta formalidade para ex-colegas, capitão Cahrazan.

Aquilo era um colírio para a vista de Jasmyne. Depois do que passou no vilarejo, teve sorte de encontrar um rosto conhecido na cidade próxima. Apesar de mal-humorado, Heinrich tinha fama de ser extremamente carismático com as pessoas que gostava.

Perseverante e corajoso, ele havia se aposentado do cargo de general há alguns anos e, desde então, vivia pelos mares, do norte ao sul do continente.

— Você esteve bem distante de Arquoia desde que saiu. Como esteve? — Jasmyne entrou na cabine e começou a remover alguns itens de sua bolsa de couro.

— Ah, bem, pra ser franco, é ótimo poder velejar por aí, ter as lutas de sempre contra monstros marinhos, mas… É solitário.

— Você não tem sua tripulação?

— Muitos deles são mercenários. Vêm em busca de dinheiro e morrem antes de o conseguirem. Mas, já chega de falar de mim. Como estão as coisas no reino, conselheira? A pequena Alessa e Sua Alteza, Zaltan, já devem estar bem crescidos.

— É, o Zaltan tá bem grandinho. Treinou bastante para se tornar um feiticeiro forte, porém tem andado estranho nos últimos meses… Já Alessa… — O sorriso de Jasmyne se esvaiu antes que conseguisse falar sobre Alessa. Ainda era difícil lidar com a perda.

Heinrich, sendo perceptivo, acabou se desculpando. Já sabia que a pobre coitada estava com uma doença rara e desconhecida, então apenas decidiu deixar o assunto morrer.

— Se importa se eu sujar o chão um pouquinho? Eu limpo depois — perguntou Jasmyne, relutando contra a tristeza que desabrochava cada vez mais.

— Ah, imagina. Mas, er… O que você vai fazer?

Jasmyne desarmou a pergunta de Heinrich com um “Nada de mais” antes de tirar um cantil de água e começar a preparar um ritual.

A Xamã colocou giz e pó de ametista dentro de um pilão e começou a amassá-los, fazendo uma pasta seca azul e púrpura. Após preparar a mistura, só restava o componente biológico do ritual: ela bebeu água do cantil e cuspiu no pilão, amassando os componentes de novo.

Heinrich nunca tinha visto esse ritual. Da última vez que vira Jasmyne, ela ainda era uma Xamã do segundo estágio. Seguindo a lógica da qual tinha conhecimento, Jasmyne estaria no quarto… mas, se sua única filha morreu…

“Ela retornou ao terceiro estágio…” pensou Heinrich.

— Sobre as ervas, não precisa, tá? Eu consigo cuidar disso sozinha — disse Jasmyne, colocando o dedo na mistura do pilão.

Ela começou a desenhar um símbolo ritualístico no chão da sala de Heinrich. Sua maestria no desenho era impressionante. Fez cada círculo, cada palavra de encantamento com grande precisão. Ao finalizar, colocou a mão no centro e disse:

— Ritual de quarta fase: Realidade de bolso.

— Sempre me impressiona como os rituais de terceira fase já são capazes de fazer algo assim…

— A evolução do xamanismo é praticamente exponencial, mas cobra bastante… — A voz de Jasmyne ficava trêmula a cada palavra.

O círculo azul se transformou em um portal brilhante. De lá, Jasmyne tirou algumas medicações e poções já preparadas, verificando se estavam dentro da validade ou em bom estado.

Ela limpou o pilão com a água do cantil e deixou os resíduos caírem dentro do círculo ritualístico. Após isso, começou a amassar os remédios e as poções, tomando tudo de uma vez.

— Se me permite: o que aconteceu? — questionou Heinrich, se aproximando de Jasmyne, ajoelhada no chão. — Estamos no Abismo Revolto, e você voltou agora que anoiteceu… Achou um monstro fora da cidade?

— Não, não foi nada… — Jasmyne se lembrou dos gritos e da bebê. A perda da filha pesava mais do que qualquer ordem de assassinato. Os ecos ficavam mais altos quanto mais ela se recordava da luta contra o líder da aldeia, e como o puro acaso foi sua razão de vitória.

De como fracassou durante toda a vida da filha…

Heinrich se aproximou mais, colocou a mão no ombro dela e sussurrou:

— Tem certeza de que não quer conversar sobre isso?

Jasmyne respirou fundo e se levantou diante de Heinrich. Seus olhos brilhavam em tons de azul e amarelo por conta das velas da cabine.

— Jas, eu… sinto muito…

Heinrich é interrompido pela Xamã o abraçando. A frustração dos atos de Jasmyne durante tantos anos, junto da perda da filha, causava uma raiva intensa. Ela rangeu os dentes e apertou o corpo do capitão com força, como se quisesse destruir os arrependimentos naquele ato. Heinrich sentia as lágrimas dela molhando suas costas enquanto ela chorava.

— O-Obrigada por estar a-aqui… snif

De alguma forma, Heinrich queria compartilhar a dor de Jasmyne. Ser uma Xamã significava andar ao lado da morte a todo momento. Ela já lhe contara sobre as dificuldades de lidar com os gritos das mortes que causava, apesar de não serem tão impactantes quanto agora.

Hoje, depois de muito tempo sem vê-la, ele enxergava como ela amadurecera. Mesmo pensando ser uma péssima mãe, Alessa mudou a vida dela. E Heinrich a deixou chorar, livrar-se das lágrimas presas por anos.

Mas… seria isso o suficiente para o perdão de todas as vidas que a Xamã tomou?

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