Volume 1
Capítulo 8: Faísca Que Murmura
O sol erguia-se entre as nuvens, recém-nascido no horizonte. Seus raios dourados atravessavam a névoa da manhã, iluminando suavemente a grama macia e ainda úmida do orvalho. Pequenas gotas de água deslizavam pelas pontas, cintilando brevemente antes de tocar o solo em silêncio.
Um pequeno roedor farejava entre as gramas, o focinho vibrando com cada aroma trazido pelo vento. Erguia a cabeça com cautela, deixando-se guiar apenas pelo faro. Movia-se devagar, esgueirando-se entre os fios verdes como se cada passo carregasse o peso da sobrevivência. Um erro poderia ser fatal. Estava atento. Cauteloso. Silencioso.
O pequeno animal avançava em direção à floresta, contornando uma velha árvore de raízes expostas. Eram grossas, retorcidas. Os galhos também se retorciam no alto, pesados, e suas folhas se desprendiam das pontas, sendo avoaçadas pelo sabor da brisa do vento.
Continuou em frente.
Nikki vivia mais um dia comum na floresta, colhendo folhas e frutas com a paciência de quem já conhecia cada trilha e aroma daquele lugar. Em sua mão, um pequeno punhado de frutinhas silvestres já se acumulava — redondas, vibrantes, algumas ainda úmidas do orvalho da manhã. Com cuidado, ele as depositava em sua bolsa de couro desgastado, como quem guarda pequenos tesouros.
— Ham! Achei você, companheiro!
O mesmo acabava de encontrar o que procurava — algumas folhas de um verde escuro intenso, com uma textura espessa e levemente rugosa ao toque. Recolheu algumas e levou-as ao nariz. O aroma era forte, penetrante — um misto de pimenta fresca com algo sutilmente adocicado, quase envolvente. Um cheiro que fazia o nariz arder de leve, mas deixava uma sensação curiosamente agradável no ar.
Atrás de Nikki, um arbusto começou a se agitar. O som de pegadas rompeu o silêncio — passos pesados sobre a grama úmida, acompanhados do farfalhar de folhas e galhos sendo arrastados. Algo, ou alguém, se aproximava pela mata.
— Que peste é essa, companheiro?! — murmurou para si mesmo, abaixando o tom de voz enquanto dava um leve passo para trás, os olhos fixos à frente. Estava atento. Apreensivo.
Algo atravessou os arbustos. E, para surpresa do velho, era apenas um pequeno roedor, que disparou apressado para fora da vegetação.
— Óia... É só um ratinho. Fiquei com medo à toa
De repente, os arbustos se abriram com violência. Em um movimento ágil e preciso, algo saltou da vegetação e abocanhou o pequeno roedor.
Era um lobo — mas não um lobo qualquer.
Sua pelagem era branca, quase albina, cintilando sob a luz filtrada da floresta. Imponente, era ao menos duas vezes maior que um lobo comum. Cicatrizes profundas cruzavam seu corpo como marcas de batalhas antigas, e uma, em especial, destacava-se: uma enorme cicatriz em forma de “Z” logo acima do ventre.
Horrorizado, Nikki testemunhou a cena que se desenrolava diante dele. As poderosas mandíbulas do lobo rasgavam a carne do roedor, seus dentes molares rasgando ossos e tendões.
O lobo encarava o velho com olhos de um azul glacial — frios, profundos, cortantes, que pareciam penetrar sua alma. Moveu uma das patas à frente, num gesto lento e preciso — estava a um instante de saltar.
Os raios de sol filtravam-se pelas copas das árvores, atingindo a face do lobo, marcada pelo sangue. Ele semicerrava os olhos, desconfortável com a claridade. Sem olhar para trás, virou-se e sumiu na escuridão da mata profunda.
— Gelei até a alma, companheiro... Nunca vi um lobo daquele tamanho. E um lobo nessa parte da floresta? Nunca ouvi falar de algo assim.
Nikki enxugava o suor frio que escorria por seu rosto. Seus olhos, antes trêmulos, agora começavam a recuperar a firmeza — embora a respiração ainda denunciasse o susto recente.
Sem querer testar ainda mais a sorte, girou nos calcanhares e partiu na direção oposta à criatura, seguindo apressado rumo à Cidade Sem Nome.
A floresta começava a se abrir. As árvores, tornavam-se esparsas, seus troncos altos e retorcidos se espaçando. E a umidade da manhã se dissipava com a mesma lentidão das sombras que se esticavam pela clareira. O chão agora mais árido e exposto, mostrava o desgastado terreno da terra esquecida. O caminho que se desenrolava à frente parecia menos um trilho natural e mais uma cicatriz, com raízes e pedras saltando para fora do solo.
O dia seguia morno na Cidade Sem Nome — silêncio absoluto. Nenhuma carroça cruzava as ruas empoeiradas. Nenhum hóspede nas casas, nenhuma voz ecoando pelas vielas.
Zero movimento humano.
Exceto por Nikki.
Olhava com atenção para cada canto da rua de terra, deserta, absorvendo cada detalhe do cenário com uma calma quase reverente. O vento leve bagunçava sua barba, e ele deixava que o ar fresco da manhã se infiltrasse em seus pulmões.
A rua vazia, o céu azul brilhante, o som suave de seus próprios passos — tudo isso o fazia sentir-se vivo de uma forma simples, mas imensurável.
— É um sentimento tão nostálgico, eu amo isso.
O mesmo se aproximava da porta de sua loja e a abre com cuidado, o som da madeira raspando no batente reverberando pelo ambiente vazio. Ele entra, deixando a porta se fechar lentamente atrás de si, e, com gestos precisos, coloca a bolsa ao lado direito, no chão, perto de uma das prateleiras.
Nikki caminhava em direção aos fundos de sua ferraria, o aroma acolhedor do caldo de feijão preenchendo o ar e criando uma atmosfera reconfortante. A panela borbulhava no fogão, exalando um cheiro convidativo. Ele se aproximou, mexeu o conteúdo com uma colher de madeira, adicionou as folhas que havia colhido mais cedo e, por fim, um toque de sal, ajustando o sabor com cuidado.
No entanto, o cenário pacífico foi bruscamente interrompido por um estrondo alto que ecoou do lado de fora da loja. — O som reverberou com força, como se algo pesado tivesse sido derrubado no chão. Nikki franziu a testa, o coração disparando em seu peito. — O que poderia ser isso? Ele apagou o fogo com rapidez, deixando o caldo de feijão repousar na panela, ainda fumegante. Com um movimento ágil, dirigiu-se até a porta. — Seus passos firmes ressoaram no chão de madeira, quebrando o silêncio pesado do ambiente.
Quando a porta se abriu, Suu-Yuky e Greg estavam do lado de fora. — Ambos se esticavam, alongando os braços com esforço. Os troncos caídos ao lado da criatura ainda exalavam o cheiro forte de terra e madeira, e o suor escorria por suas peles, manchando as roupas um pouco gastas e sujas de poeira. Nikki, ao identificar quem estava ali, saiu da ferraria, os olhos arregalados em surpresa.
— Companheiro, você conseguiu! — disse Nikki, ainda tentando processar a informação.
Greg se aproximou de Suu-Yuky e, com um sorriso largo no rosto, passou o braço por cima do pescoço dele, fazendo um sinal de ‘dois’ com a mão.
— Na verdade, ele teve uma ajudinha minha, você sabe... — Greg disse, cheio de si, seus olhos quase cintilando de orgulho. — Greg Magno, o ‘Gatilho de Agulha’, o caçador de recompensas famosão. Não dou chance para as invejosas!
Enquanto Greg continuava a se gabar, Suu-Yuky, com um gesto impaciente, retirou o braço de Greg de seu pescoço. Seu olhar estava mais cético do que divertido, e uma gota de suor desceu de seu rosto, traindo um leve constrangimento pela cena, como se estivesse com vergonha alheia.
— Quem é você mesmo, companheiro? — retrucou Nikki, colocando a mão no queixo, a expressão curiosa, como se tentasse decifrar a presença do rapaz. Seu olhar se fixava em Greg, como se estivesse tentando lembrar onde já havia ouvido falar dele.
A feição de Greg desabou ao ouvir a pergunta. Ele ficou em silêncio por um momento, com os olhos decepcionados.
— Mas, companheiro, era para você só matar o bicho; não precisava ter trazido ele aqui. — disse Nikki, seu olhar fixo no grande corpo do monstro, os olhos ajustando-se à cena inusitada diante dele.
— E como eu te provaria que tinha matado o bicho? — indagou Suu-Yuky, cruzando os braços curioso com o comentário.
— Deixa para lá, companheiro. De qualquer forma, você o matou.
O velho coçou a barba, ainda tentando entender o raciocínio de Suu-Yuky. Em seguida, voltou o olhar para Greg, intrigado com a presença do jovem.
— Inclusive, prazer em conhecê-lo, companheiro Greg! Meu nome é Nikki Inácio! — Nikki então abriu um sorriso largo, quase radiante, e estendeu a mão para um aperto.
— Prazer em conhecê-lo, camarada Nikki! — disse Greg, aproximando-se com um sorriso fervoroso. Ele apertou a mão de Nikki e a balançou suavemente.
De repente, os olhos de Greg se estreitaram. Ele notou o brilho do metal refletido por um raio de sol que saía pela porta aberta atrás de Nikki. Seu semblante se iluminou. Seus olhos brilharam de entusiasmo, como se tivesse descoberto algo fascinante.
Ele adentra a loja.
— Caramba! Isso é inacreditável! É tudo de ótima qualidade aqui. Foi você que fez, senhor Inácio? — exclamou Greg, os olhos brilhando de admiração enquanto observava cada detalhe meticuloso dos itens na loja.
— Hehe. É o que todos me falam, companheiro! — respondeu, fechando os olhos com um sorriso de satisfação. Ele cruzou os braços, claramente orgulhoso de suas criações.
— Ou exibido, você não tem educação, não? Nem perguntou se podia entrar... — murmurou Suu-Yuky, lançando um olhar de descrença para Greg, claramente incomodado com a atitude do rapaz.
— Tá tranquilo, companheiro. Quase ninguém bate na porta mesmo... — disse Nikki, com uma risada suave, tentando suavizar a situação e reconfortar Greg.
Greg, sem se abalar, deu alguns passos em direção a Nikki enquanto retirava o revólver do coldre com destreza, o movimento fluido e preciso.
— Ei, senhor Inácio, você é um ferreiro bem habilidoso. Quero te propor um trabalho um pouco diferente! — o jovem ergueu o revólver, segurando-o pelo cano, e com um sorriso singelo, disse: — Conseguiria fazer a manutenção desta belezinha?
— É claro, companheiro! Por um bom preço, sou capaz de fazer qualquer coisa... Ou quase qualquer coisa. — ele começava a esfregar as mãos com entusiasmo. Deu uma risadinha contida, o olhar afiado analisando Greg de cima a baixo, como quem avalia uma mercadoria rara.
— Então está combinado! Negócio fechado! Vou deixar meu revólver com você. Cuide dele com carinho. — disse, com um sorriso decidido. Sem hesitar, estendeu a arma com as duas mãos, oferecendo-a ao velho como quem entrega algo precioso.
— É o seguinte... Vamos começar por aqui... — O sorriso de Greg refletia o mesmo entusiasmo de Nikki. Havia uma energia viva em seu rosto. O corpo inclinando-se sutilmente para frente, pronto para começar a falar sobre as melhorias.
— Ei, vocês dois! — interrompeu Suu-Yuky, cruzando os braços com impaciência. — Legal esse papo todo aí, mas… e o nosso trato, hein? A espada já está pronta?
O olhar dele pousou diretamente sobre Nikki, cortante e exigente. Ele congelou por um instante. Seus olhos piscaram com uma lembrança súbita, e o sorriso que brotou em seu rosto foi forçado, quase infantil. Pequenas gotas de suor começaram a se formar em sua testa.
— Hehe… é verdade, companheiro. Mas, veja bem… o carregamento de ferro que deveria ter chegado há dias... — o mesmo deu um risinho nervoso e coçou a nuca. — Então… não chegou. Aí acaba que eu não tenho material para prepará-la, hehe.
— Ah, é mesmo... Eu tinha até me esquecido. O carregamento de ferro foi roubado por uma gangue, ou algo do tipo. Fui contratado para rastreá-los. — Greg deslizou o revólver de volta ao coldre com um movimento preciso. Seu semblante, até então despreocupado, assumiu uma expressão mais dura, revelando que o assunto era mais sério do que deixava transparecer. O silêncio que se seguiu carregava uma tensão quase palpável.
— Companheiros, agora que me veio à mente! Permitam-me mudar de assunto, só por um instante! — Nikki os interrompeu de súbito, Havia um brilho inquieto em seus olhos.
— Hoje de manhã, enquanto eu estava na floresta, vi um lobo… mas não era um qualquer. Ele era enorme, era o maior que eu já vi em toda a minha vida. Era branco e tinha olhos assustadores. E o corpo... coberto de cicatrizes. Mas havia uma em especial, bem visível: uma cicatriz grande, em forma de “Z”, acima de seu peito. Você já viram algo assim?
Suu-Yuky e Greg permaneceram em silêncio por alguns instantes, pensativos. O peso da informação de Nikki parecia não encontrar eco em suas memórias. Após alguns minutos, ambos responderam quase ao mesmo tempo, com tons igualmente vagos:
— Infelizmente, nunca ouvi falar de nada parecido — disse Greg, balançando levemente a cabeça.
— Não... nada do gênero. Só vi lobos comuns até hoje. Por quê? — completou Suu-Yuky, franzindo o cenho, ainda tentando puxar algo da memória.
Nikki soltou um suspiro discreto, quase resignado. Seus ombros cederam levemente e os olhos se tornaram vazios, como quem esperava uma fagulha que não veio. Sua expressão se fechou num desapontamento silencioso.
— Ah... então deixa pra lá — murmurou Nikki, enquanto seu semblante ficou um tanto intrigado
O silêncio voltou por um momento, mais pesado agora. Suu-Yuky baixou a cabeça, e sua feição endureceu. Um ar de frustração tomou conta de seu semblante.
Ele então ergueu o rosto, fitou Greg com firmeza, e deu um passo à frente. Tocou o ombro do companheiro com determinação e disse em voz firme:
— Greg... se você sabe onde esses bandidos estão, vá na frente. Me mostre o caminho.
Greg o encarou por um segundo. Um sorriso espontâneo brotou em seu rosto, não de escárnio, mas de genuíno entusiasmo.
— Vai ser um prazer enorme chutarmos as bundas deles juntos! — respondeu, quase rindo.
Sem esperar mais, Greg se ajeitou e partiu em passo acelerado, a empolgação visível no andar. Suu-Yuky o seguiu de perto, o olhar fixo no horizonte, determinado.
Mas antes que desaparecessem de vista, a voz de Nikki os alcançou às pressas, desesperada:
— Companheiros! E o que eu faço com esse bicho?!
— Se vira! — gritaram os dois em uníssono, sem parar de correr.
Eles seguiram para o leste, sob um céu claro e um sol que já estava no ápice do meio-dia. À frente, a floresta se adensava, com árvores altas, de troncos grossos e folhas escuras que abafavam a luz.
O som dos passos sobre a terra úmida e as folhas secas se misturava ao farfalhar leve da vegetação. O ar ficava mais frio e úmido à medida que avançavam. A luz diminuía gradualmente, e as sombras das árvores tornavam difícil distinguir o caminho. Pouco a pouco, os contornos de seus corpos se apagaram entre os troncos, até desaparecerem por completo na escuridão da mata.
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