Infernalha Brasileira

Autor(a): San


Volume

Capítulo 13: Promessa a Cumprir.

 Ao alcançar o ponto mais alto da catedral, Hexoth deparou-se com a visão sombria do ritual de execução que aguardava Kagura. Uma enorme pira erguia-se, coberta de montes de palha aos pés, e uma imensa lança vermelha com círculos mágicos de fogo adicionava um toque sinistro à cena. A visão era assustadora, rivalizando com a carbonização que Hexoth testemunhara há centenas de anos.

— Então, você conseguiu chegar até aqui... É verdade como dizem: se quer um trabalho bem feito, faça você mesmo. — Klaus murmurou, postando-se diante de Hexoth, moldando uma espada gigantesca a partir de uma pequena esfera de metal.

— Senhor Klaus... Quem é...? — A voz da garota amordaçada quebrou o silêncio, expressando confusão diante do que estava acontecendo.

— Esse é...

— Kagura! — Hexoth avançou na direção da garota, sendo rapidamente bloqueado por Klaus.

— Este é o demônio que te amaldiçoou, pequena flor...

 Quando os olhos de Hexoth encontraram os de Kagura, lágrimas brotaram. Os longos cabelos brancos e o formato do rosto da garota eram idênticos aos da elfa em seu quadro, Hen. Kagura exibia uma enorme confusão em relação ao Orc, acompanhada por uma sensação profunda de familiaridade percorrendo seu corpo.

— Senhor...?

 Klaus forçou Hexoth a recuar, levando o combate para longe da garota. Enquanto Klaus atacava com calma e precisão, Hexoth desferia golpes desordenados, agindo impulsivamente e sofrendo ferimentos em quase todo o corpo.

— Sai da minha frente, Klaus! — gritou ele, aumentando o tamanho das lâminas em seu corpo.

— Que aparência deplorável... Digna de um mentiroso como você.

— Saia!!!

 A cada golpe de Hexoth, recebia um contra-ataque, resultando em uma série de ferimentos. Cada corte que sofria gerava uma nova espada da ferida, transformando sua aparência em algo cada vez mais abominável.

— Mal posso acreditar que ela morreu por causa de alguém como você... e agora outra pessoa pura e inocente vai ter o mesmo destino…

— Cale-se! — As lâminas de Hexoth foram lançadas na direção de Klaus, que habilmente as desviou, guiando sua própria espada com maestria. — EU NÃO PERMITIREI QUE ISSO ACONTEÇA NOVAMENTE! — Quanto mais Hexoth expressava sua ira, mais espadas emergiam de seu corpo, dilacerando parte da catedral ao redor. Destroços voaram em todas as direções. Klaus recuou, cortando os destroços em seu caminho enquanto bloqueava os ataques de Hexoth.

 Dominado pela fúria, Hexoth colocou suas mãos no chão como um animal selvagem, saltando em direção a Klaus, que lutava para proteger a pira e se esquivar dos golpes selvagens. Klaus se posicionou defensivamente diante da enorme fogueira, suportando os violentos golpes de Hexoth.

— Tsc… Brilhe e parta meu inimigo ao meio, Corte Luminoso! — Um clarão encobriu a visão de Hexoth, e seu corpo foi dividido ao meio em um instante. — Você é desprezível, dizendo que vai proteger essa jovem, quando foi você quem a amaldiçoou...

 Uma sombra apareceu no ombro de Klaus, carregando uma mistura de rancor e tristeza no ar, tornando-se quase palpável.

— Isso… Mate… Mate aquele que selou o destino dessa jovem flor... — sussurrou a sombra, acariciando o rosto de Klaus.

— Sim… É para isso que eu vivi todos esses malditos anos!

— Exatamente… Hahaha…

 Ao ver a sombra pairando sobre Klaus, uma avalanche de emoções atingiu Hexoth: raiva por não cumprir sua promessa, tristeza por não salvar seu melhor amigo do abismo, medo de não seguir o caminho que defendia e, principalmente, a angústia de perder tudo novamente. Essa explosão de sentimentos regenerou suas feridas e o fez perder o controle.

— SOLTE O MEU AMIGO! — Hexoth lançou rapidamente uma lâmina, dissipando a sombra, mas não sem que ela proferisse um riso sinistro.

 Os olhos de Klaus se arregalaram, uma mistura de raiva e tristeza tomou conta dele. Não foi o desaparecimento da sombra que o enfureceu, mas sim o sangue verdadeiramente derramado. A lâmina de Hexoth atravessou a sombra, continuando até atingir o frágil ombro de Kagura.

— Não… Não! — Hexoth despencou ao ver o que causara. Sua fraqueza estava estampada no rosto ao ferir a pessoa que jurara proteger. Kagura suportava a dor, com seu vestido agora manchado de vermelho.

— Eu… Eu não que… — Antes que Hexoth pudesse responder, sua própria forma foi dividida ao meio, junto com as espadas que emergiram de suas feridas.

— Meu erro foi pensar que você ainda tinha um resquício de humanidade… — Klaus chutou Hexoth, fazendo-o cair completamente.

 Ao tocar o chão, todas as falhas de Hexoth atingiram sua mente como um tsunami. Ele falhara em proteger quem amava, em salvar seus seguidores, em resgatar seu amigo, em cumprir sua promessa e, agora, falhara como pai. Uma tristeza avassaladora substituiu todos os sentimentos em seu peito.

 "Parece que falhei novamente, Hen… Cheguei tarde demais...", pensou, perdendo a consciência.

 "Hexoth…", disse uma voz doce como um campo ensolarado.

 Enquanto Hexoth lutava para manter a consciência, pequenas esferas de luz surgiram ao seu redor, as mesmas que o guiaram até Kagura pela primeira vez. Outras esferas apareceram, cercando Hexoth.

 Em segundos, as luzes o envolveram, levando-o ao mundo da Maldição Demoníaca.

 "Consuma! Consuma tudo e todos!", gritava o olho acima de Hexoth.

— Como eu...? — Hexoth procurava respostas ao seu redor, mas as luzes o inundaram, devolvendo-lhe a consciência.

 "Ainda não é tarde... Não deixe essa coisa tomar você, Hexoth!", ecoou a mesma voz de antes.

 "Proteja! Proteja todos!", repetia o olho demoníaco.

— Eu... Tenho que proteger... — disse Hexoth, retomando sua forma demoníaca.

 De repente, uma mão segurou o braço de Hexoth, trazendo-o para a sanidade. Ele sentiu uma onda de emoções invadir seu peito. Ele não podia acreditar que estava vendo e ouvindo a Hen novamente. Ele a amava mais do que tudo, mesmo se culpando por sua morte.

— Hen… me perdoe. Eu não consegui te salvar. Eu não te protegi. Eu fui uma péssima pessoa — disse Hexoth, exitando ao se aproximar.

 “Não diga isso, Hexoth! Você foi o melhor marido que eu poderia ter. Você me protegeu o máximo que pôde, você me fez feliz todos os dias”, falou Hen, consolando-o.

— Mas… mas eu te perdi, Hen, e agora eu vou perder a Kagura também — falou Hexoth, desesperado.

 “Não, Hexoth. Você não vai perder a Kagura. Ela é a nossa pequena, e ela precisa de você. Ela é a sua espada, e você é a dela. Você consegue fazer isso!”

 Hexoth sentiu uma nova energia percorrer seu corpo. Ele se lembrou de todos os momentos felizes que teve com Hen e da tristeza no rosto de Kagura. Ele se lembrou do amor que sentia por elas. Ele se lembrou de quem ele era.

— Você tem razão, Hen. Eu vou lutar… Eu vou lutar por você, e pela Kagura. Eu vou lutar pela minha vida. — disse Hexoth, determinado.

 “Eu sei que vai, Hexoth. Eu estou orgulhosa de você. Eu te amo” disse Hen, beijando-o.

— Eu também te amo, Hen — disse Hexoth, retribuindo o beijo.

 Um clarão envolveu o mundo vazio, rapidamente Hexoth saltou na direção do olho, desviando das lâminas criadas pelo mesmo, e por fim, o partiu em dois com uma linda espada, diferente de todas que já havia criado.

 Com a morte do demônio, o clarão se desfez, revelando um imenso gramado florido com um céu azul. Ao atingir o chão, Hexoth contemplou o mundo que criara, orgulhoso. Ao se virar, se deparou novamente com sua amada, que esteve ao seu lado mesmo depois da morte. Quando seus olhares se cruzaram, ambos sorriram, sem dizerem uma única palavra.

 No plano real, o corpo de Hexoth desencadeou uma explosão de luz arco-íris, envolvendo o céu inteiro em torno da majestosa catedral. Sua forma revitalizada apresentava uma metamorfose marcante, abandonando a figura amedrontadora e espinhosa por uma aparência natural, adornada por vestes brancas resplandecentes que realçavam sua beleza original. Empunhando com graciosidade uma espada magnífica, completamente tingida na tonalidade das pétalas de lótus, que compunham sua guarda e empunhadura, a lâmina revelava uma fusão de florete e espinhos de roseira, exibindo uma forma de parafuso única.

Henkagura… — murmurou Hexoth, concluindo a conjuração de sua arma.

 A visão da transformação de Hexoth paralisou Klaus, que, perplexo, observava o desdobramento diante de seus olhos. Ignorando a presença de Klaus, Hexoth dirigiu-se a Kagura, cuja consciência mal resistia à intensidade da dor.

— Perdão... Eu não cometerei mais esse erro, pequenina… — As palavras de Hexoth precederam o toque delicado no ferimento de Kagura. Em vez de dor, a sensação de um abraço celestial envolveu Kagura, curando suas feridas. Hexoth, com destreza, rompeu as cordas que a aprisionavam. — Você está segura agora...

 A fúria contida de Klaus explodiu quando empunhou sua espada em direção a Hexoth. —Solta ela...

— Klaus... Acabou. Não precisamos lu...

— Quieto, demônio! — Klaus avançou, desferindo uma chuva de ataques, mas todos falharam. — Você não estava lutando com tudo desde o começo então…

— Argh… Você realmente vai com tudo até o fim… Olha, eu não tô magoado com você ou coisa pare… — Hexoth tentou acalmar a situação.

— Como se os sentimentos de um demônio importassem! — Klaus persistiu na fúria, continuando sua série de ataques.

Hexoth, com maestria, protegia Kagura com uma mão e empunhava sua espada Henkagura com a outra, bloqueando alguns ataques de Klaus e esquivando-se de outros, impedindo-o de se aproximar de Kagura. Então, movendo seu braço, Hexoth desencadeou uma explosão de luz imensa, arremessando Klaus contra a parede. O impacto tremendo despertou Kagura, confusa sobre o que estava acontecendo.

— Argh! Seu… — Klaus mal conseguia se manter de pé.

— Acabou, Klaus…

— Nada acabou! Nada! Você sempre é a causa dos problemas! Você virou um demônio e a Hen foi queimada por isso! Você amaldiçoou a senhorita Kagura e ela vai ser executada por isso! Você tem ideia do que essa garota passou?! Toda a dor que ela aguentou aceitando o próprio destino!

— Senhor Klaus… — Os olhos de Kagura esmoreceram, lágrimas escorrendo.

 Hexoth, mantendo-se em silêncio, baixou a cabeça, consciente de seus erros, mas decidido a não deixar que seus entes queridos fossem tirados dele.

— Não… Você não faz ideia! Eu vi a vida toda dessa garota, ela nunca reclamou da dor que sentia, nunca contrariou um superior, sempre aceitou essa dor calada… Todos esses anos, eu implorei para que ela fugisse, e tudo que ela me pediu foi que eu fosse o executor de sua morte… Eu não vou deixar aquele que a amaldiçoou levá-la para Deus sabe onde! — Klaus, com grande esforço, levantou-se, apontando sua espada para Hexoth enquanto liberava uma quantidade avassaladora de mana no ar.

 Hexoth se abaixou para que Kagura pudesse tocar o chão e, em seguida, empunhou sua espada com as duas mãos. — Pra trás, pequenina, as coisas vão ficar difíceis.

 Kagura aproximou-se de Hexoth, cutucando sua cintura. — Por favor, não machuque o senhor Klaus. Ele não é uma pessoa má

 Um sorriso irradiou o rosto de Hexoth, mal conseguindo conter sua própria felicidade. —Tsc, você é idêntica à sua mãe…

 Ao som dos sinos da catedral, a meia-noite ecoou por Airobolg, anunciando o desenrolar dos acontecimentos. O corpo de Klaus sofreu uma transformação, com a pele avermelhada, uma auréola surgindo em sua cabeça, cabelos loiros, olhos totalmente negros e um par de asas brancas emergindo em suas costas.

— Coração Angeli…

— No jardim das sombras, onde a noite domina. Um feitiço de luz, na treva lhe ordena. Lâminas que cortam a escuridão densa. A Lótus resplandece em sua presença… Desabrochar!

 Antes da transformação completa de Klaus, a visão de uma lótus desabrochando veio à mente, uma cena tão bela que o fez chorar, trazendo à mente o semblante de Hen. Segundos depois, uma enorme lâmina atravessou seu corpo, desfazendo a transformação iminente, mas não o dividindo. Hexoth permaneceu no mesmo lugar, apenas movendo o braço, cortando o curso da transformação.

 Vendo que todas as tentativas eram inúteis, Klaus caiu novamente ao chão. Lágrimas escorreram de seus olhos, sua armadura estava destruída, mas seu corpo fora curado de todas as feridas.

— Por que… Por que você não me mata?

— Porque? Tsc… Eu não sou esse desgraçado que você pensa… Eu virei um demônio depois da Hen ser queimada, e não antes… Eu fiz isso pra que ninguém mais sofresse… — Hexoth então dirigiu-se a Kagura, começando a fazer um cafuné em sua cabeça. — E também… ela nunca ia me perdoar se eu matasse o irmão dela…

 Ao absorver as palavras de Hexoth, Klaus mergulhou profundamente em seus próprios sentimentos. Um turbilhão de emoções o envolveu, misturando-se à tristeza avassaladora pela perda, à angústia decorrente da derrota iminente e, sobretudo, à frustração que o corroía por ter sido enganado por suas próprias convicções. Naquele momento crítico, a mente de Klaus foi inundada pelas memórias afetuosas dos dias que compartilhara com seus melhores amigos, Hen e Hexoth:

 Trezentos e quinze anos atrás, a civilização ainda engatinhava em seu desenvolvimento, limitada por incapacidades e medos que separavam as pessoas em pequenas vilas isoladas. A falta de compreensão mútua alimentava o receio, mantendo-as afastadas do desconhecido. Contudo, em meio a esse cenário, destacavam-se três jovens extraordinários na aldeia: Klaus, um elfo dedicado à guarda da comunidade com fervor inabalável; Hen, sua irmã mais velha, uma estudiosa altruísta que ajudava diversos habitantes; e Hexoth, um comerciante Orc sempre atento à proteção de sua amada Hen contra os desafios da vida. Juntos, eles exploravam as maravilhas da existência, auxiliavam seus semelhantes e abraçavam cada momento com intensidade. A união desses três amigos estava predestinada a sacudir o mundo, para o bem ou para o mal, mas seus sonhos foram cruelmente destruídos, como um fino fio de palha consumido pelo fogo.

 Naquele fatídico dia, Klaus despertou mais tarde do que o habitual. Seu melhor amigo estava ausente em uma viagem de negócios, sem despertador para guiá-lo, e o sono o dominou de forma injusta, algo incomum em sua rotina diária. Ao vasculhar a casa, a ausência de sinais de sua irmã tornou-se preocupante, especialmente dada a condição delicada que ela enfrentava, carregando consigo a responsabilidade de uma vida por nascer. Ao percorrer a cidade, clamando pelo nome dela, deparou-se com o silêncio. As palavras sussurradas pelos habitantes apenas insinuavam a triste cerimônia de cremação que se desenrolaria ao anoitecer, intensificando o medo que acometia Klaus. Horas se arrastaram sob a pele dele, proporcionando-lhe uma visão profunda do pôr do sol. A busca incessante percorreu todos os cantos da cidade, mas ele retornou para casa de mãos vazias, ou, ao menos, assim acreditava.

 O aroma pungente do fogo impregnou seus pulmões quando a visão da morte o envolveu por completo. Toda esperança de uma vida plena desvaneceu diante de uma única visão: a terrível imagem do próprio inferno. A cerimônia de cremação, mencionada pelos aldeões, revelou-se mais sombria do que Klaus ousara imaginar. A imagem vívida do corpo queimando estava gravada em sua mente, com os cabelos brancos e longos, e as orelhas tão alongadas quanto belas. Naquele dia sombrio, Klaus lançou uma maldição sobre Hexoth pela ausência na proteção de sua irmã, sobre os humanos, cujas leis nefastas pareciam reger o destino de Hen, e, em seu desespero, sobre o universo como um todo.

 Agora, diante de Hexoth e Kagura, Klaus percebeu o tamanho de seu erro. Sua incapacidade de olhar para trás devido ao seu ódio o cegou completamente, como se nada mais importasse, o impedindo de ver a verdade que estava diante de seus olhos: Kagura era a criança que Hen carregava em seu ventre.

 Ele não sabia como, mas sabia que era possível. Mesmo que se passem milhares de anos, algo preso em um selo nunca envelhece, e aqui estava ela, respirando a plenos pulmões.

— Eu… sou um idiota… — Klaus tapou o rosto, colorido pela propria vergonha. Lágrimas eram impossíveis de se segurar.

— Sim, pra caramba! — Hexoth estendeu a mão esquerda para o amigo.

— Eu quase fiz algo irreparável… me perdoe…

— Eu já disse: eu não tô magoado nem nada pare…

 Antes de Hexoth terminar sua frase, um enorme corte cruzou o campo de batalha, cortando o braço de Klaus e o de Hexoth ao mesmo tempo.

— Você não consegue fazer uma simples execução…

 Diante dos três, surgiu uma mulher. Ela tinha um aspecto jovial, mas seus cabelos eram brancos como o manto e o braço mecânico que portava. Seus olhos brilhavam em dourado e um dragão estava desenhado em seu pescoço. Era Sanarion que se apresentava.



Comentários