Volume 1
Capítulo 93: Elasmot Licorne
Manhã, 14 setembro 1590 – Majorem.
Majorem é a cidade do Império de Cristal com mais proximidade da natureza, muitas árvores, lagos, rios e cavernas, tudo sendo bem cuidado pelos seus moradores, mestres albol contratados e por alguns servos e soldados do próprio Império.
Essa cidade tem poucas casas e casarões, há muitos muros e torres, que servem para vigiar e observar os animais que ela guarda. Majorem tem mais de vinte mil animais e mil espécies diferentes; mais animais do que seres pensantes moram nessa cidade, que é pouco vigiada pelo Império.
Animais de espécies próximas ficam dentro do mesmo muro, grades ou gaiolas, tudo grande, dando espaço e conforto para viverem bem. Torres contêm pedras mágicas e encantamentos para trazer temperatura ambiente e tranquilidade para os animais em geral.
O cuidado desses bichos é feito pelos estudos, treinos e itens mágicos, que são criados a partir de partes ou até secreções de animais. Todos nessa cidade ainda são ríspidos e calados, mas são mais afetuosos com os animais e não demostram muita hostilidade. Júlio e Doug tiraram as roupas características do Império e estão usando roupas comuns, ambos estão em uma cabana abandonada, em uma área que está em reforma.
— Doug... Você ainda está triste pela escolha que Rupert e Meena fizeram?
— Sim, mas como eles mesmos falaram, não temos tempo para discutir, temos que sair dos territórios do Império o quanto antes.
— Eu sei, mas se você quiser desabafar comigo, pode fazer.
— Depois de tudo que passamos, vou fazer algo que aprendi em Sodorra... Ser “egoísta” um pouco. Depois que estivermos em segurança, podemos pensar em algo para nos encontrarmos novamente.
— Certo, e você se sente melhor do mal-estar?
— Um pouco, mas estou com medo de passar por alguma situação complicada ou ser alvo de algum poder mental forte, minha imunidade mágica está baixa.
— Eu já disse, enquanto eu estiver aqui, cuidarei bem de você.
— Obrigado...
Doug olha pela janela da cabana em que estão escondidos e afirma:
— Realmente essa cidade tem poucos homens do Império, isso nos dá vantagem.
— Sim, é a cidade mais distante de Sodorra e com menos interesses comerciais.
— Sério? Tem muitos animais de qualidade aqui, fora o campo amplo que pode ser usado para outras atividades.
— Sim, mas o Império não vê esse lugar como algo essencial para ele, e, por estar distante das outras cidades, ela pode ser cercada e tomada com mais facilidade.
— Entendi, e agora?
— Esperamos a única ronda da manhã passar e pegamos dois cavalos para sair do território do Império.
— Teremos que roubar?
— Sim, Rupert e Meena ficaram com o emblema de Ian Nai e, com os últimos acontecimentos, estamos sem ouro para comprá-los.
— Podemos conversar e explicar o que precisamos, já que aqui a população não é ignorante e hostil como a de Sodorra, talvez possamos ter uma ajuda sem precisar fazer algo ruim.
— Mas só iremos roubar... “Pegar emprestado”, ninguém vai se machucar.
— Mas e se alguém tentar nos parar? Nós estaremos errados, eles vão nos qualificar como inimigos, podendo gerar algum conflito ou algo pior.
Júlio sorri para Doug e concorda:
— Você está certo, me desculpe.
— Tudo bem...
— E por onde começamos?
— Quando chegamos aqui pela magia teleporte na torre de cristal da cidade, nós fomos atendidos por uma curandeira, por causa do enjoo que a magia causou na gente, ela me pareceu importante aqui e de bom coração.
— Lembro! Ela até me lembrou a Caryn de Copus Lithy.
— Sim, é alguém em quem podemos tentar confiar, vamos até ela.
Júlio e Doug saem da cabana e voltam pelo caminho que chegaram.
— Vamos fazer igual nas outras cidades do Império, sempre sérios.
No caminho os dois mantêm uma distância segura de todos e conversam pouco entre si, pois ambos estão com medo de que possam estar sendo observados ou que alguém os ache suspeitos. Doug olha muitos lugares bonitos no caminho, lembrando um pouco de sua infância quando tudo era mais inocente e bonito.
Paisagem bonita, animais de vários tipos, alguns lugares bem preservados, mantendo a originalidade natural do mundo, entre outros detalhes bonitos que Majorem oferece. Júlio também compartilha essa admiração, se perdendo um pouco em seus pensamentos, que recordam uma vida sem guerra. Doug suspira e comenta:
— Esse lugar é incrível, pena que não estamos a passeio...
Doug demonstra tristeza, Júlio sorri e diz, ficando mais próximo dele:
— Não se preocupe, em breve estaremos fora dessa missão e poderemos aproveitar um pouco de descanso e lazer... E aproveitar um ao outro.
Doug sorri, querendo ficar feliz e diz esperançoso.
— Sinto que teremos paz, sim, só de termos saído de Sodorra, eu já sinto o clima e o humor melhorarem, parece que até o ar está limpo e gostoso de respirar.
— Também sinto... Mas eu estive pensando sobre isso, você acha que Rupert e Meena ainda estão afetados pela influência futrespurco? Por isso que eles quiseram ficar?
— Não gosto de pensar nisso, pois é uma possibilidade...
— Não gosto de imaginar um dia ver nossos amigos no outro lado do campo de batalha, tendo a chance de nos machucar, ou pior...
— Sim, eu também estou preocupado se algo vai acontecer com eles lá.
— Acho que não... Os dois são determinados e fortes, não acho que serão pegos.
— Assim espero... Você me dá muita confiança... Obrigado.
— Só retribuo o que você me dá, sem você, eu nem sei se teria saído de lá vivo.
Doug fica envergonhado e empurra Júlio de uma forma carinhosa.
— Para com isso... Olhe!
— Chegamos...
Um guarda do Império barra a entrada deles na área militar da cidade, onde está localizada a torre de cristal e um palacete para fins políticos, comerciais e de guerra. O guarda é um pouco hostil, indicando que está desconfiado dos dois.
— Não podem passar! Quem são vocês?
— Estamos procurando...
— Vocês são da cidade?
Doug recua um pouco, pensando no que fazer se não conseguir passar pelo guarda, Júlio pensa em atacá-lo, mas, antes de agirem, mais soldados do Império surgem e os cercam.
— Digam seus nomes e de onde são!
Eles tentam responder, mas os soldados se posicionam para atacar.
— Parados!
Júlio e Doug se posicionam para lutar, mas tudo é interrompido por uma senhora, que pede para os soldados.
— Esperem! Eles estão me procurando, eu estou à procura de cuidadores para os animais de grande porte.
— Quem é você?
— Odília Tei, umas das curandeiras da cidade.
— Lembro... A velha curandeira.
Odília Tei é uma mulher, humana, de idade por volta de oitenta anos, negra, estatura baixa, acima do peso, olhos escuros, com cabelos crespos, curtos, cheios, negros e com alguns fios brancos, ela está bem arrumada e sem ornamentos caros, ela tem um olhar sério, mas com uma fala tranquila e empática.
O guarda olha com desprezo para ela e age pacificamente por obrigação do cargo que ela ocupa.
— Você cuida da parte dos animais?
— Sim, até acharem um novo chefe das bestas, o último morreu envenenado.
— Sei... Lembro-me disso.
O guarda ainda desconfia e questiona-a, encarando Júlio e Doug.
— Cuidadores? Você precisa de mais?
Ela se aproxima dele e fala baixo em seu ouvido.
— Aquele trabalho de limpar a sujeira dos animais, os grandes fazem muita sujeira, e você sabe que esse cargo sofre uma rotatividade grande, sem mencionar o cheiro que impregna nas roupas, no cabelo, nas unhas, uma vez até...
O guarda faz cara de nojo e faz seu último comentário interrompendo-a.
— Mas eles demonstraram que iriam nos atacar.
Odília responde com surpresa e fazendo sinal com a mão para que Júlio e Doug se afastem do portão com ela.
— Claro! Vocês os cercaram e declararam atacá-los, é natural dos impulsos eles tentarem se defender... Certo! Não vou mais tomar o portão, vamos indo, obrigada, soldado.
Ela puxa os dois para fora da visão do portão principal e os alerta.
— Tomem cuidado. Essa área é arriscada!
— Nós saímos daqui há pouco tempo, não achamos que seríamos tratados assim.
— Vocês não estão mais usando os uniformes deles, esqueceu? Eles não prestam muita a atenção em seus rostos, e os oficiais maiores, além de reconhecer, saberão que vocês não são mais do Império.
— A senhora sabe?
— Claro! Quando eu fiz o atendimento de vocês, eu logo percebi que estavam saindo do Império, vocês devem ter desistido de servir depois de ver mais dos “segredos”, mas eu estranho o porquê de vocês ainda não terem ido embora.
— Nos desculpe, é que precisamos de ajuda para chegar a um lugar.
— Chegar? Onde?
— Floresta de Pando.
Odília fica pensativa, olha para os lados e comenta baixo com eles:
— Não digam isso alto, esse lugar é arqui-inimigo do Império.
— Sabemos disso, mas achamos que a senhora poderia nos ajudar.
— Do que precisam?
— Montaria ou uma forma rápida de chegar até lá.
— Eu falei sobre substituir o senhor das bestas daqui, mas eu infelizmente não entendo muito, mas tenho alguém que pode ajudar vocês.
Odília pede uma carruagem para levá-los até a pessoa sobre a qual ela comentou e que poderia ajudá-los. No caminho ela oferece algumas frutas e vitaminas, para que fiquem bem alimentados e com suas energias restauradas.
No percurso ela também descobre, através de um bom papo, um pouco mais de Júlio e Doug, nada que revele a real missão deles ou o que eles realmente fizeram em Sodorra. A história de como eles se conheceram, treinaram e como ficaram juntos a agrada, história um pouco alterada para não comprometer Pronuntio.
— Confesso que demorou um pouco para eu entender pessoas como vocês. Normalmente somos hostis com “novidades” ou com aquilo com que não estamos familiarizados, me desculpem até se fiz algum comentário infeliz.
— Sem problema, agradecemos a sua atenção.
— É um prazer ajudar, fiz um juramento, pelo qual cabe fazer o bem sempre, não só a feridos e doentes ou que só pertençam ao Império.
Odília conta um pouco sobre ela, que, por ser mulher e de pele escura, teve que passar por muitas dificuldades e provações maiores que outros, mas que, com a ajuda e apoio de sua família, ela conseguiu e se dedicou em aprender o máximo sobre técnicas medicinais e magias de cura.
Ela também contou de sua família e de como era bom poder cuidar da família e de sua profissão ao mesmo tempo, e que, mesmo depois de tudo, ainda sofria por alguns obstáculos.
— Bom existirem mulheres como a senhora, para inspirar e provar a capacidade e a autoestima de todos os seres.
— Obrigada, e, mesmo velha, eu ainda tenho alguns últimos objetivos a cumprir.
— Legal! Quais?
— Bem... Eu já batalhei muito, estudei, me aprimorei, criei família e cuidei de todos, mas agora eu quero deixar uma sucessora no meu lugar, que passe essa mesma emoção e objetivo que você comentou, ter outra mulher liderando, entendem?
— Sim.
— E finalmente ver “A Grande Rainha de Libryans”.
Júlio e Doug gostam da forma que Odília cita Libryans, se lembrando das histórias desse reino tão bem construído e liderado.
Odília conta algumas coisas que ouviu sobre Libryans e as chances que perdeu de ir para lá, por culpa da guerra indireta e direta que o Império tem com vários povos do Grande Continente; mesmo com uma idade avançada e sem sinais de paz clara, Odília está confiante e finaliza dizendo:
— Todos nós em algum momento da vida já pensamos em desistir, mudar de curso ou repensar algumas coisas. No meu caso eu posso dizer que essa rainha e antiga “Octoniana” me deu inspiração para não desistir. Eu continuei minha luta, meus sonhos, e queria muito poder agradecê-la frente a frente, por isso e por muitas outras e outros, que ela ajudou e inspirou.
Chegando ao lugar desejado, Júlio e Doug saem da carruagem e veem um grande estábulo, com diversas raças de cavalos, um grande campo para esses animais viverem e um campo de treinamento de montaria ao lado.
— Quanto mais andamos aqui, mais ficamos encantados com tudo isso.
Odília olha com eles ao redor também e, admirada, opina:
— Sim, é maravilhoso mesmo, mas entrem, vocês têm que conhecer os que fazem tudo isso acontecer e que mantêm nessa excelência de plenitude.
Odília cumprimenta alguns trabalhadores e guia Júlio e Doug para dentro do estábulo, os dois ficam mais tranquilos por ver que não há guerreiros ou vigias do Império, mas se mantêm em alerta, com medo de ter alguma armadilha ou informante oculto.
— O que você está achando, Doug?
— Ótimo, e pelo jeito sairemos daqui logo.
— Sim, finalmente sairemos dos territórios do Império, finalmente estaremos seguros.
Ambos chegam à área interna do estábulo e veem alguns homens limpando e alimentando alguns cavalos, Odília cumprimenta todos, mas passa por eles, demostrando que ainda não encontrou a pessoa certa para ajudá-los, Júlio e Doug estranham e comentam baixo com ela:
— Senhora, nós não queremos chamar a atenção, qualquer um poderá nos ajudar.
Odília anda mais um pouco, garantindo uma distância segura dos homens para conversar, e responde num tom baixo:
— Eu não confio muito em alguns homens daqui, não se preocupe, eu tenho a pessoa certa para ajudá-los.
Dentro do estábulo há uma área reservada, Odília fica mais entusiasmada ao falar com as pessoas dessa área, demostrando total confiança e familiaridade com esse grupo, são cinco homens aparentemente comuns e uma criança agitada no meio deles. Odília apresenta os homens com interesse maior em quem vai ajudá-los.
— E esse é Elasmot Licorne, um futuro herói das feras!
— Isso mesmo!
Júlio e Doug se espantam por ver que Elasmot é a criança do grupo.
— Ele?
O menino sorri e diz animado.
— Sou eu! Sou eu?
Odília ri e diz com tom orgulhoso.
— Eu sei que ele é só uma criança, mas acreditem em mim, com ele, vocês conseguirão sair sem problemas.
Elasmot Licorne é um menino, humano, magro, de pele clara, olhos verde-escuros, com cabelos pretos, arrepiados e pretos. Ele está usando roupas simples, como camisa, colete de couro, calça curta e uma sandália com amarrações que prendem todo o tornozelo, mas confortável. Ele é um menino bem sorridente, inteligente e alegre.
— E vocês dois, quem são?
— Esses são Júlio e Doug, você se lembra daquele “desejo” que você queria? Esses dois rapazes podem te ajudar nisso.
Júlio e Doug não entendem o que Odília quis dizer, mas percebem que Elasmot está muito feliz com a notícia.
— Nossa! Que incrível! E mais cedo do que eu imaginei!
— Então vai lá arrumar suas coisas enquanto eu acerto os detalhes com eles.
— Sim! Sim!
Elasmot abraça forte Júlio, e Doug e sai do local comemorando; um dos homens se aproxima de Odília e questiona:
— A senhora tem certeza?
— Sim, e você vai junto também.
— Sim, senhora...
— Ótimo, vai ajudar o pequeno Elasmot enquanto eu converso com nossos dois heróis aventureiros.
O homem agradece a Odília, reverencia Júlio, e Doug e diz:
— Obrigado pela ajuda de vocês, eu prometo fazer o possível para servi-los bem até o seu destino.
Júlio e Doug ainda estão confusos, mas eles agradecem o apoio, Odília os puxa para um canto mais reservado e diz, um pouco envergonhada.
— Por favor, me desculpem... Eu não fui muito sincera com vocês... Eu achei muita coincidência vocês falarem para mim que estão querendo ir para Pando...