Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 8: Vampiro

 Já falei de zumbis, aliens e humanos alterados.

 Agora é a vez dos vampiros.

 Não se desaponte, mas eu nunca lidei com um, então só sei o que me foi passado na época que eu fazia o treinamento beta de alteração humana.

 O que se sabe sobre eles é muito pouco. Eles existiam em massa no século XV, mas foram caçados descomedidamente, o que os levou quase à beira da extinção. Não sei ao certo se ainda existem, mas ainda são seres da lista das dez raças perigosas do DCAE.

 Vampiros se alimentam de carne humana, assim como os zumbis. Com a diferença que ingerem menos quantidade de carne diariamente, então seria mais fácil não chamar atenção para si neste aspecto, visto que apenas com a morte de uma pessoa podem fazer diversas refeições se o freezer for grande o suficiente.

 Eu disse que as diferenças entre zumbis ou alienígenas e humanos comuns eram basicamente sutis, isso não acontece com os vampiros: existem três jeitos fáceis de identificar um vampiro entre nós:

 Um: olhe para as suas costas. A lenda é que essas criaturas costumavam ter grandes asas que os permitiam voar, mas por essa diferença ser muito gritante, se quisessem conviver junto com os humanos passando despercebidos tinham que esconder suas asas o tempo todo. O processo evolutivo então resultou que as asas deles agora são mirradas e disfuncionais. Vampiros já não voam hoje em dia. Mas as asas ainda estão lá. Em geral eles vão tentar esconder usando roupas grossas, mas se você conseguir ver suas costas nuas de alguma forma, notará a diferença. O par de asas é disforme e muitas vezes pode estar misturado com a pele, tentando sair do corpo enquanto se mantendo dentro, como uma deficiência de formação.

 Dois: olhe para seus dentes. Os dentes caninos são muito mais longos e pontudos que os caninos de um ser humano. Sei que o tamanho varia de pessoas para pessoas, mas nos vampiros o tamanho é exagerado. Ninguém teria dentes daquele tamanho. Então para verificar se um personagem suspeito é vampiro ou não basta esperá-lo abrir a boca.

 Três: fique perto dele uns cinco minutos. Assim como um vegetariano, um vampiro não conseguirá passar muito tempo sem revelar a todos ao seu redor sua qualidade. “Ei, sabia que eu secretamente sou um vampiro?” Parece que eles têm orgulho de ser uma aberração. Todos que os conhecem pessoalmente sabem de sua natureza. Então como eu disse: para verificar se um personagem suspeito é vampiro, basta esperá-lo abrir a boca.

 Não é à toa que quase foram extintos.

 Brigar com um destes pode ser má ideia. Toda sua estrutura corporal é avantajada se comparada à humana: os músculos são mais potentes, os ossos mais firmes, a carne mais dura. Lutar contra um vampiro é o mesmo que brigar contra alguém que usa a indarra o tempo todo sem gastar energia.

 Afora isso, os vampiros não têm nenhuma particularidade física. São basicamente humanos com a diferença que são mais fortes e canibais. Então para matar um vampiro basta desferir-lhe um golpe letal, considerando sua estrutura corporal equivalente à humana. Mas lembre-se que apenas mirar um tiro no coração dele e disparar pode não ser letal, pois a dureza do corpo pode fazer a bala não penetrar na pele e por conseguinte não atingir o destino.

 Digo tudo isto mais por razão de completitude, visto que estas criaturas provavelmente estão extintas na era moderna. Se existirem certamente não estão em Sproustown. Mas acontece que se eu quiser realmente introduzir todas as dez raças eventualmente terei que falar destes seres abomináveis.

 De volta à realidade, meu fim de semana estendido ao lado de Jane foi um terror.

 Quando voltei de manhã no sábado ela gritou comigo acordando a vizinhança inteira e quebrou o trinco da porta quando a bateu.

 Mais à tarde, chamei um perito para trocar o trinco da porta e Jane teve que sair. Eu também queria ir até a casa dos Johnson ver se conseguia alguma pista sobre de onde o envelope tinha sido retirado, mesmo que Chapman estivesse encarregado. Mas o maldito do encarregado do trinco não chegava nunca e eu tinha que ficar lá esperando.

 Tive a ideia de ligar para Ewalyn e pedir para ela averiguar, explicando a situação. A conversa foi mais ou menos assim:

 — Será que você não poderia ver se encontra alguma pista do envelope no meu lugar? Eu estou preso aqui em casa.

 — Mas o agente Chapman já não está cuidando disso?

 — Você vê... Eu meio que queria ver isso por mim mesmo.

 — Entendo. Eu também. Por que não vamos juntos?

 — Mas eu tenho que esperar o homem da porta...

 — Bobagem. Ele já vai chegar. Já sei, eu vou até sua casa e espero o conserto com você, e daí vamos lá.

 E com isso Ewalyn veio em casa e depois fomos. Chegando lá em Little Quarry tive a impressão que senti o ductu do alien de novo, mas era só impressão. Revistamos a área toda e não achamos nada. Nem traço da origem do envelope. E mais ao entardecer levei Ewalyn ao Fire Grill que fica perto da rodovia, já que ela tinha feito tanto por mim.

 Adivinhe? Quando voltei para a casa, mais gritos.

 Pelo menos Jane não quebrou a porta desta vez.

 O dia seguinte se passou sem nada acontecer, e Jane ficou reclamando o tempo todo sobre eu nunca levar ela para sair mais. Uma hora eu parei e perguntei “está bem, então onde nós vamos?” Ela ficou carrancuda como sempre e não quis sair de jeito nenhum.

 A primeira metade da segunda feira também foi monótona. Eu dei um jeito na minha bagunça de manhã e de tarde recebi uma péssima notícia. O telefone tocou então atendi. Era o Jackson da central. Ele introduziu o problema. Tinha acontecido perto das duas da tarde.

 — O que? Entraram...? Crane está...? Espere. Eu já vou para aí.

 Aparentemente o prédio do DCAE tinha sido invadido. Crane tinha levado uma surra e estava de cama.

 Me dirigi para lá o mais rápido que pude.

 Como Crane não tinha o corpo comum ela não podia ser hospitalizada então estava sendo mantida sob os cuidados da central. O bloco médico era no prédio de trás do complexo do DCAE, acima de onde ficam os servidores. Chegando lá, Jackson me cumprimentou. Foi me liderando até a sala onde Crane estava sendo tratada.

 — O que aconteceu?

 — Foram três invasores de habilidades esquisitas. A câmera os captou subindo pela lateral do prédio até a janela do escritório, e então entraram. Depois o vigilante deu o alarme e começamos a vir. Quando chegamos lá estava tudo jogado para o alto e a porta da sala da capitã Harmon estava quebrada. Eu e o Rubens entramos para inspecionar a sala e só vimos de relance dois deles pulando pela janela. Um estava carregando o outro. Eram rápidos. Rápidos como o senhor.

 — E o que eles queriam?

 — Não sei, senhor. Só a sala central e a da capitã Harmon estavam bagunçadas. Não vi nada faltando.

 Provavelmente eles tinham roubado aquele maldito convite.

 — E Crane?

 — As feridas não são das melhores, mas pelo que diz a Jenna ela vai sarar em cerca de três dias. Ela só recobrou a consciência agora há pouco, então não fizemos perguntas.

 — Entendo.

 Após percorrer um longo corredor com um forte cheiro de fermol, tínhamos chegado à sala de operação. Estava separada do corredor por uma porta de vidro. A sala era pequena e Crane se encontrava lá dentro.

 — Tenente? Não é permitido fumar aqui. — Disse a enfermeira encarregada.

 — Eu sei, Jenna. Eu sei. — Amassei meu cigarro e joguei na lixeira. — Ela está acordada?

 — Sim. Mas precisa de descanso. Seja breve.

 Deixando Jenna e Jackson para trás, abri a porta e entrei.

 — Crane! Meu Deus, você está horrível.

 Ela tinha recebido um golpe de indarra muito bem dado na cara. Isso era visível.

 — Senhor... Desculpe... Eles levaram o envelope.

 Como eu havia suspeitado.

 — Eram três. Não foi culpa sua... Eu devia ter ignorado a minha maldita folga.

 Ela deu um riso breve.

 — Eles vieram de repente. Senti o ductu só quando já tinham entrado na janela. Aí lutamos... Eu estava nervosa... Aí cometi um erro bobo. Quando um deles foi pegar o envelope eu o ataquei por trás com minhas mãos. Ele parecia desesperado e concentrado em achar o envelope. Pensei que ele estivesse distraído.

 — E ele te deu um soco na cara?

 — Ele desfez a pele. Se dissolveu. Era uma coisa estranha. Um animal roxo parecido com um polvo, mas com vários tentáculos pontudos pelo corpo todo. Tinha umas bolas pretas entre os tentáculos. Tinha também um cheiro estranho.

 — Era um Eufórbio.

 — Sim. A capitã me falou.

 — Sarah? Ela está aí?

 — Ela foi para o escritório agora há pouco. Deus... Um bom policial teria o atacado por trás apontando uma arma. — Ela sorriu. — Desculpe... Nem me ocorreu na hora.

 — Não se preocupe com isso. Você estava sozinha. Não tem nada que você pudesse ter feito.

 O que dizer nessas horas? Isso que acontece. O que está feito está feito. Você pode ter o treinamento que for, mas na hora do combate você só vai realmente conseguir praticar o que lhe foi ensinado se você for controlado. A emoção na hora do treino e na hora do combate é totalmente diferente. Acontece com todos nós.

 Eu e Crane trocamos mais algumas palavras amenas e depois resolvi me despedir, pois não queria cansá-la demais e ainda queria ver o que Sarah estava fazendo ali:

 — Eu só vim ver se você estava bem. Descanse. Você vai precisar.

 Crane confirmou com a cabeça. Me dirigi até a porta e saí. Jenna e Jackson ainda estavam na entrada. Encostei a porta novamente.

 — Tem certeza que ela vai ficar bem em tão pouco tempo?

 — Ela usa o sano enquanto dorme. A fisionomia é diferente da sua.

 — Ok... Deixo com você.

 Jackson também já havia passado do horário de seu expediente, ele só estava ali ainda por causa do tumulto, então ele decidiu me acompanhar até o escritório do DCAE, no prédio da frente.

 Atravessamos o pátio e o estacionamento, pegamos o elevador, e subimos até o local do incidente: a sala de recepção. Sarah estava lá, de pé, parada, olhando para a porta da sua sala, visivelmente estraçalhada.

 — Sarah...?

 Ela se virou vagarosamente.

 — Oh... Boa tarde, tenente Dotson. E soldado Heiser. — Heiser era o nome de família do Jackson.

 — Nem tão boa tarde assim... Eles arrumaram a mesa? Ouvi dizer que ela tinha sido jogada no chão.

 — Colocaram ela em ordem agora há pouco.

 Olhei ao redor da sala. Apesar de ela estar arrumada, vestígios da luta ainda estavam ali. Principalmente na porta da sala de Sarah, que estava arrebentada. Havia também uma mancha de sangue na parede esquerda e diversas outras manchas na direita.

 — Olhe. — Sarah apontou para as manchas da direita. Fui até elas e examinei com atenção. Eram muitas. Muitas mesmo. Alguém levou diversos socos ali. Jackson perguntou:

 — Senhor tenente...? Se foi uma luta de igual para igual entre um er... Um de “vocês”... Quer dizer que o suspeito deve ter apanhado bastante não? Digo... Se Crane está daquele jeito, então o suspeito deveria estar ainda pior?

 — A indarra humana funciona assim, Jackson: ela tem três aplicações essenciais: a óbvia, para aumentar a potência de seus golpes, a aplicação na velocidade, principalmente usada para conseguir impulso o suficiente para fazer seu corpo saltar mais longe, correr mais rápido e tudo o mais, e por fim a autodefesa. Força. Velocidade. Defesa. São as três essenciais aplicações da indarra para um ser paranormal que queira sobreviver de lutas.

 Procurei minha carteira de cigarros no bolso. Prossegui:

 — O uso da defesa depende muito da habilidade do usuário. Precisamos usá-la no próprio corpo no momento exato que sofremos um impacto muito forte, como por exemplo, um golpe de indarra de outra pessoa. Se eu perceber que vou levar um direto de direita, deveria calcular o momento certo e forçar o corpo para o lado contrário exatamente na hora do impacto, de modo a minimizar o dano do ataque causado em mim. Este conceito é usado por lutadores profissionais, acostumados a receber murros no rosto. E isso requer muito treinamento, Jackson. Até mesmo porque quando alguém usa indarra num direto de direita, na maioria das vezes não visa aumentar só a potência, mas também a velocidade do ataque.

  Acendi o cigarro. Sarah e Jackson estavam apenas olhando para mim.

 — Desta forma, a aplicação na autodefesa pode ser vista como uma finesse obrigatória, que todos devem colocar tempo em aprender, pelo menos até certo ponto. E usar esta finesse requer estado mental considerável. O usuário tem que estar completamente ciente de suas ações, ou não conseguirá se defender a tempo. Se Crane não estivesse em bom estado mental durante a luta poderia ter recebido o impacto total do soco, o que causaria aquele inchaço que ela recebeu. Creio que deve ter sido isso.

 — Ah, sim... — A entonação que ele fez dava a entender que não tinha entendido direito.

 — Quase isso, tenente Dotson. — Disse Sarah. Ela tossiu e continuou: — De acordo com o relato, a secretária Crane tinha acabado de ter sido perfurada pelos espinhos de um Eufórbio, que desfez seus espinhos e a soltou repentinamente, deixando o corpo dela suspenso no ar. Como ela havia sido pega de surpresa, toda pose de luta que tivesse assumido para golpear o ladrão de forma eficaz teria sido perdida com o impacto, com o que concluo que estava lutando para se equilibrar e aguentar a dor. Então não tinha nem fisicamente como usar a auto-defesa ali. O que a levou a receber o impacto total do soco.

 Jackson balançava a cabeça afirmativamente como se estivesse seguindo o raciocínio.

 — Mas Sarah... Crane te disse exatamente como aconteceu o acidente? Quando foi isso?

 — Eu cheguei agora há pouco, assim como você, tenente Dotson. Logo depois de receber o telefonema. Eu fiz umas perguntas para ela então vim para cá.

 E eu com medo de cansá-la com perguntas por achar que era cedo demais...

 — Aparentemente a secretária Crane jogou a mesa contra um deles, prendendo-o contra a parede, depois ela e ou outro lutaram com as mãos nuas enquanto um deles arrombou a porta do meu escritório e pegou o envelope. A secretária Crane conseguiu vencer  a luta paralela e tentou pegá-lo de surpresa, mas então ele inchou o corpo e aconteceu aquilo. Resumindo... Eles pegaram o envelope...

 — É... Eu fiquei sabendo.

 Sarah fez um sinal com o indicador para eu segui-la até o interior da sala dela. Assim o fiz. Lá dentro, apesar de a porta ter sido arrombada, nada mais estava quebrado. Apenas todos os papéis de dentro do armário tinham sido todos amontoados no chão.

 — Não dei falta de nada. Eles vieram especificamente pelo envelope. Estavam bem informados quanto o local.

 — Quer dizer que são os mesmos que trabalham para seja lá quem for que quer se fazer passar por Arthur Cooper?

 Sarah inclinou a cabeça em consideração.

— Pode ser... Um outro ponto seria a coincidência. Grandiosa coincidência. Todos os dias tem agentes ou investigadores ou alguém aqui, mas justamente nessa segunda feira ia coincidir o dia dos detetives Meyers e Lowe fazerem a investigação do paradeiro de Cooper e do seu dia de folga, então apenas a secretária Crane estaria aqui. Justamente na hora em que os detetives Lowe e Meyers saem, chegam os ladrões, sobem exatamente no terceiro andar e pegam o envelope. Como é aquele ditado? Estar no local certo e na hora certa? Certamente temos uma baita coincidência aqui... Uma baita coincidência...

 Expeli mais fumaça de meu cigarro, digerindo as últimas implicações da constatação de Sarah. Jackson também tinha entrado na sala e estava apenas nos acompanhando com os olhos. Sarah cortou o silêncio:

 — Satisfatoriamente... Nem tudo são más notícias, tenente Dotson. Os detetives Meyers e Lowe descobriram onde está Arthur Cooper.

 — Descobriram? E ele? Eles foram até lá?

 — Deixe-me me corrigir. Não exatamente o encontraram. Quis dizer descobriram sobre ele. Tem uma fazenda em Rothershore. É um político aposentado. Uma vez chegou a ser vereador de uma cidade pequena chamada Valiant Craigburg, mas quando se mudou para a capital para tentar subir a carreira política ficou apenas mais um candidato e nunca sucedeu a nenhum cargo.

 — Parece não só aposentado como malsucedido.

 — Politicamente talvez... Mas tem uma fazenda... — Sarah colocou um dedo no queixo, apontando ligeiramente a cabeça para cima em modo irônico — Nada relacionado, mas pelo que consta uma vez foi acusado de envolvimento ilegal com Deluxes... Mais uma grande coincidência para nós. Claro, nada ficou comprovado a respeito.

 — Rothershore, heh? Não é longe de Silverbay...

 — Não. E não pertence ao distrito de ordem do DCAE. Ontem eu fiquei trocando umas ligações com o departamento de Silverbay e ao que parece eles estão com uma confusão sobre se devem deixar prosseguir com a operação ou se vão passar para o departamento da civil da cidade deles.

 — Civil? Por que civil?

 Sarah foi até a janela. Respondeu sem olhar para trás:

 — É um caso de sumiço na visão deles... Arthur Cooper não se encontra lá.

 Joguei meu cigarro no lixo.

 — Sarah... Isso é ridículo. O caso foi considerado especial desde o início. O sumiço veio do caso do alien avistado na casa dos Johnson.

 — Não... Não esqueça que a análise preliminar do caso deles ainda é morte natural sob circunstância incerta. Eu cheguei a mandar o relato oficial do alienígena na sexta, mas eles estão fazendo vista grossa.

 — ...

  A pequena capitã deu com os ombros e começou a dirigir-se para fora da sala, como que em despedida. Enquanto o fazia falou:

 — Escute, tenente Dotson... Me responda o seguinte: é possível que Margareth Johnson nunca tenha conhecido o homem que foi encontrado morto ao lado dela? Não só os pertences da casa são só dela e não há nenhum indício de que ele morava lá, como também nenhuma testemunha afirma tê-la visto com ninguém em específico em sua vida cotidiana.

 — Creio que é difícil de saber com certeza, não é...? Poderia ser apenas um caso amoroso recente que ela estava escondendo?

Ela balançou a cabeça para lá e para cá em consideração.

 — É... É provável... Na verdade… Deve ser isso.

 Sarah se espreguiçou e se dirigiu novamente ao elevador. Eu e Jackson fomos atrás. No caminho ela ia nos contando:

 — O que eu vou fazer em seguida é ir até Silverbay pessoalmente. Se estiverem olhando para a minha cara não vão poder continuar com as negativas implacáveis. Ou me dão uma desculpa aceitável ou vou reivindicar o caso de volta... Cheguei até aqui com a informação e tem um alien aqui. Aqui, em minha Sproustown, não quero perder isso agora por causa de baixa política.

 — Então você vai ficar fora por uns dias?

 — É o provável que aconteça, tenente Dotson. Antes tenho que acertar uma papelada, mas eu te aviso quando for acontecer. Deixo Sproustown em suas mãos.

 

 Sarah saiu, e depois de uns instantes nós também. Não tínhamos mais muito o que fazer ali. No caminho encontrei Ewalyn e Joey, que estavam vindo da direção do bloco médico. Deduzi que deviam ter acabado com a investigação sobre Cooper e ido ver como estava Crane após saber da notícia.

 — Oi vocês dois.

 — Oi, tenente.

 — Oi, Henry.

 — Vejo que souberam do que aconteceu. Vamos pegar um café?

 — Teoricamente ainda estamos em expediente, tenente. — Disse Joey — Só você está de folga hoje.

 — A sala não é um ambiente confortável hoje, que está tudo um caos. Deixem... Eu deixo vocês de folga pelo resto do dia. Que tal o Marina’s?

 Joey olhou para mim e para Ewalyn.

 — Bem... Já que você diz... — Ela respondeu.

 — Eu... Vou voltar lá para cima. Vou terminar o relatório. — Respondeu Joey.

 Ewalyn ia dizer alguma coisa, mas Joey saiu de supetão. Então fomos só nós dois.

 Marina’s não era lá grande coisa, mas era a única opção razoável ali na região da central do DCAE. Era pequeno e aconchegante. O local todo era de madeira nobre e enfeitado com imagens temáticas dos anos 60. Apesar do ambiente agradável o menu era um pouco limitado, mas eles tinham um café bom. Não do nível do Ivory Beans, mas bom.

 Na segunda à tarde não tinha muito movimento então estávamos basicamente sem ninguém ao redor.

 — Coitada... Ela estava tão abalada. — Ewalyn estava falando de Crane — Ela acha que a culpa é dela.

 — Ela estava sozinha. Não tinha como prever a situação.

 — Foi o que eu disse para ela.

 Busquei um cigarro no meu bolso.

 — Se importa que eu fume aqui?

 Ewalyn deu um riso afável.

 — Você não larga estes canudos hein? São tão bons assim?

 — Bons? Não sei se são bons ou ruins... Há muito tempo parei de pensar sobre o assunto.

 — Mas eles têm gosto não têm?

 — Esses são Deck Techs, são piores que os Tar Lights vermelhos, mas... Espere, por que estamos falando disso?

 — Me dá um?

 — Você fuma?

 — Não. Mas me dá um.

 Entreguei-lhe um de meus Deck Techs. Preferia ter uma marca melhor para oferecer, mas era o que eu tinha disponível. Ela pegou meu isqueiro e acendeu na primeira vez. Eu estava esperando que ela engasgasse como boa iniciante, mas executou a tarefa de modo elegante.

 O garçom trouxe nossos pedidos e deixou na mesa.

 — A Sarah... Disse que ia viajar. Parece que o caso está nas mãos de Silverbay.

 — Ah é?

 — Sim, porque o Arthur Cooper era de lá.

 — Faz sentido.

 — Ela disse também que foi uma grande coincidência que isso tudo tenha acontecido justo hoje.

 — Ela disse isso, é?

 — Que tal são eles? Os cigarros?

 Ela exalou. Estava sentada de lado na cadeira.

 — Ah, não sei... Bons, eu acho? Eu gosto do cheiro...

 — Mesmo? Ninguém em sã consciência gosta.

 — Eu tenho o olfato desenvolvido. Eu consigo distinguir entre a fumaça. Mas o cheiro daqueles que você estava fumando ontem eram melhores: que sabor era? Canela com alguma coisa?

 — Uau... Você consegue dizer?

 — Bem... É meio que uma finesse, sabe...

 — E está tudo bem em me dizer assim de repente?

 Ewalyn deu de ombros, tragando mais uma vez.

 — Somos da mesma equipe, não?

 — De qualquer forma... Se for para dar minha sincera opinião... Aconselho não começar a fumar.

 Ewalyn riu.

 — Aquela garota... A capitã Harmon... Mora sozinha assim como você? Eu trabalhei com ela no caso do filho do governador, mas ela nunca falava sobre a vida dela mesma...

 — Eu não moro sozinho. Minha esposa mora comigo...

 — Ah, você é casado?

 — Eu sim.

 — Ah...

 O verde dos olhos de Ewalyn chamou os meus por um instante. Ela tinha o mesmo olhar de Betty. Puro e astuto. A cor era exatamente igual à de Jane. Mas ela tinha um olhar afiado e penetrante. Era exatamente igual e diferente. Ela me lembrava mais Betty do que Jane.

 Quase não percebi que aquele instante em que nos encarávamos se prolongara demais. Ewalyn quebrou-o com um comentário:

 — Desculpe... Eu não sabia. Mas por que você não usa sua aliança?

 — Ah, isso? — Olhei para minha mão esquerda — É uma longa história... Para contar a versão curta... Eu apenas a perdi num acidente.

 Ewalyn curvara-se ligeiramente na minha direção, me fitando. Por um instante pensei que ia insistir em ouvir aquela história, mas ela mudou de assunto:

 — Você tinha dito que a capitã Harmon comentou da coincidência...

 — Disse. E você sabe... Quando ela se referiu ao assunto, ela o fez de modo bem reticente, algo do tipo: “É... Parece que temos uma grande coincidência aqui... Sim... Uma coincidência.”

 — E quando capitã Harmon faz assim quer dizer que ela não acredita nas próprias palavras e quer dar a dica para você?

 — Não creio que seja necessariamente isso, mas...

 — É uma espécie de código entre vocês?

 — Código? Entre nós? Definitivamente não. Creio que seja apenas uma impressão que tive.

 — Bem... E sua impressão foi certeira. Nesta altura acho que todos nós já percebemos...

 — É... Existe um informante... Não... Um traidor entre nós.

 Aquela palavra era pesada. Mas era um fato. Como saberiam que estávamos guardando o convite no terceiro andar da central e como saberiam que Crane estaria sozinha lá justamente naquele momento em que Joey e Ewalyn saíram para investigar sobre Cooper?

 — Aposto que é aquele namorado dela.

 — Joey me disse que você desconfia bastante do agente Chapman. O namorado de Crane: Galloway, foi apresentado por ele, não?

 — Sim... Foi sim.

 — Por que você desconfia dele, Henry?

 — Tudo nele é esquisito. Apareceu do nada. Nunca arranja um emprego. Você sabe... Chapman sempre anda entre tribos sociais de reputação duvidosa por causa do trabalho. Qualquer pessoa que ele conheça será tirada de dentre este tipo de gente...

 Ewalyn deixou seu cigarro do lado da mesa. Não deve ter gostado muito.

 — Eu quis dizer... Por que desconfia tanto de Chapman? Ele apresentaria alguém de reputação duvidosa para Crane?

 Fiquei calado por um instante.

 — Eu apenas... Não confio nele. Creio que é a índole dele. Incisivo. Muitas vezes depreciativo. Digo para você, desde que deixou o trabalho interno para ser agente algo nele mudou.

 — Então... Não aconteceu nada de concreto? É apenas seu instinto?

 — Apenas meu instinto.

 Ewalyn riu.

 — O que foi?

 — Nada. É que você parece tão... Racional. Julgar alguém baseado no instinto é tão... Não você.

 Fiquei desconsertado.

 — Bem... Eu adoraria ficar e aceitar seu convite de dispensa pelo dia de hoje, mas vou ficar com peso na consciência se só Joey fizer todo o trabalho burocrático.

 Sorri.

 Após terminarmos, nos levantamos e voltamos até a central. Eu acompanhei Ewalyn até a entrada e então nos separamos. Apesar de ter acontecido um acidente, Crane estava bem e agora tínhamos mais pistas de várias coisas aparentemente inter-relacionadas: a identidade de Arthur Cooper, o ataque na central, o sujeito não identificado na casa de Margareth Johnson, a tentativa de fuga de Jeffrey Sprohic. Crimes são sempre ruins de lidar, mas quanto mais crimes acontecem pelo mesmo motivo, mais fácil fica de analisá-los. Ou pelo menos deveriam...

 Uma vez retornando à casa, Jane estava me esperando na porta.

 — Onde você estava?

 — Tive uma emergência no trabalho.

 — Como assim? Hoje é sua folga!

 — Mas era uma emergência.

 Ela fez um sinal perplexo com a palma da mão para o ar.

 — Que emergência?

  Desviei-a e entrei em casa, deixando meu casaco no sofá.

 — Uma colega de trabalho foi baleada.

 — Mentira! Aposto que está saindo com aquela sua amiga que veio aí o outro dia.

 Não estava ciente que ela sabia de Ewalyn. Ela tinha vindo durante o episódio da porta quebrada quando Jane estava fora e nem chegou a entrar na casa, pois eu a esperei já pronto para sair. Não ia deixá-la ver o estado caótico da sala de minha casa, afinal. Virei-me curiosa e lentamente para Jane.

 — Acha que eu não sei? Sabe o que eu achei do outro dia? Isso! — Ela mostrou um fio longo e liso de cabelo ruivo — O meu é curvado! O que está acontecendo, Henry? Vai me dizer alguma coisa? Quem é essa nova vadia?

 Meu rosto se contraiu.

 — Se está falando de sábado, Jane... Eu tive que ir até uma cena. E Ewalyn não é uma vadia. É uma colega de trabalho.

 — Aí está! Defendendo ela! Aposto que é a mesma que supostamente foi baleada? Vai ficar arranjando desculpas agora? Sabe o que eu vou fazer se você...

 — Sim... Sim... Que seja, Jane.

 Minha semana já estava muito cheia de novidades desagradáveis para perder meu tempo com aquelas ameaças frívolas por isso saí sem dizer mais nada, fui até o banheiro e liguei o chuveiro.

 O resto da segunda feira se passou normalmente. Apesar de Crane ter sofrido uma emboscada ela estava bem e havia alguns aliens à solta por aí. Mas os pegaríamos mais cedo ou mais tarde. Embora eu tenha começado falando deles, em meio aos diversos problemas presentes em Sproustown, se existe algo que não era um deles naquele momento eram vampiros.

 Afinal, nem sei se eles ainda existem ou se os vampiros são extintos de verdade.

 Certamente não é algo a se preocupar.



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