Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 26: Yeti

 — Yetis. Também conhecidos por diversos outros nomes como os abomináveis homens da neve, pés grandes, etc... A divisão os conhece por Yetis.
A lenda se tornou conhecida por diversos relatos de habitantes de regiões ermas e montanhosas de países de clima gelado, de gente que viu os grandes animais meio-homens e meio-macacos, que andavam em duas patas e se alimentavam de integrantes dos povoados.

 Eu sei que você já ouviu isso tudo, mas só para lembrar: o Yeti é quase que exatamente como no conto. Um animal provido de força extrema, que a usa para caçar humanos e outros animais, pois se alimenta delas. Sua composição é basicamente como a de qualquer animal mamífero. Portanto é de se esperar que morra exatamente conforme morre qualquer outro mamífero: de diversas formas: uma pancada letal na cabeça, perfurando o coração, e assim por diante. A única diferença essencial que ninguém comenta é a inteligência do organismo. Yetis não são grandes macacos em extinção que transcenderam a pré-história em regiões onde há neve na maior parte do tempo, sobrevivendo selvagemente como faz um leão ou um elefante. Não. Yetis são como nós. Criaturas capazes de aprender, e de passar o conhecimento às gerações futuras, perpetuando assim sua existência por meio de adaptação às alterações culturais e de ambiente.

 E por causa da sua inteligência inerente, sua força física eminente, e suas capacidades locomotoras e instintivas desenvolvidas, os classificamos como uma das dez raças em destaque do departamento de divisões especiais. E esta é uma das quatro intrinsecamente perigosas por se alimentarem de seres humanos.

 Eu sei que você já ouviu falar de tudo isso, porque você também fez o treinamento beta, mas... A verdade é que eu ando escrevendo um compilado... Meio que um diário... E sempre começo cada capítulo relatando uma das raças. Besteira... Apenas estou acostumado, creio.

 O que quero chegar é que a história é sobre um Yeti. Dois para ser mais exato. Eu vi os Yetis só daquela vez. Só daquela vez e depois nunca mais. Eu tinha dezesseis. Era um jovem vivendo quase que na fronteira, em uma cidadezinha de pouquíssimos habitantes chamada North Lake Hampton, que era à beira de um lago cercado de montanhas. As montanhas eram sempre brancas e o lago estava sempre congelado, poucas vezes quando criança consegui nadar lá. Todos dali se empenhavam na caça e na pesca, até mesmo porque os caminhões só chegavam do mercado da cidade grande mais próxima a cada quinze dias. Tínhamos que nos virar com nossos próprios meios para nos alimentar.

 Essa cidade tinha um templo religioso no topo de uma montanha. Uma seita chamada Hewishi. Não me pergunte qual a filosofia. Só sei que os monges passavam um tempo lá no templo meditando e coisas assim, e foi deles o relato de que viram o monstro. O abominável homem das neves. O ser que tinha pego dois monges daquele templo — alguns deles dormiam lá — em duas madrugadas distintas. A notícia se espalhou em forma de boatos por toda North Hampton muito rápido e nosso grupo de xeretas acabou se oferecendo para pesquisar. Éramos um bando de inocentes. Éramos eu, o Harley, o Rick e a Betty... A minha noiva na época. Betty era de uma natureza pura e autêntica. Era como o brilho da neve em um dia de sol após a tempestade. Era como se o cenário de North Hampton fosse feito para ela.

 Nosso grupo costumava sair para caçar, e pegávamos cada baita pedaço de carne que fazia um churrasco que dava para a semana toda. Tínhamos ficado tão bons que o sucesso subiu à cabeça. Não que houvesse caça que fosse carne demais para nosso prato, mas é que... Bem... Se tivéssemos um pouco mais de humildade aquele episódio não teria acontecido.

 Falando no episódio, é onde eu quero chegar. Certo dia, depois daquele boato nós subimos o monte onde ficava o templo dos Hewishi e esperamos até o anoitecer. E então saímos à noite, à procura do animal que estava causando os sumiços. Vou contar rapidamente como foram os sumiços: eles eram levados pela janela do quarto. Alguém os arrastava da cama para fora, e esse alguém deixava claras marcas na neve e na parede do lado de fora. Alguns religiosos mais fofoqueiros estavam inventando que era um caso interno de um serial-killer, mas para nós, analisar aquelas marcas do lado de fora foi o suficiente para concluir que se tratava de um animal que vinha e simplesmente arrastava os monges para fora em um tratamento desumano. Acreditamos que fosse algum lobo que tinha aprendido a saltar a janela. Na nossa cabeça o animal os pegaria pela boca e saltaria novamente para fora, deixando pouco rastro no interior do quarto. É claro que as marcas na neve do lado de fora eram muito grandes para serem atribuídas a lobos, entretanto. Mas tínhamos certeza que se tratava de um animal.

 Andamos por mais de três horas no meio daquelas montanhas gélidas naquela noite, todos cobertos de casaco de pele de carneiro, em meio a um vendaval que podia se tornar uma tempestade de neve a qualquer hora. E repito: éramos bons no que fazíamos, detectamos rastros do bicho mesmo durante a noite por quilômetros, até o local onde supusemos ser a toca do mesmo.

 Foi Betty quem apontou o detalhe que alguns de nós tínhamos perdido até então: em parte do trajeto, os rastros deixados no caminho, que nos levaram ao local, foram se tornando mais rastros humanos do que rastros de bicho. Eram muito diferentes daqueles que vimos no muro e na neve do lado de fora do quarto dos monges Hewishitas. Era como se além do animal, algum homem tivesse andado por ali e deixado algumas pegadas leves que sumiram com o acúmulo dos flocos.

 E a toca a qual encontramos era feita à mão. Impossível que tivesse sido cavoucada em pedras daquele jeito e ficado de pé em meio a tantas tempestades se tivesse sido formada naturalmente. Rick acendeu uma tocha e a jogou no interior da toca, fazendo um barulho e iluminando-a parcialmente. Quando vimos que não tinha nada lá dentro, entramos.

 Creio que não é exatamente surpresa, mas encontramos os dois monges que tinham sido sequestrados lá dentro. Ou melhor, os corpos deles.

 Os dois cadáveres estavam colocados um em cima do outro, e havia partes dos corpos faltando. Pedaços que foram dilacerados. Estavam servindo de alimento para qualquer animal que se escondia ali. Mas os rasgos eram feitos de forma esquisita, como se tivessem sido arrancados com a mão e não a mordidas. O odor emanado também não era dos mais agradáveis. “olhe” a Betty observou: achou uma mochila velha apoiada no canto da parede da toca -se é que se pode chamar de parede- e perto dela tinha uns fósforos riscados, uma faca pequena e alguns cartuchos de balas de espingarda 36. Eram bastante comuns em Lake Hampton, você podia comprar no armazém.

 Como o interior da pequena caverna era feito também de neve, ainda dava para detectar pegadas. E por causa disso deduzíamos que alguém estava indo e vindo ali com certa frequência. Não se tratava de caso de um homem que veio e largou a mochila ali por qualquer razão específica em apenas uma oportunidade e nunca mais voltou. As pegadas iam e vinham e eram várias. Estava literalmente usando o local como esconderijo para alguma coisa.

 Dentro da mochila havia explosivos e mais cartuchos de balas. E também uma m1900 daquelas bem velhas. Deduzia-se que um caçador deveria estar usando aquela abertura para se proteger das tempestades durante suas jornadas. O esquisito era que ao olhar para o canto oposto, ainda se viam os dois corpos empilhados e as pegadas de tamanho maior, bem afirmadas no macio chão de neve. E logo do lado havia também os resquícios do que tinha sido uma fogueira improvisada com alguns galhos. Tanto o caçador quanto a caça dividiam o mesmo local? Parecia-nos absurdo! Críamos que devíamos estar perdendo algum detalhe. Ficamos um tempo especulando então lembro que o Rick nos pediu silêncio e ouvimos de longe um longo rosnado, grave e retumbante.

 O rugido veio se repetindo e ficando cada vez mais próximo, começando a abalar a estrutura do local. Eu disse que ia sair e ver do que se tratava, foi quando vi o desgraçado pela primeira vez: a descrição é exatamente fiel à das lendas: um ser de dimensão elevada, de pelugem felpuda em sua maioria branca, portando uma cara feia, lembrando uma mistura de urso e primata.

 Deixe-me descrever o cenário mais ou menos: a toca era uma cavidade no chão, se entrava nela descendo, e assim por fora era apenas um monte de neve firmado, com a pequena abertura embaixo. Quando se saía da toca se via um paredão de neve, o qual tivemos que descer quando estávamos rastreando, e então girando 180 graus, via-se a continuação do caminho. Eu saí e fiz o giro, e foi quando eu vi o monstro: ele estava há alguns metros de distância daquele monte de neve de onde eu tinha saído. Quando eu o vi fiquei gelado... Fiquei sem reação. Eu estava com a minha espingarda na mão, mas o transe do momento não me permitiu sequer levantá-la e apontar para aquele ser à minha frente.

 Após o suor da novidade se escorrer, percebi que o próprio monstro, ao me avistar em frente à sua toca, não tinha cogitado partir para o ataque. Naquele momento temeroso perdi um pouco a noção do tempo, mas se ele fosse do tipo que responde com violência imediatamente a qualquer ameaça, já teria saltado para cima de mim rosnando heroicamente. Minha experiência me fez perceber por um instante que ele também devia estar com medo de mim.

 Ficamos nos fitando um ao outro em silêncio. Passou por minha cabeça levantar a espingarda em movimentos leves e meter-lhe uma bala no meio da testa, mas aconteceu um contratempo. Eu percebi tarde porque aconteceu atrás de mim.

 Lembre que nessa época eu nem sabia nada sobre paranormais, nem ductu, nem indarra nem nada. Eu era apenas um jovem armado. Não tinha o sensorial desenvolvido.

 Apenas pressenti o movimento quando estava já perto. Uma enorme bola de neve tinha despencado provavelmente do paredão estava atrás de mim (lembre-se que eu tinha me virado quando saí) e rolava justo na direção à entrada do covil do Yeti. “Merda!” Eu proferi, e saltei transversalmente, o que era muito melhor do que correr alinhadamente com o percurso da bola. Eu estava com o dedo no gatilho, então acabei disparando a espingarda sem querer quando senti o recuo do salto. Achei até que o monstro ia começar a se enfezar e me atacar por causa do barulho, mas quando olhei na direção dele, ele estava correndo ladeira abaixo. Tinha decidido fugir ao invés de partir para o ataque. Não dava tempo de persegui-lo, então eu fui direto até a entrada da toca onde a bola tinha batido para ver se os três precisavam de socorro. Eu gritei para eles e ouvi respostas abafadas. Estavam trancados para dentro. Tivemos que passar algum tempo ali retirando neve da entrada. Parte da bola tinha ficado presa na abertura e eles disseram depois que outra parte acabou acertando a parede e quicando, vindo a cobrir a mochila, que a gente tinha encontrado no chão.

 Depois daquilo, nós pegamos o que conseguimos daquele esconderijo e passamos a tentar encontrar as pegadas daquele monstro que tinha saído correndo. Agora estava claro para nós que se tratava de um pé grande. Nunca tínhamos visto um, para nós era novidade. Mas até então estávamos acreditando na lenda: que se tratava só de um bicho.

 E foi dali a cerca de quarenta minutos que aconteceu: nós achamos o dito cujo, de pé, parado, estava agachado, admirando a paisagem, como se fosse um urso ou algo do tipo. Nós o avistamos do alto de um monte de pedras coberto de neve, e ele estava de costas para nós. Era só carregar a espingarda e mirar. Havia um montinho fofo no qual nós -eu e o Rick- subimos para obter o melhor ângulo possível. Eu preparei o tiro e o avisei para que ficasse preparado no caso de eu errar ou de minha bala não se suficiente, então quando íamos atirar, o montinho fofo se mexeu violentamente, e nós caímos para baixo do monte de pedras.

 O montinho fofo abrigava na verdade um outro deles. Era o par dele. O desgraçado estava se fazendo de isca lá embaixo. Eles supuseram que nós usaríamos aquele monte para subir e tomar ângulo. E aquele yeti que estava embaixo se fazendo de sonso esperava que caíssemos, porque assim quando o fizemos ele virou e veio correndo a toda em nossa direção, o que era um comportamento totalmente avesso ao de receio que eu tinha presenciado há pouco. Aquilo tudo tinha sido planejado.

 Lá embaixo foi um inferno. O monstro era mais rápido e mais forte que nós. Eu só lembro de flashes dessa próxima parte. Aquele monte de pelo em cima de mim, eu tateando qualquer lugar com as mãos, minha espingarda caindo e eu tentando pegá-la. E os gritos. Gritava o Rick no meu ouvido. Gritava lá de cima o Harley. E eu não conseguia ouvir a voz de Betty. Ouvi tiros disparados. Não sabia se vinham de perto ou de longe, até que o monstro nos soltou. Deduzi que o Rick devia ter feito alguma coisa, porque eu estava imobilizado. Eu certamente não fiz nada.

 Só lembro que a primeira coisa que fiz foi contornar o monte, mesmo semi-agachado, do modo mais desengonçado que podia, visando subir para averiguar como estava a situação de Betty e de Harley.

 E uma vez lá, vi a cena que marcou. A cena que lembro forma vívida, que ficou gravada na minha mente durante todos esses anos.

 Não lembro de nada da luta que tivemos lá embaixo, não lembro o que estava acontecendo com Rick, como ele conseguiu escapar do monstro... Mas eu lembro muito bem daquilo que vi. A imagem grotesca.

 O animal estava sobre Betty. Harley estava caído e desmaiado, logo ao lado. A menos da inconsciência estava bem, mas o que causava ânsia era a visão de Betty.

 Estava sobre uma poça de sangue, que avermelhava toda a neve ao redor. O sangue escorria velozmente e o monstro acima dela tampava a visão do restante de seu corpo.

 De onde saía o sangue? Não dava para ver. O Yeti estava em cima e o sangue escorria justo da parte que ficava oculta. Só o que eu via era sua metade de cima, aquele maldito a pisoteando, e o sangue escorrendo. E virada para mim, numa expressão desamparada ela tentava estrepitosamente me falar alguma coisa, transmitir um último pensamento. Ela tentava gritar, mas não conseguia, pelo dano que havia sido causado a seu interior. Tudo o que se ouvia era um gemido agudo e fino vindo da garganta, soando como o vento desamparado da morte.

 A última lembrança que tenho dela era aquela expressão agonizada gritando silenciosamente.

 E a minha reação, ou melhor, a falta dela: parado, olhando para o monstro enquanto ele fazia uma pose intimidadora. Não era medo. Era... Era a derrota. É claro que eu sabia que a única solução era sair dali imediatamente, deixando os dois para trás. Betty provavelmente estava rasgada ao meio... E quem ia carregar Harley? Rick gritava e gritava para mim desesperadamente às minhas costas, tentando me dar um pouco de razão.

 Mas razão como?

 Senti um calor subir do meu peito até minha garganta. Devo ter feito mil caretas, tentando me compor e agir adequadamente à situação. Mas só o que eu podia era ficar e assistir Betty. Gravando aquela imagem na minha cabeça. Pelo menos por mais um segundo... Até que Rick literalmente me pegou pelo braço e eu tive que ir.

 Tive que dar as costas a ambos e correr... Correr para longe dali, mesmo com a visão ofuscada pelas lágrimas em meus olhos.

...

 Era claro que não seríamos páreos para aquela dupla de monstros.

...

 Aquela visão marcou. Toda minha vida eu me lembrei daquela cena daquele dia. O desgraçado em cima dela e o sangue escorrendo. E ela tentando me dizer alguma coisa sem sucesso.

 Foi quando eu comecei a ficar obcecado... Obcecado pelos Yetis. Viajei por vários lugares, procurando a verdade sobre aquelas coisas. E então quando finalmente soube da verdade acabei entrando para o programa beta. E o resto você já sabe...

...

 Aquele desgraçado... Depois eu fiquei sabendo que fizeram tudo de propósito. Primeiro as pegadas: eles mesmos devem ter feito as pegadas com as botas dos humanos que mataram para dar a entender que eram trilhas de caçadores. Aquela mochila que guardavam na toca era deles mesmos! Mas faziam parecer que tinha um caçador se escondendo lá para que os humanos não se dessem conta de sua inteligência.

 Eles sabiam como se usavam os pertences ali. E por isso fizeram o combo do rugido, assim que perceberam que havíamos entrado em seu refúgio. Um deles rugiu e ficou à vista enquanto o outro preparou a bola de neve. A bola não caiu bem na abertura do local por acaso. Devia ser uma finesse dele, controlá-la daquele jeito. Mirou para que ela batesse na mochila justo para inutilizar os explosivos. Eles sabiam que se a gente tivesse acesso aos explosivos eles sucumbiriam.

 E depois que viram que o conteúdo da mochila estava inutilizado armaram aquele encontro no local, um embaixo da neve fingindo-se de monte e o outro debaixo do precipício, se fazendo de isca. Eles estavam com medo de enfrentar os quatro porque sabiam que estávamos armados, mas seria diferente se tivessem a vantagem... Por isso inventaram esse jeito: tanto Betty e Harley seriam surpreendidos pelo Yeti se levantando do chão em cima do monte quanto eu e Rick teríamos desvantagem por estarmos caindo do penhasco.

 E veja como eles são mentirosos: quando nos atacaram eles o fizeram com as quatro patas no chão, como se fossem animais, para que se por acaso uns de nós ainda fugissem, não nos déssemos conta de que eles sabiam raciocinar. Mentira! Eles até comem de forma civilizada! Por que ele me atacou à mordidas sendo que na toca deles, os pedaços dos corpos tinham sido cuidadosamente arrancados com a mão? Aquela fogueira era deles! Eles arrancavam e assavam e só depois que comiam.

 Merda...

 Você sabe... Eu nunca mais achei aquele filho da puta. Aqueles dois. Depois que eu terminei o treinamento beta e comecei a fazer parte de operações que visavam exterminar esse tipo de seres para a segurança da população... Depois que me familiarizei com eles... Eu só queria ir lá e me vingar. Eles nem eram lá grande coisa. O que é isso? Lutaram dois contra quatro inexperientes e ainda deixaram dois deles escapar? Eram piores que o zumbi que fugiu da prisão três semanas atrás! Com medo de enfrentar um humano só porque ele está armado.

 Como eu queria tê-los encontrado e os estripado depois que aprendi os segredos da luta... Mas eu vasculhei aquela montanha toda de ponta a ponta e eles não estavam mais lá.

 Enfim... O que eu queria dizer era isso... É por isso que eu me tornei... O que me tornei. Desde aquele dia minha vida ficou vazia... Entrei no treinamento beta porque não conseguia algo que me completasse... Não é nenhuma razão nobre como para salvar as pessoas de bem das ameaças do sobrenatural. Não... É apenas egoísmo meu. Mais uma história que terminou mal, e cujo protagonista perdeu a razão de ser... Tudo que tenho feito desde então... Foi mera tentativa de encontrar meu lugar na vida.

 Inclusive Jane. Você sabe... Quando a conheci o que eu vi foi uma moça ruiva, de alma cintilante, jovem... E de espírito aventuroso. Isso... Espirituosa. Ela me lembrou a minha juventude o qual passei naquele vilarejo ermo de Lake Hampton. De como saíamos a caça de comida sem saber a que hora voltávamos para casa... Enfim... O que quero dizer... Você sabe... Mais do que tudo ela me lembrava Betty.

...

 Ela não merecia nada disso...

...

 Eu havia me perdido na trilha de meu raciocínio e minha vista estava começando a embaçar. A jovem moça de cabelos ruivos contrastantes com sua alva pele sentada a meu lado era ninguém menos que Ewalyn, que até então estava sentada a meu lado cumprindo o enfadonho papel de ouvinte passiva, sem proferir palavra durante todo aquele imenso monólogo. Ela finalmente se moveu. Trazendo seu corpo mais perto, ela se debruçou-se sobre meu ombro.

 Precisei de um momento.

 Anos já haviam se passado, mas tocar nestas lembranças ainda trazia o pior de mim.

 Quando finalmente me recompus, consegui proferir uma pergunta para quebrar o gelo do momento:

 — Patético, hã?

 Ainda encostada em mim, com seus braços ao redor dos meus, Ewalyn desconversou:

 — Como ela era? Betty?

 — Ela era diferente... Como posso explicar? Era como uma criança. Não que eu goste, mas é que... Era assim... Era como se ao estar perto dela eu estivesse perto daquela amiga de infância que nunca tive: algo que lhe traz novamente o modo de ver a vida com olhos puros e apreciar os detalhes de cada das simples coisas ao seu redor... Era esse tipo de pessoa.

 Ewalyn se inclinava cada vez mais, e evitava me olhar nos olhos. Olhava para o céu ao invés disso.

 Houve mais um momento de reflexão.

 O qual depois foi quebrado com a voz de Ewalyn:

 — Sim!

 Foi um ‘sim’ curto e resoluto.

 — Como?

 — A resposta para a sua pergunta de antes. Sim. É patético!

 Soltei um riso áspero.

 — Você não mede palavras hã?

 — Mas é a verdade, Henry! Você esperava que eu dissesse que não? Que eu lhe desse a razão para que você pudesse se manter nesse luto constante? — Ela levantou seu corpo e se pôs sentada paralelamente a mim mais uma vez. Ewalyn prosseguiu:

 — É por isso que você se força a conviver com Jane apesar do que ela te faz passar? Apesar do que me disse outro dia? Henry... Você está se apegando a uma pessoa porque isso te faz se sentir um pouco melhor por tê-la abandonado naquele dia. Não, não... Escute. —ela preveniu minha objeção- Mesmo que você tenha uma desculpa... Mesmo que você tenha outra razão... Você não pode negar o que há em seu mais oculto interior. Você sabe o que você sente.  Eu sei. Eu entendo. Porque você sente o mesmo que eu: você é movido pelo mesmo sentimento que eu: remorso. Nada mais que isso. Agora entendo porque eu me identifiquei desde o primeiro dia... Mas... Isso só vai te destruir por dentro. A verdade é que nada do que fizer vai te fazer sentir melhor por aquele dia, Henry. Nada vai trazer ela de volta e para terminar dizendo o que já sabe: você não poderia ter feito nada por ela no dia. Você não tinha o conhecimento que tem hoje. Não tinha a habilidade. Você vai ficar eternamente numa tentativa vaga de realizar alguma coisa que lhe de conforto espiritual e nunca, Henry... Nunca você vai encontrar. Manter uma relação com uma pessoa que te faz mal apenas por punição de si mesmo... Isso é ruim até mesmo para ela.

 Ewalyn tinha mesmo razão no que ela disse no outro dia...

 A melhor maneira de enfrentar seus problemas era os expondo. Os admitindo em primeiro lugar.

 — Não é punição. Eu apenas... Eu apenas... Queria sentir mais uma vez... Aquilo que eu sentia... Quando estava perto dela. Um sentimento que não encontrei em outro lugar. Era como se ao lado dela eu me sentisse... Vivo. Era como se o mundo se tornasse novo novamente. Eu creio que tudo isso é uma busca interminável por esse sentimento.

 O vento passava por entre nós frio e cortante. Ewalyn trocou para uma entonação mais suave:

 — Seu amor era tão grande assim?

 — ...

 — E se você achasse alguém de quem você gostasse de verdade? Alguém diferente de Jane? Você acha isso impossível? Você não acha que nunca mais se sentiu assim não porque o sentimento não existe, mas porque você mesmo nunca mais se permitiu?

 — ...

 — ...

 Aquele assunto me era muito abstruso.

 Tateei no bolso de minha camisa mais um cigarro. Dessa vez eram Dech Techs regulares.

 — E Crane? Como está? — desconversei.

 Ewalyn suspirou.

 — Está mal... Desde aquele dia. Você já deve estar sabendo do que aconteceu, não?

 — Que ela terminou com o Galloway? Sim. Fiquei sabendo. Joey me contou. O que não sei ao certo é o motivo...

 — Ué existiam vários motivos. Mas o principal foi segurança. Segurança dele, claro. Sendo que ela é uma agente do DCAE não é de se surpreender que hajam mais tentativas de assassinato vindas dos grupos terroristas. Isso fica ainda mais evidente agora que sabemos que três desses grupos empregam seres paranormais. Ontem foi uma tentativa de morte por envenenamento. Mas o que virá em seguida? Podem usar as pessoas próximas a ela, porque não? Você sabe como é esse tipo de gente...

 — ...

 — Eu não sei o que Emma disse a Richard, mas... O motivo do término foi esse. Ela terminou pensando no melhor de Richard.

 — ...

 — Ela terminou pensando no melhor do cônjuge... Diferente de...

 — ...

 — O que foi? Essa expressão? Vai dizer que o orgulhoso Henry não quer admitir que o motivo do término foi outro senão o fato de que Richard é um “personagem suspeito”?

 Tive que soltar uma risada.

 — Você deve convir que o sujeito era sim suspeito. Ou crê que ele era boa pinta?

 Ewalyn deu de ombros.

 — Não tenho nenhuma opinião formada sobre o ex-namorado de Emma. Nunca conversei muito com ele.

 — Mas você chegou a vê-lo? Daquele modo maltrapilho? Aqueles acessórios caros contrastando com a aparência barata. Aquele linguajar de bandido... Não importa se a intenção era boa no que dizia, a forma é pior que o conteúdo: não dá pra confiar em quem se comporta daquele jeito.

 — Acho que você tem que parar de julgar as pessoas pelo que elas parecem ser, Henry. Afinal se fosse assim eu nunca teria me aproximado de você.

 Bem... Isso não posso deixar de negar.

 Fazendo menção para Ewalyn com um gesto, ofereci-a um de meus cigarros,. Ela recusou com um aceno leve de mão.

 — Você diz que não gosta de Richard porque ele é amigo de Cole, certo? E Cole? Acabou desistindo da ideia de ele estar relacionado?

 — Relacionado particularmente com esses casos das últimas semanas? Sim. Ele não estava metido. A prova é ter chamado justo eu para encontrar com Solis, o que acabou sendo um encontro mórbido com o irmão de Sprohic em coma deitado num pátio vazio.

 — Ah. E como ele está, por falar nisso?

 Exalei a fumaça de meu cigarro antes de responder.

 — Está sob cuidado no hospital do centro, mas vai morrer, creio. A condição piorou consideravelmente entre o momento que o vi quando encontrei Chapman no centro e depois, quando a polícia convencional o encontrou após ter sumido. Creio que deve ter sido outra finesse de outra criatura envolvida. Talvez alguém ligado ao negro da sexta-feira... Era ele quem queria silenciar Sprohic desde aquela...

 — Sexta feira... — Ela completou.

 Confirmei com a cabeça.

 — Sprohic era irmão de Jeffrey, que agora está sob os cuidados da polícia de Silverbay. É certo que ele foi silenciado porque sabia de alguma coisa. Eu me pergunto se Jeffrey também não sabia... Será que a capitã soube de alguma coisa quando estava por lá?

 — Ela me disse que o que ficou sabendo por intermédio da polícia de lá bate com o que Solis andou revelando por aqui: uma suposta relação entre os casos paranormais da cidade e a venda ilegal de drogas. Ela disse que ficou sabendo dos nomes do submundo ficando de ouvidos prontos por lá. Mas infelizmente não conseguiu audiência com Sprohic após o caso ter sido tomado. Nem mesmo uma visita, o que é muito esquisito.

 — Aí tem coisa?

 — Aí tem coisa.

 — Mesmo assim... Fico admirada com Sarah Harmon. Foi ela quem acabou resolvendo tudo. Assim como no caso de Kingston Hill. Foi ela quem resolveu tudo mais uma vez.

 — E como foi! Ela chamou eu e o Chapman na sala dela e nos contou os detalhes depois que voltamos ao DCAE aquele dia, enquanto você e o Joey guiavam Solis até a sala de trás.

 — Como foi que ela fez?

 — Foi como que eu te disse antes: concordamos que quem deve estar com a posse do convite original, bem como quem deve ter iniciado toda a série de situações paranormais em Sproustown, ou pelo menos a maioria deles, foi a gangue do chamado Wilkinson. Wilkinson contratou Solis com aquele pretexto infame, ele perdeu o convite de propósito conforme o próprio Solis sugeriu, e então Verde deve ter ficado sabendo e elaborado aquele ataque ao DCAE naquela segunda feira, para pôr as mãos em um convite falso que ele tinha preparado. Wilkinson então ficou apenas esperando a poeira subir mais e mais para o lado de Verde até que então resolveu pôr os fins na investigação com aquela explosão elaborada em Dalilah, sob o nome do Verde.

 — Eu sei desta história. Mas eu perguntei “como”, Henry. Como Sarah ficou sabendo? O que a levou a essa conclusão? Sabe... É isso que eu admiro nela... A capacidade de inferir os menores detalhes a partir de pouca coisa...

 — Ah, isso? Bem é justo como você mesma disse. Uma baita atenção a detalhes pequenos que nos passaram desapercebidos: primeiro, é indiscutível que foi Verde quem elaborou o ataque na segunda feira, envolvendo os Eufórbios, e isso você mesma que deduziu no carro naquele dia: só quem poderia ter falado no Verde para mim no telefone com a finesse da voz falsa era alguém do grupo do Verde, pois eles sabiam de algo que ainda não tínhamos deduzido que nos levava a eles, e pensavam que tínhamos deduzido, nos revelando o nome do chefe deles. Mas o fato de que o convite era falso, revelado por Solis, nos indicava que Verde não era aquele que possuía o original, e por conseguinte não era quem havia contratado o garoto para simular a farsa. Conclui-se que uma das duas gangues restantes -o Dragão ou o Wilkinson- teriam tentado usar do convite para aproveitar do desconhecimento dos demais e simular uma caça a Uahmyr.

 Isso sugere a solução para dois dos casos das últimas semanas: o óbvio ataque ao DCAE, e também o envenenamento de Crane, que deve ter sido elaborado por Verde, sob o pretexto de silenciá-la, pois como imaginamos: acreditavam que ela sabia de algo que não deveria saber, que nos levaria a eles.

 Assumindo a hipótese levantada por Sarah de que a morte de Johnson e do homem sem identidade tenha sido provocada por algum agente do próprio Wilkinson visando dificultar a relação civilizada de Solis para a polícia, o que provocaria o último recurso tomado pelo mesmo: entregar o convite sem conversar, temos então poucos casos em aberto: um: o serial-killer que matou McMiller e Sanford do DEA; dois: o negro da sexta feira, que teve relação com o sumiço de Alexander Sprohic e três: Bad Boy e Pierre. - Eu levantava um dedo da minha mão livre a cada número que mencionava.

 Ewalyn indagou:

 — Bad Boy e Pierre? Mas esse já não foi resolvido? Foram eles que arrombaram a casa do falso Cooper, não? Eles trabalhavam para o Verde... — Ela pronunciou Verde com a voz mais baixa, com nuance duvidosa e reticente, pois deve ter percebido enquanto proferia aquela palavra que algo não se encaixava.

 — Aí é que está! Eles não devem ter sido contratados por Verde conforme eles disseram no interrogatório. Não faz sentido, porque agora que sabemos que foi Verde quem elaborou o ataque ao DCAE, sabemos que eles achavam que tinham o original em mãos no dia anterior. Por que procurar algo que já se tem?

 — Mas então quer dizer que eles mentiram no depoimento?

 — Creio que não... Creio que foram induzidos a pensar que estavam trabalhando para o Verde. Sarah tinha levantado também esta hipótese. Um dos outros grupos deve tê-los contratado porque sabiam que com sua habilidade não seriam capazes de escapar do DCAE em Filliard Summit e acabariam sendo capturados, tendo de revelar uma inverdade que traria ainda mais suspeita de Verde a nosso departamento. Então estamos trabalhando com esta hipótese. Mentira proposital ou não, trata-se de mentira. Quem contratou os dois foi um dos outros: Dragão ou Wilkinson. A sacada de Sarah foi usar estatística: lembra como no depoimento dos dois, o agente do Verde que os contratou era magro, alto e usava roupas que o escondiam completamente? Essa descrição lhe parece familiar? É claro... Existe uma possibilidade remota de não ser ele, mas acredito que estejamos falando do...

 — Paranormal (negro) da sexta-feira! — Dissemos ao mesmo tempo.

 O ‘negro’ fui só eu que falei...

 Ewalyn advertiu:

 — A propósito, essa é uma forma meio pejorativa de se referir a ele, Henry...

 — Ha! Posso imaginar o desgraçado dizendo a mesma coisa! Detalhes à parte, pode me dizer se faz sentido: quantos seres paranormais existem em Sproustown? Meia dúzia? Uma dúzia? Eu imagino que não devem ser muitos... Há nós do DCAE, e então há os mercenários de cada dos três grupos, mas nada mais que isso. Se fosse corriqueiro usar indarra lá e cá, isso seria uma catástrofe! Então lhe pergunto: quantos deles devem bater exatamente com a descrição daquele homem com quem lutamos eu, Joey e Crane? Tudo indica que deve ter sido ele quem contratou aqueles dois. Então estamos trabalhando com essa suposição.

 Ewalyn estendeu a mão, como que pedindo mais um cigarro:

 — Vocês trabalham com bastante suposição...

 — Mas é o que faz mais sentido! Escute o resto: essa hipótese resolve todos os casos restantes: suponha que o negro trabalhe não para o Verde mas para um desses grupos restantes. Ele apareceu em dois conflitos: o da casa de Alexander e o de Dalilah. Qual seu objetivo na casa de Alexander? Isso é óbvio: sequestrar Alexander para silenciá-lo. Quem tem como objetivo silenciar Alexander? Aquele que planejou a explosão de Dalilah. Lembre-se que Chapman havia encontrado Alexander ontem de manhã, e todo o esquema pela voz falsa do telefone foi feito não só para dar cabo em mim, que estou na frente da investigação, mas também para que desse tempo de sequestrar o irmão de Sprohic de novo. Percebe? Seria muita coincidência se fosse outra pessoa. Esse negro deve estar trabalhando sob as ordens de Wilkinson.

 Ewalyn, já com o cigarro em mãos, começou a tragar do mesmo:

 — Você quer dizer... Trabalhando para a equipe terrorista que elaborou a explosão de Dalilah com o pretexto da transação falsa. Mas como Sarah deduziu que esta equipe era do Wilkinson e não do Dragão?

 — Para isso devemos dar crédito ao Chapman... — Ewalyn me olhou com uma cara de deboche — lembra daquele dia que ele disse que tinha encontrado tipos diferentes de Deluxes vendidas por grupos traficantes em Sproustown, de áreas diferentes? Sarah ouviu em Silverbay que essas três áreas de vendas são representadas justamente por Verde, Dragão e Wilkinson. Afinal não haverá uma quarta gangue traficando e competindo com esses a menos que também tenha poderio mercenário paranormal, o que é absurdo. Pois então... Chapman guardou aquelas amostras. E Howard do DEA guardou uma amostra daquilo que foi apreendido em Dalilah nas caixas, antes que pudéssemos as devolver ao local antes que explodissem. Ele ficou com um saquinho. Nosso pessoal comparou as amostras e adivinhe só: aquelas de Dalilah não eram drogas, eram balas de goma! E eram do mesmo formato que as drogas fornecidas pela gangue da parte norte da cidade, que é associada a Wilkinson segundo os relatos de Solis e Sarah. É fácil entender porque o mafioso preferiu usar balas de goma ao invés de drogas de verdade no seu truque: se for para explodir, melhor perder nisso o mínimo dinheiro possível. Então temos duas possibilidades: ou o próprio Wilkinson elaborou o esquema, ou Dragão. Mas a segunda possibilidade gera um conflito lógico: porque Dragão teria pacotes guardados de balas de goma imitando as drogas de Wilkinson? Comprou? Mandou fazer? Se for para perder o mínimo dinheiro possível na explosão ele não mandaria fazer, usaria algo que já tem. E quem teria balas de goma daquele tipo? O próprio Wilkinson! Ele é o único que poderia usá-las futuramente para disfarçar alguma mercadoria caso tivesse alguma carga interceptada pelo DEA. Se Dragão tivesse mercadoria falsa seria para imitar do tipo do negócio dele, e não do dos outros.

 Ewalyn colocou o restante de seu cigarro no chão.

 — E você disse que essa suposição resolvia “todos” os casos restantes..?

 — Disse! Ainda há um gancho aí que não foi esclarecido: porque o negro da sexta-feira queria tão veementemente sequestrar o irmão drogado do Sprohic? Esse jovem estava obviamente metido com o tráfico. Agora pense: o princípio de toda essa semana conturbada se deu em frente à casa de Sprohic, com a morte de McMiller. Na época apenas prendemos o principal suspeito e este foi transferido para Silverbay. Mas e se esse crime, conforme indicou Solis, tivesse algo a ver com o tráfico? E se seu irmão soubesse a verdade sobre o crime o tempo todo? Ele precisaria ser silenciado. Isso conecta o crime de Gerald ao negro da sexta-feira, e também o assassinato de Sanford do DEA, que ocorreu exatamente da mesma forma e todos nós sabemos que não teve nada a ver com o caso do lobisomem, porque o lobisomem é a Crane. Então eu creio que tanto os Sprohic quanto Sanford morreram porque sabiam demais. Isso conecta ainda mais o negro ao Wilkinson, pois foi Wilkinson quem elaborou o esquema da explosão via telefone.

 Ewalyn ergueu as sobrancelhas em admiração.

 — Uau... Fica tudo quase plausivelmente explicado.

 — Eu que o diga. O instinto de Sarah nunca falha. Se ela acha uma trilha lógica ligando os fatos quase sempre é o caso. Se houver alguma discrepância com a realidade deve ser mero detalhe ou dois.

 — Mas e o lutador negro? Você disse que ele foi encontrado queimado dentro dos escombros da Dalilah depois que a equipe foi lá revistar. Chegou a ver o corpo? Era ele mesmo?

 — Era sim. O próprio. Joey e Crane também confirmaram.

 — Você não tinha dito que ele era para ser um homem-lagarto? Tinha corpo de humano alterado...

 — Eu devo ter me enganado... Provavelmente ele era só inexperiente e não tinha pensado em envenenar o gás da granada conforme antecipei.

 — E o bastão de silisolita?

 — Deve ter sido adquirido ilegalmente... Não sei.

 — Ah...

 Ewalyn permaneceu calada por um instante.

 — E última questão, Henry: tudo isso está sendo baseado na veracidade do depoimento de Solis... Por que decidiram que ele não está mentindo?

 — Fora de cogitação segundo o raciocínio de Sarah: Eliott Solis mentir sobre sua versão implicaria que ele tem algo a ganhar com isso, o que nos reduz à possibilidade de que ele trabalha para uma das três gangues. Mas lembre que Solis foi o primeiro a aparecer com o convite. Conforme dito anteriormente, se Wilkinson era o único que tinha o convite original, só faz sentido que ele trabalhe para Wilkinson, pois como os outros dois conseguiriam reproduzir convite falso sem o original? E se ele trabalhava para Wilkinson ele tinha interesse em silenciar Sprohic ontem, quando ele foi encontrado por Chapman. Mas então ele nem faria sentido ele ter sido encontrado no estabelecimento do centro. Lembre que na versão dele ele encontrou o moleque dentro de uma geladeira em um hotel de High Cheawuld Garden e o trouxe para Noble Avenue para que pudéssemos interrogá-lo e então acabou sendo ameaçado por telefone antes que nos encontrássemos. Se ele trabalhasse para Wilkinson não teria nem mencionado Sprohic, pois eles o queriam silenciado. Não se precisaria elaborar o esquema da imitação da voz de Sarah novamente no telefone contra Chapman, para sequestrá-lo uma segunda vez.

 — E aquilo que Solis disse sobre Jim Sanford, o falecido do DEA?

 — Que Sanford era traficante? Aquilo é mera suposição dele. Ainda está sendo investigado.

 — Bem... Parece que tudo se resolveu com esse último depoimento de Solis.

 — O mistério, sim. Agora vem a parte da ação. Quero ver é botar as mãos em Wilkinson, em Verde e no Dragão. Saber da existência é uma coisa, prender é que são elas.

 Levantei-me da pequena mureta sobre a qual estávamos sentados e me espreguicei. Voltei-me para Ewalyn que continuava sentada. Ela indagou:

 — O que aconteceu com Solis, falando nisso?

 Suspirei.

 — Será liberado para viver em Sproustown segundo Sarah. Como não tinha dúvidas da inocência dele depois desse último episódio ela acabou concordando em conversar com os superiores sobre deixá-lo viver aqui mesmo como paranormal ilegal, desde que respeite algumas condições de monitoramento.

 — E o Joey? O que ele achou sobre o Verde em Helmsley?

 — Um restaurante que servia de lavagem de dinheiro. E também de depósito de itens ilegais. Ficava anexado ao prédio, com uma entrada pela lareira do lobby. Vou te contar uma coisa interessante que ele me contou: a entrada secreta estava arrombada quando ele foi investigar.

 — Como?

 — Isso mesmo. Estavam consertando a lareira, mas dava para ver a entrada atrás. Ele disse que era como se alguém tivesse quebrado a parede com indarra recentemente.

 — Que coisa...

 — Isso pede mais um cigarro, não?

 — Bem... Alguém deve ter entrado lá procurando alguma coisa. Alguém que não o Verde. Pois o próprio pessoal do Verde não teria quebrado a passagem, teria entrado da forma correta, seja por acionar um botão ou... — Ewalyn dispensou novamente meu cigarro oferecido com um aceno. Acendi o meu.

 — É... E seja o que for que foi encontrado... Nunca saberemos. Joey quando investigou não achou nada de ilegal por lá. A versão dos garçons era muito esquisita no entanto, não se pode negar que é muito suspeito um compartimento secreto num restaurante daquele tamanho, e eles ainda estavam acobertando um caso de violência que tinha ocorrido, então ele decidiu por interditar o local até a situação ser averiguada.

 — Parece que temos mais um caso.

 — Parece que temos mais um — concordei.

 Ewalyn também resolveu levantar-se e admirar o frescor do vento que emanava por entre as quebradas paredes que cercavam aquele local abandonado, agora sem teto e de aparência precária, que um dia tinha sido uma estação de ônibus. Eu comentei:

 — A partir de amanhã, o DCAE terá mais casos. Mais trabalho. Apenas outra era começou. A era da perseguição ao invés da era da investigação. Afinal certas coisas nunca mudam, não é?

 — Certas coisas deveriam mudar, todavia...

 — Como...?

 — Você contornou o assunto exacerbadamente e não chegou a me responder: o que vai fazer a respeito de... “Jane”?

 — Aquilo? Eu não sei, Ewalyn... É como você mencionou outro dia: o amor é uma coisa estranha não? Eu apenas queria... Que relacionamentos não fossem assim tão... Complicados.

 — E não são, Henry.

 Ewalyn se virou para mim, aproximou seu rosto do meu e me beijou.

 Assim, de repente! 

 Em meio a seus braços meu coração palpitou rapidamente como nunca, naquela sensação quase esquecida, familiar e nostálgica, que já não sentia há muito tempo.

 Aquele calor dos lábios que se transforma em um frio na espinha; aquele momento de olhos fechados onde se enxerga mais do que o dia inteiro com eles abertos; aquele pequeno momento que distorce a sensação do tempo, tornando-o inesquecível.

 Naquele momento o mundo se tornou novo novamente.

 Depois daquele momento não lembro exatamente do que veio depois. Teve mais conversa, falamos de mais coisas antes de irmos cada um de volta para casa... Cada um para seu lado... Mas nem eu e nem Ewalyn nada mais falamos sobre o que houve ali.

 É claro, foi algo que não me saiu da cabeça pelo resto do dia no entanto

 Aliás, muita coisa estava se passando pela minha mente durante o resto daquele dia, quando encontrava-me sentado no banco de meu carro a caminho de casa: Retomei a expectativa dos novos casos a serem tratados nos dias seguintes, relembrei as desconfianças alheias que caíram por terra: não só do Chapman como de Sarah. Te contei que vi um papel na mesa de Sarah quando fui ao escritório dela conversar sobre o caso? Era um formulário burocrático assinado para prestação de contas de integrantes paranormais em instituições governamentais: lá constava que ela era uma Chelopicera. Em outras palavras, era uma alien, e não barata parasita. Após ver aquilo a teoria conspiratória de Joey caiu por água abaixo e pude ficar mais sossegado.

 Mas na verdade eu estava tão ao contrário de sossegado que nem prestei atenção no trânsito direito. É claro que embora tentando colocar em ordem meus pensamentos, apenas um deles sobrepunha-se a todos os demais: o momento vivido por eu e Ewalyn naquele local.

 E nem lembro direito também do local. Aquela estação abandonada. Porque estávamos lá mesmo? De quem foi a ideia de descer ali para fumar cigarro?

 Não lembro nem direito a data, para ser sincero.

 Era terça ou quarta? Só sei que foi depois da solução de Sarah.

 A junção de todos os acontecimentos daquela semana: a explosão de Dalilah, o depoimento de Solis, a solução de Sarah, e o momento com Ewalyn, marcavam para mim o começo de uma nova era. Uma era de intervenção na investigação do DEA e da polícia de Silverbay. Uma era de luta. Uma era diferente de toda a realidade fechada na que eu estava vivendo até então.

 E para fazer jus àquela nova era, eu sentia-me na necessidade de tomar partido. Tal como sugerido eu precisava rever minhas posições sobre minha vida pessoal. Certas coisas permanecem como sempre, mas certas coisas devem ser mudadas... Devem ser mudadas para melhor.

 E foi com mais ou menos essa linha de maré de pensamento que me despedi de Ewalyn e dirigi até minha casa naquela noite.

 E quando cheguei, sem nenhuma surpresa eu ouvi o mantra:

 “Henry? Henry, é você? Onde você estava? Eu estava esperando o dia todo! Não ligou o celular...?”

 Sim...

 Certamente algumas coisas devem ser mudadas para melhor



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