Hinderman Brasileira

Autor(a): Oliver K.


Volume 1

Capítulo 23.1: O Dia que o Sub me Levou Para Jantar à Luz Intensa

 Vou começar narrando dois fatos curiosos. Mas vou começar pelo primeiro deles:

 Eu fui ver o Wilkinson naquele dia.

 Aquele velho com cara de turista aposentado.

 Eu me disfarcei de Barbarah (ou seja, permaneci normal) e fui encontrar com ele, para conversar a respeito das tarefas do outro dia, o que achei um tédio, porque tudo que eu tinha que reportar já reportei para a jararaca da Greta.

 Ele não estaria no Bodongo desta vez. Estaria no porto. O porto ficava do lado oeste da cidade, o que é óbvio, porque no oeste que tem o lago. Wilkinson me chamou usando a ligação do meu telefone descartável.

 Tirando passeios de ônibus enfadonhos de lado, só vou descrever o que vi lá: um velho com cara de bonachão, redondo e bronzeado, com camiseta havaiana e sandália. Tinha até um chapeuzinho desses quase triangular.

 Pelo formato do rosto eu chamo de velho bolachão.

 Nem parecia o Wilkinson. Algo de muito bom devia ter acontecido aquele dia. Porque ele não chegou xingando... No normal ele falaria “maldição do inferno” ou algo assim.

 — Você está aí... — Apesar de ameno, o tom ainda era um pouco rabugento. — Entre. Não vamos ficar aqui fora.

 Caminhei para o barco dele. Estava um pouco escuro... Mas não escuro do nível do esconderijo do Dragão. Era um escuro “sala do Craig.”

 — Essa merda de lâmpada... Fica falhando. Já mandei arrumar quinhentas vezes. — Ele apontou para a mesma. — Sente-se. Tudo está uma porcaria, eu sei. Mas é porque eu nunca venho para cá. Só quando eu tenho que fazer essas...

 Ele não encontrou palavra. Terminou uma frase com um gesto apontando a mão para o ar com a palma para cima.

(De todas as pessoas, você se explicando para mim Wilkinson? Que fofinho...)

 — E então? O que houve na semana passada?

 Imaginei que ele ia perguntar isso. Mas por que ele não pega a informação com a Greta?

 — Eu fiz o que foi pedido... O DEA caiu na pista falsa que eu coloquei na casa do zumbi. A Greta deve ter avisado o senhor...

 — Ela comentou a respeito. — Wilkinson respondeu em tom categórico enquanto sentava numa cadeira rente à mesa. Eu, no meu costume, me esparramei no sofá sem pensar, como se fosse a sala do Craig. Espero que não tenha parecido que eu fiquei à vontade demais.

 — Foi uma pequena amostra de sangue do laboratório da Greta que coloquei num pedacinho de ferro mínimo que acabou servindo de pista. Quem achou foi uma jornalista que entregou a pista para um membro do DEA, um homem que depois a Greta identificou que está vinculado ao DCAE ou algo assim.

 Wilkinson bufou.

 — Então quer dizer que os oprobiosos do DCAE têm conhecimento da pista. — Virou os olhos — Quanto tempo dá para eles descobrirem que foi falsa?

 — Acredito que devam ter descoberto no momento que a pista foi entregue, senhor...

 — Era uma pergunta retórica, Barbarah! Que seja. O DCAE já está focinhando desde o começo mesmo. O que importa foi que os malditos do DEA ficaram de fora.

“Heh heh...”

 Heh heh era a risada que ele soltou. Era aguda e típica de um velhaco de setenta anos. Eu nunca tinha ouvido a risada daquele velho ranzinza... Ele só soltou duas baforadas de riso: “heh” e “heh”, e mexeu o peitoral ao pronunciar cada uma.

 Primeiro ouço do Dragão e agora dele. Só falta a Greta me surpreender com uma risada.

 — E como que o DEA acabou vendo o segundo ataque? O do lobisomem?

 Pensei antes de responder.

 — O DEA... Ao que tudo indica... Comprou, ou pelo menos fingiu que comprou, o que a polícia do DCAE vendeu: o serial killer do atropelamento. Mas o DCAE não deve pensar da mesma forma.

 — Claro que não, Barbarah! Não são um bando de idiotas! E o que ele pensa? O que o DCAE pensa? Isso que quero saber. Eles pensam que foi mesmo um lobisomem?

 Fiz cara de não sei.

 — Isso só a Greta para saber, senhor. Se for para...

 Wilkinson começou a dizer uma frase justo em cima da minha então eu parei para ouvir.

 — Diga... — Ele me convidou a continuar.

 — ...Se for para pra pensar... Se eu fosse policial do DCAE não acreditaria no papo do lobisomem. A intensidade dos dois ataques, que foram separados por uma semana, estava muito similar. Há três semanas atrás quando Gerald McMiller morreu, eles devem ter cogitado mordida de zumbi, mas depois que Sprohic foi preso e a outra morte aconteceu eles devem ter analisado de modo mais minucioso. Eu teria feito uma análise mais minuciosa pelo menos... E visto que o ser paranormal autor dos ataques não perdeu força em uma semana de intervalo, seria estranho identificar como lobisomem, pois indicaria que o lobisomem tem mesma intensidade de força em semanas diferentes do ciclo, e nós conhecedores do mundo paranormal sabemos que sua força na verdade varia de acordo com o pico...

 Wilkinson fitou o teto.

 — Boa observação. Se fosse mesmo um lobisomem ele teria tido mais dificuldade para retirar o mesmo tanto de pedaço de carne de Jim, embora não teria tido grandes problemas. Assim a inspeção teria detectado mais pistas no corpo. Não teria sido feito com uma mordida só igual no ataque anterior.

 — Não é?

(Então até mesmo o faustuoso Wilkinson reconhece a cuidadosa análise de pormenores de Bubble... Embora ele não fale com essas palavras...)

 — E se não lobisomem, você acha que foi o que?

 — Eu chutaria que é um vampiro. Mas não sei ao certo se faz sentido.

 — Então você concorda com Greta...

 Wilkinson ficou uns instantes pensando com seus botões e me deixou no vácuo.

“Pego o celular e começo a jogar? O que faço?” —pensei, mas logo ele quebrou o silêncio afligente.

 — E como foi que ficou resolvido o caso do Jim? O DEA sumiu.

 — Ah isso? Eu apenas espalhei um boato — Na verdade tinha sido Craig que espalhou, mas óbvio que não disse... — de que tinham visto uma figura suspeita por ali. Falei com os fofoqueiros e fofoqueiras... E então a polícia começou a ficar sabendo... E agora estão procurando um serial killer humano em investigação independente e desvincularam o caso da polícia do DCAE.

 — Isso foi uma jogada e tanto. Acabamos despistando os malditos do DEA por mais tempo que eu esperava. Inclusive já tive oportunidade de repor o porcaria do Jim. Ele é um crápula que exige muito mais dinheiro. Entrou para alfandega agora: o Parker... Rasgos no céu! Como foi horroroso começar a fazer contato! E como penei em achar como fazer para não levantar suspeita... Ainda bem que tudo acabou.

 (Esse tipo de coisa já não me diz respeito, sr. Wilkinson...)

 — Foi um ótimo trabalho, Barbarah.

(Estou ficando mal-acostumada com você fazendo elogios ao invés de críticas desse jeito.)

 — Ótimo trabalho o que você vem fazendo, e por isso — Wilkinson empurrou a cadeira para a direção do sofá e se curvou, empregando um tom mais delicado — queria lhe convidar a realizar mais um trabalho... Você sabe... na sua área de expertise.

(Ah. Agora tudo faz sentido. Você só queria me pedir um favor.)

 — Pagando bem...

 — Claro! Claro, discutiremos o preço em seguida. O que acontece é que a Greta encontrou o local do convite.

 Fiquei boquiaberta.

 — Do Cooper!?

 Eu achava que nós do Dragão estávamos mais perto de por as mãos no convite. Eu nem sabia que eles sabiam se o convite estava com o Dragão ou com o Verde... Achei que quem sabia isso era só eu e o Craig! Como eles ficaram sabendo?

 — Sim! A turma do nefasto Verde fará um transporte de carga ilegal hoje, mais à tarde. — Wilkinson se referia às drogas pesadas Deluxes, as quais aliás ele mesmo vende — e você vai interceptar. O convite vai estar lá! Ficamos sabendo de fonte confiável.

 — Bem, se o sr. está dando uma ordem de serviço não vejo problema, mas... Espero que seja mesmo uma fonte confiável. 

 — Já foi checada, Barbarah! Seu único alvo é o convite, entendeu? Ponha as mãos nele e que se dane todo o resto. Volte direto para cá!

 Num gesto quase que provocativo meneei minha cabeça para cima e para baixo.

 Adoro provocar o velho ranzinza.

 Teve um pequeno resto de conversa, mas não é interessante.

 Depois que eu saí do barco eu fui falar para o Craig, que como você sabe é para quem eu reporto minhas ações como informante do grupo do Dragão.

 E chega aqui o segundo fato curioso: encontrei mais uma pessoa inusitada: quando cheguei na frente da casa do Craig, ao invés de ver sua figura relaxada de bermuda, chinelo e bíceps à mostra, me deparei com um ser esguio e branquelo, de pele enrugada, feio, novo e velho. Novo em idade e velho em aparência. Um ser com uma aura repugnante.

 Era o Sub-Zero. Eu não o via há meses.

 — Você por aqui?

 — Eu que repito. — Respondi — O que você está fazendo na casa do Craig?

 Ele olhou para trás e ao redor.

 — Tratando de negócio... Ele está lá dentro. — Apontou com o polegar — E você? O que vai fazer hoje?

 — Trabalho! Coisa que um de nós não tem feito ultimamente. Afinal acharam o convite do Cooper... Então eu vou lá abater umas figuras e pegar.

 — Só mesmo a jovem Bubble. Acha que é seguro soltar “convite do Cooper” por aí assim, no meio da rua? — Ele me olhou com sua cara de desdém infundado, a qual dirigia para todos colegas de trabalho.

 — Nenhum vizinho sabe do que se trata Cooper. E por que não ir mais adiante: humanos comuns são tão tapados que não sabem o que significa “convite”, e arrisco dizer: não sabem o que significa “do”.

 — Eu só espero que você não acabe caindo vítima de finesse de ninguém. Até mais.

 Sub-Zero se dirigiu para fora da propriedade do Craig. Eu já havia entrado (o portão se encontrava aberto) então ele passou por mim e me deu as costas.

 — Sub...

 Ele parou.

 — Você vai voltar a fazer parte do grupo ativo do Dragão?

 — Sim... E você... Vai pegar esse convite e voltar para cá?

 — Talvez.

 — Aonde você vai?

 — Antiga Dalilah. É na agencia da transportadora. Fica em South Gorem.

 Ele alcançou o celular no bolso, para anotar o local.

 — Muito bem... Depois eu pergunto como foi. Vamos ver se conseguimos acabar com essa saga do convite do Cooper de uma vez por todas.

 E saiu sorrateiro.

 Tipo esquisito.

(Você não fez parte nenhuma na saga toda e agora quer dar uma de mandão, Sub-Zero.)

 Adentrei a casa de Craig, que era como eu fazia de costume, já que toda vez estou por ali mesmo. Quem vi primeiro foi a Marcelle, que não me viu, mas ouviu:

 — Oi. Seja bem-vinda novamente. — Ela usava um avental pendurado, sujo de tinta. — Ah isso? Eu estava trabalhando. Aí eu ouvi os passos...

(Como ela sabia que eu estava olhando para o avental dela e me perguntando por que ele estava sujo daquele jeito? Ela por acaso pegou a finesse do Craig por osmose?)

 — Craig está lá dentro. Fique à vontade.

 — Er.. Obrigada.

 Limpei o calçado no pano da entrada e fiz conforme ela pediu. Joguei-me no sofá da sala. A propósito o “lá dentro” a que Marcelle se referia era o banheiro.

 Para meu desespero ela permaneceu em sua cadeira na sala, ao invés de voltar para o quarto.

 — Er... Não se incomode. Pode voltar a seu trabalho se quiser.

 — Imagina. Não é incômodo nenhum...

 Silêncio constrangedor. E ela sorria com sua cara peralta enquanto olhava para o meio da sala. Bem... Olhava não era o termo certo. Ela estava virada para o meio da sala. Isso.

 Ela saltitou a parte de cima do corpo de repente, exclamando de sua cadeira:

 — Já sei! Vou te mostrar o que eu estou fazendo.

 Ela foi e voltou com um pequeno quadro com uma de suas pinturas.

 Eu detesto esse tipo de coisa. O que eu deveria dizer? “Ah, bom trabalho?”

 Como você sabe, Marcelle é profissional. E seus trabalhos rendem dinheiro, mas acontece que eu não entendo nada de arte moderna assim não saberia diferenciar o ouro do lixo.

 Achei melhor omitir minha opinião e deixá-la com a narrativa, que eu ganhava mais:

 — Oh. Sobre o que é?

(Para mim tratava-se de um monte de rabiscos)

 Marcelle se empolgou e começou a falar coisas sobre filosofias de autores dos anos 1600 e algo do tipo. Não entendi muita coisa. E pior que Craig parecia não sair do banheiro nunca. Ele estava com disenteria?

 A tortura levou uma meia hora mais ou menos. Mais para menos. Mas se eu tivesse meia hora de vida e eu pudesse escolher onde passar eu passaria ali, pois o tempo era lento que parecia uma eternidade. Podia transformar meia hora em eternidade desse modo, vivendo então para sempre.

 Afinal ela cansou e voltou para o quarto, a fazer seu trabalho. E Craig, o sádico, saiu do banheiro só depois.



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