Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 25: Evacuação

Em meio a areia e ventos fortes batendo em seus rostos, Lucien e Oliver seguiam apressados na direção da Floresta Frondosa. O curandeiro guiava os cavalos e mantinha seu olhar fixo nas árvores, enquanto o jovem mago não parava de olhar o fogo se alastrando pela muralha ao longe.

— Você acha mesmo que é uma armadilha? — Lucien batia as rédeas cada vez mais forte para apressar os cavalos. — Sei que você e a Leanor não são bem vistos, mas não acho que iriam tão longe.

— Não quero falar sobre isso — respondeu amargurado. — Se concentre no caminho.

— Oliver, meu pai é do Conselho. Você está colocando ele como vilão dessa história também.

— Chega, Lucien!

Posto um fim na conversa, o jovem mago voltou para a carga para sentar-se ao lado da garota vermelha. Leanor ainda estava desmaiada. Seu corpo foi coberto com o que restava de sua manta e continuava um pouco trêmulo, mas ela estava segura.

Oliver estava sozinho com seus pensamentos, somente olhando para o rastro de areia deixado pela carroça. Sua respiração estava acelerada. Parecia que a ansiedade tinha feito seu pulmão ser reduzido pela metade. Muitas informações estavam correndo por ele.

O pior era o fato de Marc ser o invasor que matou Placide.

Admitir a fala de Lucien era difícil. Parecia loucura imaginar que eles haviam sido traídos pela única pessoa que os defendeu contra todos. Era ainda pior quando ele lembrava da fala do mestre, confirmando que o invasor estava morto. Uma mentira contada com naturalidade enfurecedora.

— Acho que a gente deveria ter continuado escondidos em casa — sussurrou olhando para a companheira de equipe.

De repente, em uma brusca parada, o garoto foi jogado para o lado da frente da carroça. Por pouco conseguiu evitar que Leanor batesse a cabeça. Olhando para fora, viu os cavalos agitados, empinando diante das primeiras árvores da grande floresta.

— Oliver! — Lucien estava tão agitado quanto os animais. — Já chegaram aqui.

Quando o garoto olhou com mais atenção, percebeu uma luz vindo de trás das árvores. Eram chamas leves e rápidas, correndo pelas árvores. Tinham uma coloração estranhamente verde e não pareciam queimar as folhas.

— Eu vou lá — disse descendo da carroça.

— Ficou maluco? — Lucien ainda tentava controlar os animais.

— Você fica aqui com a Leanor. Eu vou descobrir o que é. Se for algum invasor, te dou um sinal para fugir com ela.

Antes que ele pudesse ouvir qualquer um dos bons contra argumentos do curandeiro, Oliver se apressou em entrar no vilarejo.

 

 

Passando pela beira da mata, o jovem mago tentava se aproximar de onde parecia ter uma batalha.

As labaredas continuavam correndo pelas árvores. Mantinham um movimento sincronizado e pareciam correr em linha, como se fossem uma grande lâmina cortando o ar. No entanto, ao atingirem a madeira, não faziam nada além de passar por cima, sequer deixando um rastro de queimaduras. O alvo delas era outro.

Oliver decidiu avançar, porém, quando uma das brasas caiu nas folhas onde ele se escondia, queimou seu ombro como um fogo ardente de fornalha. Com o susto, o garoto recuou de novo para analisar a situação.

Era possível ouvir lâminas assobiarem ao serem travadas uma na outra com diversos golpes. Vez ou outra, começava um som sutil parecido com faíscas caindo em uma trilha de álcool. Junto disso, vinham as chamas verdes.

Não havia forma segura de se aproximar mais do que já havia feito. Oliver sentou-se debaixo de algumas folhagens e concentrou sua energia espiritual para poder observar melhor com a Dupla Vista.

Ainda era difícil ativar a estranha habilidade tão rápido, mas estava melhorando. Quando se atentou para onde os sons de luta estavam vindo, percebeu duas mulheres se digladiando.

A dona da espada de fogo era a mesma que ele viu ao lado de Leanor e do mestre arqueiro que os ajudou. Ela se desdobrava em movimentos rápidos e flexíveis, com ataques quase instantâneos seguidos de um recuo seguro e lento.

Já sua adversária era desconhecida e atacava brutalmente. Tinha vestes sujas e o corpo coberto de sangue. Seu sorriso manchado de carne e vísceras nunca se desfazia, mesmo com os ferimentos. O garoto chegou a ter a impressão de ver a mulher ficar ainda mais eufórica quando levava algum corte.

Desviando-se um pouco da luta, decidiu procurar por mais pessoas ao redor. Parecia não haver mais ninguém, apenas cadáveres. No entanto, mais alguns metros para dentro do vilarejo, tinha um corpo caído ao lado de alguém. Ambos vivos.

Aquele que estava em pé parecia virado na direção do jovem mago. Oliver tentou usar um pouco mais de sua energia espiritual para ver quem é, mas percebeu que a pessoa notou sua presença.

Rapidamente, ele abaixou a cabeça, mas ainda recebeu um leve corte no lado da testa. Uma flecha passou zunindo seu ouvido.

Quando levantou-se para tentar ir até onde aquelas pessoas estavam, ele já estava com outra flecha apontada para sua cabeça. Era o mestre arqueiro da Leanor, que chegou sem fazer um único som.

— Ah, é você — suspirou. — Veio fazer o que aqui?

— O que está acontecendo?

— Invasores. Uma torturadora está lutando contra a Marcelle. Ela feriu alguns aprendizes, principalmente o garoto da espada de pedra, mesmo com toda a força dele. Esses malditos estão ficando cada vez mais poderosos.

— E Prospéria? O que houve lá?

— Não sei ainda. Você veio das Terras Taciturnas, certo?

— Sim. O necromante estava lá. Já está morto, mas...

— Cadê a garota vermelha? — Ele voltou a apontar a flecha para a cabeça do Oliver.

— Ela está bem, eu juro! Salvamos a vida dela, mas os ferimentos foram graves.

— Porcaria.

O mestre arqueiro olhava pensativo para as chamas e para o caminho que seguia até o vilarejo. Guardou o arco nas costas e virou-se para falar com Oliver:

— Ela também veio para cá?

— Sim. Usamos uma carroça. Ela e o Lucien estão aqui perto.

— Ótimo, o curandeiro vai ser útil — disse enquanto ajudava o jovem mago a se levantar. — Outros três aprendizes que estavam aqui já se recuperaram e foram na frente. Ache algum cavalo dentro do vilarejo e chegue em Prospéria rápido. Vou cobrir a sua saída.

Sem questionar, Oliver seguiu correndo pela mata até chegar na estrada principal do vilarejo.

 

 

Chamas consumiam toda a extensão da muralha enquanto uma grande sombra pairava sobre Prospéria. Grupos enormes de invasores estavam chegando no vilarejo e se comportavam com mais violência do que os animais predadores mais selvagens e isolados do continente.

Bruce corria montado em seu grande leão por todas as fronteiras e dava início ao plano de evacuação criado pelo Conselho.

Cada guerreiro de Elite e cada aprendiz remanescente no vilarejo deveria escoltar os cidadãos para a saída Leste, na direção da Floresta Frondosa. Com a maioria dos mestres lutando na muralha para impedir a chegada de mais invasores, somente o Conselho iria lutar dentro do vilarejo.

Os pelos do grande animalista arrepiavam de raiva com a traição de Bernard. Seu rugido conseguia ser mais alto do que o de Taeko, fazendo o leão entrar em uma competição com seu domador.

Toda a raiva simplesmente era uma tentativa de extravasar a dor. Uma ferida profunda criada pela culpa.

"Eu deveria ter sido cauteloso. Ele usou aquele garoto para tirar nossa atenção do que realmente estava acontecendo", pensou.

Ainda faltava chegar na fronteira Sul. Bruce resolveu correr pela fronteira Oeste e ver como os demais membros do Conselho estavam indo.

A alcateia do senhor Durant caçava os canibais como se fossem coelhos, facilmente sendo pegos, mas com cuidado de serem somente imobilizados pelos animais.

Adélard fazia parecer com que as explosões de barris de óleo no topo da muralha não fossem nada além de bombinhas festivas. O Conselheiro fazia jus ao nome "Pira de Flamus" dado à sua espada.

Ele guiava a lâmina com leveza e precisão, criando círculos de chamas que subiam como torres, cercando os inimigos com facilidade.

Apesar de tudo, alguns ainda eram rápidos e inteligentes o suficiente para se esconder e transpassar.

Um deles chegava perto de Bruce para um ataque com um machete. Era um homem franzino e pequeno, mas ágil como um leopardo. Estava vestindo uma máscara de ferro que tapava completamente sua visão.

Por conta disso, nem mesmo os dentes afiados e o olhar feroz e cicatrizado de Taeko o fez ter medo do confronto.

No entanto, antes que o grande animalista pudesse dar seu contragolpe, uma salva de pequenas flechas o atingiu em cheio. Todos os disparos foram precisamente feitos em pontos vitais. Foi como uma acupuntura aplicada à distância, desligando totalmente as funções do corpo.

Ao olhar para trás, viu a Conselheira Deschamps acenando. Ela estava no alto de uma grande pilastra dourada feita de luz. O escudo do Conselheiro Etienne a protegia enquanto ele mantinha aquela gigante construção de pé.

— Vá logo! — gritou a pequena senhora. — Temos muito o que fazer.

Bruce só abaixou a cabeça em agradecimento e correu para o setor Sul.

Mesmo podendo ver claramente, sentia que uma escuridão preenchia o interior do vilarejo. Bernard estava lá lutando com alguém, mas não iria durar muito. Precisava ser rápido para poder se concentrar em enfrentar o traidor. Era a segunda parte da sua missão naquela noite.

Chegando em seu objetivo, viu um garoto que parecia perdido no meio da estrada. Ele olhava para os lados como se tentasse entender onde estava.

— Ei! — chamou-o com seu vozeirão. — Volte para a Baía de Cristais e fique em casa.

Quando o garoto virou-se para encarar o Conselheiro, seu rosto parecia familiar.

— Espera, você é aquele lutador de fogo, não é? A gente se conheceu na cerimônia. Vem aqui, vou te levar para a saída Leste. Você tem que ajudar na evacuação.

Quando o garoto começou a correr, suas mãos e pés começaram a incendiar com o poder da sua Natureza. Sua velocidade aumentava e o calor começava a se aproximar, fazendo Taeko rosnar e mostrar os grandes dentes.

O garoto juntou os punhos e deu um soco como se fosse uma estocada na lateral do leão. O impacto empurrou ambos para trás, mas Bruce ainda se manteve montado na fera.

As chamas, embora poderosas, não fizeram mais do que simples chamuscados no pelos grossos de Taeko. Aquilo mais o irritou do que machucou.

Após dar alguns tapinhas na fera e segurar sua juba, Bruce o amansou. Voltando a olhar o garoto, percebeu o problema.

— Não... — lamentou enquanto olhava para um comprido corte no pescoço do jovem.

Já havia vítimas entre os guerreiros. E a culpa se tornava tão gigante quanto o próprio Conselheiro.

Bruce desceu devagar de sua montaria. Taeko posicionou-se ao lado de seu domador e abriu as garras para um golpe fatal, mas foi impedido.

— Não vai adiantar, amigo. Deixe ele vir até mim.

Desde criança, quando ainda aspirava chegar onde estava, Bruce idolatrava a Lorde Terrion. O principal ensinamento dela havia sido o respeito aos animais e outras criaturas vivas que compartilhassem a terra. Se um dia alguém tivesse que morrer, que fosse feito sem sofrimento.

No entanto, não havia esperança para o jovem guerreiro de fogo na frente dele. Já envolvido na necromancia, seu corpo só obedecia ordens de alguém que sequer estava presente para lutar as próprias batalhas.

Naquele caso, o foco seria causar o menor dano possível.

Bruce somente estendeu as palmas das mãos e as colocou à frente do corpo. Uma na altura da cabeça e outra na altura da barriga. Estava na defensiva.

Do outro lado, o corpo do garoto corria novamente para atacar. Chegando perto, incendiou as pernas e foi para um ataque rasteiro, para pegar o Conselheiro de surpresa.

Com a mão que estava mais abaixada, Bruce rapidamente segurou a coxa do garoto em chamas, sem pestanejar. Em seguida, abaixou a outra mão e agarrou o pescoço dele. Com o pé, deu um pisão que esmagou todo o resto da perna que estava presa.

Do joelho até a ponta do dedo do jovem, todos os ossos se quebraram. O som parecia de estaladas de uma árvore ao levar uma machadada, mas a facilidade fez parecer que eram simples gravetos.

— Sinto muito.

Bruce bateu novamente a perna no chão. Dessa vez, um pequeno buraco de terra abriu na frente dos dois. Ele enfiou a cabeça do garoto lá dentro e usou sua Natureza para voltar tudo no lugar.

O resto do corpo ainda se debatia para sair, mas não conseguiria tão cedo.

— Vamos. — Acariciou a juba de Taeko e montou novamente em sua fera. — Precisamos encontrar o Bernard.

 

 

A escuridão nos distritos de Prospéria pareciam deixar o ar mais denso. Talvez até intoxicante. Havia vários sinais de destruição que demonstravam uma batalha impiedosa. Era uma visão que não acontecia desde a outra terrível noite.

Fosse ironia ou não, mais um demônio foi responsável por isso. E ele estava diante dos ferozes olhos de Bruce.

— Vamos! — O tom de encorajamento na voz de Bernard só o irritava mais ainda. — Seus escudos ainda não quebraram. Temos muita luta pela frente.

O mestre lutador parecia brincar com Vivienne enquanto ela dava tudo de si para impedi-lo.

Os braços da garota tremiam de dor e sua garganta estava seca com a respiração pesada para recuperar o fôlego. Junto do suor, seu sangue escorria pelo rosto e a impedia de abrir um dos olhos. Ela nem havia percebido a presença de Bruce e Taeko.

— Ah, olha só. — Bernard virava o rosto para trás para encarar a dupla. — Fomos interrompidos.

— Seu desgraçado.

Com um puxão na juba do leão, Bruce deu o sinal para a fera avançar. Os passos dele eram como grandes saltos para frente. Não demorou até ficarem bem perto.

Então, Bruce pulou de Taeko. O Conselheiro Animalista contraiu todos os gigantescos músculos para atingir Bernard enquanto o leão avançou com as garras mirando direto na jugular.

Bernard bateu o pé no chão e uma onda de sombras levou Taeko para longe, mas o ataque da fera o impediu de desviar do domador.

Tudo o que pôde fazer foi cruzar os braços e transformá-los em barreiras de sombras. Essas foram sendo quebradas a cada segundo que o soco de Bruce firmava. Em algum ponto, Bernard foi posto de joelhos para segurar o ataque.

Todo o chão do distrito começou a rachar  e os dois afundaram em uma pequena cratera. Depois de um ataque de tamanha força, Bruce precisou recuar para não dar aberturas para contragolpes.

— Nada mau — disse Bernard, balançando os braços.

— Eu tive que esmagar a perna de um garoto e enfiá-lo num buraco. — Sua voz de rugido ecoou pelo distrito sombrio. — Achei que você tinha coração.

— Eu tenho um objetivo. Foi o que me fez fingir tão bem todos esses anos.

— Bru-ce. — Vivienne tentava falar, porém estava mais cuspindo sangue do que palavras — Você precisa...

Em outro pisão, Bernard fez a onda de sombras levar a garota para longe deles.

— Não tem respeito nem por quem você treinou. — Bruce rosnou de raiva.

— Ela pode fazer mais do que aquilo. Você não sabe o que diz. O que você precisa entender, Bruce, é que eu não matei ninguém.

— E o que é todo esse caos aqui?!

— Se não temos pessoas fortes o suficiente para aguentar a densidade das sombras, é só porque os corpos delas não tiveram o preparo adequado. Você, forte como é, até consegue correr aqui. Seus sentidos aguçados voltaram ao padrão de um humano, mas isso ainda é surpreendente.

— Do que está falando? Enxergo e ouço tão bem como sempre.

Bernard deu uma leve risada.

— Não, não consegue. E é agora que vem a minha pergunta.

Bernard juntou os punhos e socou o chão à sua esquerda com toda força. O impacto causou uma grande destruição nos muros e casas, quase como a explosão de um raio.

Ao olhar para o alto, Bruce viu vários civis que foram arremessados pelo impacto.

— É alto o suficiente para te dar tempo de salvar todo mundo. Ou você pode ignorar e continuar a luta. Escolha.

O grito desesperado da família que estava prestes a ser morta pela gravidade o enlouqueceu. Não tinha como ignorar mais mortes.

Correndo pelos escombros, Bruce pegou uma grande lona que compunha a varanda da humilde casa e saltou para fora das sombras para chegar no alto, onde a família estava. Deu um grande abraço pegando todos e os amarrou na lona. Em seguida a jogou para longe.

— Taeko, pegue eles!

Momentos depois, Bruce sentiu as sombras voltarem a reinar ao seu redor. Antes que pudesse se virar, foi atingido por Bernard. Ao caírem, os dois pararam em pé, encostados na base de uma árvore.

Seus sentidos voltaram a falhar, mas ficaram piores. Logo começou a cuspir tanto sangue que sequer conseguia falar.

Olhando para baixo viu o punho de Bernard dentro de seu peito. O mestre lutador aproximou o rosto do ouvido de Bruce.

— Não sou só eu quem não tem coração agora.

Aos poucos, o ambiente começou a sumir. A sombra parecia dominar tudo, até o som.

— Você é realmente um altruísta, Bruce. Admiro isso. Chegar a ser divertido, mas não digo isso para tentar te ofender. Só acho uma coisa bem irônica vindo de vocês, do Leste.

A voz de Bernard foi a última a sumir. Naquele ponto, Bruce só conseguia torcer para que aquela família inocente estivesse a salvo.

 

***

 

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