Vol. 1 – Arco 2

Capítulo 15: Hora da Faxina

Estacionamento de trailers, Woodnation - 2:10 da madrugada, quinze de Julho.

O detetive sequer conseguia tirar os olhos da cena.

Os nove faxineiros estavam por todos os lados daquele lixão. Não tinham pausa nem mesmo para suspiros, agarrando as nojeiras espalhadas pelo estacionamento com suas luvas de borracha e as arremessando dentro de sacos pretos segurados por seus colegas. Outros varriam o chão e descascavam os trailers cobertos de sujeiras, para então limpá-los com as torneiras. A velocidade era desesperada, mas a concentração e o trabalho em equipe chegava a ser simplesmente genial.

Quem diria que todas aquelas pessoas motivadas sequer portavam espíritos e vontades próprias, uma vez que eram apenas desenhos de Elin que foram transformados em seres vivos através do seu poder paranormal — o chamado Secret Bohemian.

Claro que dar vida a tantos desenhos de uma vez não custou barato. A jovem adormeceu quase que automaticamente, em cima da pança do seu irmão. Passaram-se uns vinte minutos desde então e o estacionamento já se encontrava quase que completamente limpo.

— Aí, ô. — Leonard se aproximou dos irmãos, ambos inconscientes. Ao lado deles, o samurai de Elin, fazendo o seu serviço de guarda.

Mesmo sem ninguém para ver, não deixava de desfilar descoladamente com suas novas roupas; uma calça jeans (sem rasgos), um moletom leve vermelho-escuro e uma jaqueta cinza-escuro por cima. 

Como foi feito a medida por Elin usando seu poder, ele pôde pedir para que fosse estampado um “M” vermelho-escuro no braço esquerdo de sua jaqueta, uma clara referência ao seu sobrenome — “Mystery” —, o que lhe fez atingir o último patamar do conceito de um cara extremamente r̶i̶d̶í̶c̶u̶l̶o̶ badass

Não foi o único que ganhou roupas novas. Einstein também foi presenteado com uma nova fantasia de hamster. Era idêntica a sua original, mas completamente nova, sem as sujeiras e marcas de explosões que ganhou em suas últimas aventuras. 

Einstein se deu o trabalho de esconder-se em um bueiro para trocar de roupa sem ninguém ver seu corpinho; o que sujou o traje novo e obrigou Elin a fazer outro, que dessa vez foi vestida dentro do trailer onde ele e o detetive estavam morando — até agora, Leonard e Elin se perguntam como foi mais óbvio para ele vestir-se no esgoto do que ali.

— Não vão acordar? — O detetive chutou os dois. Com carinho, óbvio, já que não queria morrer nas mãos do samurai da artista.

Vendo que não iam acordar tão cedo, sentou ao lado deles e permaneceu observando o trabalho incrível dos faxineiros. “Namoral, esse poder é muito maneiro. Eu adoraria poder fazer isso daí. Imagina, não precisar arrumar a casa nunca mais?”, pensou, como se tivesse o costume de arrumar o chiqueiro que chamava de apartamento quando ainda vivia em New Krox.

Ficar parado ali, sem nenhuma ameaça a sua vida, lhe trouxe lembranças de como sua vida era há poucos dias. Antes de conhecer Einstein, passava o dia todo andando pela cidade grande, na torcida para encontrar algum crime ou coisa estranha para poder se envolver como um verdadeiro herói detetive.

Raramente acontecia, mas foram incontáveis as vezes em que isso o levou a se envolver em brigas com gangues e bêbados. Com o passar do tempo, ganhou a fama de brigão. A ponto de que apenas as pessoas mais desesperadas iam atrás de contratá-lo — o seu baixo preço ajudava muito para que essa decisão fosse tomada.

O que sabia era que, definitivamente, nenhuma das brigas que participou em toda a sua vida chegavam aos pés das lutas dos últimos dias. Tremia ao lembrar da vez em que quase morreu nas mãos do samurai, ou que precisou arrancar a katana de seu próprio braço para usá-la como arma; um tremor físico que sequer era de um profundo medo, mas sim de uma animação extâsiante.

Passaram-se alguns minutos e, quando se deu conta, o estacionamento já estava mais limpo do que nunca. Havia tanto chão, aquele chão semi-arenoso do deserto, vazio para ser pisado que o lugar realmente parecia um quintal. Os trailers nem se falavam, brilhando de tão reluzentes e limpos. Todos os sacos de lixo foram levados pelos faxineiros e colocados dentro de diferentes lixeiras espalhadas por toda a cidade — onde deveriam estar desde o início.

— Tá na hora de acordarem — falou o detetive, cutucando os irmãos pela segunda vez.

— Macacos me mordam! — berrou Einstein, acordando em um salto.

Humh, humfhp? — resmungou Elin, desnorteada.

— Olhem só, está tudo limp– Voltaram a dormir?!

Eles voltaram. Quase que instantaneamente.

 

 

9:00 da manhã.

 

— Bom dia! — exclamou o hamster, levantando e se deparando com o lindo cenário. — Caramba, os poderes da minha irmã são realmente bem úteis!

Foi saltitando até o trailer, onde ao entrar, encontrou com o deslumbrante cenário totalmente limpo por dentro e por fora. 

Era até incrível descobrir que o veículo era de um amarelo acinzentado e que aqueles musgos verdes e cogumelos potencialmente radioativos eram, na realidade, fruto de uma tremenda falta de higiene.

Na parte debaixo da beliche, Leonard dormia tranquilamente, com um pequeno e genuíno sorriso travado em seu rosto. Contagiado pela felicidade de seu amigo, Einstein correu e saltou, caindo na cama superior da beliche.

O que havia se esquecido era que, embora muito profissionais, os faxineiros criados pelo poder Secret Bohemian só limpavam, não consertavam. Ao se chocar com a frágil cama, acabou por atravessá-la e desabar sobre o detetive.

— Cacetadas! — gritou o hamster, saindo de cima do homem, desesperado. — Você está bem?

As próximas horas, horas estas em que o detetive permaneceu completamente nocauteado, foram marcadas por Einstein e seus gritos de desespero, choro angustiante, todos os estágios de luto e por uma lápide comprada na esquina.

 

 

12:06 da tarde.

— É isso — disse Leonard, passando o gelo em seu rosto para aliviar as intensas dores de ter sido esmagado por um cara fantasiado de hamster (pela segunda vez). Acabou de explicar para Elin tudo o que aconteceu desde o dia em que conheceu Einstein até o momento em que eles a encontraram no bar.

— Você tem certeza que não quer que eu te cure? — indagou o feiticeiro, preocupado.

— Não, guarde a sua mana para quando precisar mesmo. Consigo aguentar uma dorzinha. — Embora falasse isso, guardava no âmago de seu espírito uma série de gemidos extremamente extravagantes.

Esses gemidos em questão não possuem nenhuma relação com a dor, mas é sempre importante ressaltar o que está acontecendo no âmago do espírito do protagonista.

— É que você parece meio atordoado. 

— Nada haver, brô.

— É que… Sabe, do que adianta explicar tudo o que aconteceu para a minha irmã, se ela ainda está dormindo?

— Hm.

 

 

1:00 da tarde.

Revoltado por ter explicado toda a lore do Arco 01 de Genealogia Mystery: A Conspiração do Hamster para o vento, Leonard passou a última hora jogando um jogo de quebra-cabeças.

Jogando na parede. 

— Caçarolas voadoras! O que foi isso?! — indagou o hamster, que até então meditava enquanto cantarolava Johnny B. Goode, de Chuck Berry.

— Desculpa, pistolei e joguei o quebra-cabeça na parede. Esse joguinho é muito complexo!

— É mesmo? — Caminhou até a caixa e a agarrou para poder lê-la. — “Quebra-Cabeças do Super-Herói Aquático, recomendado para crianças de quatro a seis anos.”

— O quê? Isso daí tá errado, nem um maluco de trinta anos consegue lidar com iss–

— Consegui montar!

A expressão de carniça de avestruz ressurgiu no rosto de Leonard em uma forma tão horrível quanto a continuação ruim de algum filme.

— Ah, quer saber? Tanto faz. Vou lá acordar a sua irmã. Precisamos discutir sobre a investigação e preciso saber se ela vai querer participar. — Ele saiu de dentro do trailer.

O hamster voltou para a sua meditação. Suspirou firmemente, concentrado em cada pedaço de ar que exalava. Visava se tornar um só com a natureza; o hamster e o ar, um só. O hamster e a água, um só. O hamster e o fogo, um só. O hamster e a terra, um só. O hamster e a tempestade. O hamster e o mundo, um só. O hamster e a vagabunda da sua mãe, um só.

A meditação durou apenas alguns segundos, já que ele acabou se desconcentrando no momento em que Leonard atravessou a janela e caiu violentamente sobre seus pés.

— Detetive? Por que fez isso?!

— Eu não fiz nada… — murmurou, levantando-se com dificuldades. — Foi a arrombada da sua irmã!

— Por quê?

— Tentei acordá-la, apenas isso!

A porta do trailer foi escancarada, dando entrada para Elin, que guardava em seus olhos a fúria homicida de um pombo que foi impedido de cagar no rosto de uma criança.

Exemplo estranho, mas continua sendo uma fúria parecida.

— Agora que você me acordou, já era. Vá, me fale. — Falava com o profissionalismo de um cirurgião, que como todos sabem, é um dos empregos favoritos dos psicopatas.

— Foi mal aê, pô, eu não pensava que ia ficar brava desse jeito! — berrou o detetive. — Na outra vez, cê acordou numa boa.

Embora tenha voltado a dormir logo em seguida.

— Uma vez, até vai. Duas já é descuido com a própria vida, não concorda? — Continuava falando com a rigidez de um profissional; profissional em matar.

— Poxa, mas não foi por maldade. Te acordei pra falar sobre a investigação e sobre o Galileu. Ele ainda está desaparecido.

— Ata. 

A raiva da garota se foi de uma hora para outra. Ela se sentou sobre a beliche destruída.

— Além de que já é uma hora da tarde e tudo mais… — Trocou de assunto assim que viu o olhar assassino nascer no rosto dela. — Enfim, vamos falar sobre o caso.

Dessa vez, a explicação de Leonard foi plenamente ouvida. Explicou detalhadamente tudo o que aconteceu desde o momento que conheceu Einstein, até a situação em que os dois encontraram ela no bar. Foram tantos os detalhes que, se tudo fosse transcrito, se tornaria convenientemente um ótimo livro narrado em primeira pessoa.

Só que o carinha que Leonard salvou no primeiro capítulo recusou acompanhá-lo e esse livro está escrito em terceira pessoa, então nós já sabemos que a história não terminará com alguém decidindo escrever um livro sobre essa épica aventura. Desculpa!

— Entendi. — Foi a primeira coisa que Elin disse desde o momento em que a narração começou. — Você já pensou em ir para o médico? Ter alucinações com plantas vermelhas é algo preocupante.

Leonard não havia poupado nenhum detalhe em sua narrativa.

— Você realmente mija rosa quando toma iogurte de morango? — questionou Einstein.

Nenhum detalhe.

— Mais alguma dúvida? — falou o detetive, ignorando as perguntas. — Uma interessante, de preferência, manés.

Ela permaneceu quieta por alguns instantes, reflexiva. Depois, soltou com força:

— Você é mó burro. — Não havia nenhuma ira em sua colocação.

— Vai te lascar! — Já na do detetive, havia muita.

— Para que agredir? — Levantou animadamente. — Sem querer julgar, mas tipo, meio que você encontrou um computador com todas as informações que precisava para concluir o caso e… acabou com ele todinho. Isso sem contar da sua piada que trouxe vários agentes do governo até a cidade.

— Pô, mas isso aí foi puro azar.

— Pode até ser, mas eles podem estar te procurando agora. Eles provavelmente tem o seu sangue, já que você sangrou na luta para invadir o quarto daquele velho. Qual o nome dele mesmo? Adrian? Alfred? Amanda?

— Amadeus — respondeu Einstein, questionando em seus pensamentos se ela realmente prestou atenção ou se dormiu de olhos abertos durante a narração do detetive.

— Isso. Se aqueles dois agentes pegaram o seu sangue, nada os impede de testar o DNA para te identificar e descobrir a sua identidade.

— Cê acha que eles têm esse nível de tecnologia?

— O Amadeus trabalhava para o governo e, mesmo estando aposentado, guarda embaixo de sua mansão um laboratório subterrâneo com mini-discos voadores e armas lasers. Acho que talvez, só talvez, agentes do governo possuam tecnologia o suficiente para identificar a identidade de alguém pelo seu sangue.

A cada palavra proferida, a preocupação crescia na testa do detetive, que logo proclamou:

— Tomei no rabo.

— Calma, detetive. Acalme-se — falou Einstein, paciente. 

— Sim. Não tem motivo para se desesperar — comentou Elin, igualmente calma. — O máximo que pode acontecer é toda sua família e conhecidos serem cruelmente torturados em uma série de interrogatórios que descumprem todas as normas dos direitos humanos.

— Elin!

— Relaxa, nem cheguei a comentar do pior de tudo, que seria ele descobrir que nenhum deles disse nada sobre ele para os agentes durante todas as horas de tortura. Todos cometeram uma ousadia tão tamanha, que custou as suas vidas. — O olhar calmo da artista foi logo absorvido por uma tenebrosa expressão de frieza absoluta, que no fundo, parecia esconder uma tormenta colossal de malícia. — Então, detetive, os anos se passam. Desde aquele momento, todos os seus dias infelizes foram marcados por tais lembranças, que o torturam mais do que qualquer um. Afinal, você saberia que tudo isso seria evitado se não tivesse falado para aquele velho que o seu nome é Piotr Rasputin. Uma mera piada que custou a vida de dezenas de inocentes.

Tamanha escuridão possuiu os corpos de Leonard e Einstein. Mesmo após o fim da hipótese, eles permaneceram paralisados em puro tormento.

— Mas sei lá, né? — A calmaria doce da jovem voltou. — Vai saber.

— É… — murmurou Leonard, se levantando. Embora ainda assustado com tamanha negatividade, sua confiança voltou com o passar dos segundos. — Para a minha sorte, eles não tem ninguém para interrogar!

— O que quer dizer com isso?

— Ah, é aquela coisa, né. Sei que tenho essa marra de pegador e esse jeitão carismático, e até que realmente tenho facilidade em me dar bem com as pessoas. Só que nunca vai além de uma noite de farra. Ou seja, sem amigos. Além disso, não tenho pai e nem mãe.

— Cruzes — comentou o feiticeiro.

— Ótimo — concluiu Elin. — Se forem torturar alguém, será ou eu, ou o Einstein! Mas eles não conseguirão chegar nesse nível.

“As pessoas mais próximas de mim são um cara que anda sempre fantasiado de hamster e uma garota perturbada da cabeça? Fazer o que, né…”, pensou.

— Minha irmã está certa, temos sempre que ver o lado bom das coisas. 

— Ata — ironizou. — Olha, acho que já tá bom de enrolação. Precisamos usar todas essas informações que temos em mãos para criarmos algumas hipóteses.

— Está ouvindo, Elin? É hora da teoria!



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