Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Prólogo II: A Guerra Divisora

Data desconhecida - Continente de Cielunia, Reino de Bliz, Teatro Real de Glacia

 

“No escuro céu, a Lua brilhará!

Ali sempre estará…

Haja o que for, o iluminará

Sempre a te guiar

 

Mesmo que o medo lhe traga o caos

O fogo vai arder, basta você crer

Em seu coração, carregue junto a ti

O que vem a seguir…

 

Flores nascerão, ventos vem e vão

A vida tem de ir…

A neve cairá, assim sempre será

Enquanto se viver

 

Mesmo que a dor da guerra apareça

A luz irá brilhar! Sempre a te guiar

Mesmo que eu já não esteja aqui

Você deve seguir…

 

O mal existirá, neste mundo sujo

Ele hei de limpar

Estenda sua mão, ela irei pegar

 

O destino o fará entender

Que o amor jamais irá se render

Perante o ódio que não o deixa ver…

 

Mundo belo este

Que nos mostra a vida no alvorecer

Ó, doce destino! 

Salve minha vida

Do escurecer…”



Palmas bem claras ecoaram pelo auditório quando a garota, trajada em um longo vestido branco de mangas bufantes, realizou uma reverência ao público e concluiu sua apresentação junto do grande piano. O som da orquestra foi o sinal para que se retirasse — a próxima cena do espetáculo logo deveria começar, então não tinha mais tempo a perder naquele palco. Sob a chuva de aplausos, ela sumiu por entre as cortinas em direção ao setor restrito do Teatro Real de Glacia.

A primeira coisa que fez ao chegar ao seu camarim foi retirar os saltos apertados de seus pés, analisando-os com as íris esmeraldinas. “Prefiro mesmo sapatilhas…”, refletiu, bebendo um gole d’água para aliviar a tensão de seus nervos. Poderiam estar em pleno inverno, mas o calor de cantar irradiava-se pelo seu corpo e a fazia suar muito mais do que gostaria dentro daquelas vestes elegantes. Tinha ainda mais uma sessão marcada para mais tarde, devendo assim manter sua maquiagem e aparência por enquanto.

Um suspiro cansado saiu de sua boca.

— Mimi… — chamou uma voz através da porta. — Posso entrar?

Aquele timbre era facilmente reconhecível pela garota de longos cabelos negros, e escutá-lo serviu como uma grata surpresa ao corpo cansado dela. Um sorriso, amplo e sincero, preencheu os lábios pintados por um tom levemente arroxeado, que se abriram para responder:

— Pode sim, vó!

— Certo, entrando…

A silhueta baixa da senhora, cujos olhos eram idênticos aos da neta, cruzou o batente em passos curtos e suaves. Satisfação estampava seu rosto, com marcas bem nítidas do envelhecimento rápido — ser uma Guardiã tinha efeitos bem assustadores nesta fase da vida, como ela bem percebera nos últimos anos. A fragilidade de seu corpo era exposta cada dia mais, para a preocupação da família, em especial a garota de 12 anos à sua frente.

Acompanhar o declínio de sua mais querida familiar em tão pouco tempo era devastador para uma moça tão jovem. A anciã, porém, fazia questão de confortá-la diariamente sobre o quão feliz era por estar vendo sua neta prosperar diante do público — se partisse hoje, estaria feliz em tê-la educado com maestria e graça singulares. 

A disciplina e respeito da garota se mostraram quando ela limpou uma das poltronas, repletas de livros, pelúcias e apetrechos relacionados à peça, com a ajuda de sua mana para abrir espaço para a senhora. Sua intenção era clara.

— Não quer sentar, vó?

— Quem sou eu para negar? — riu Tenko, acomodando-se no estofado. — Está linda como sempre, querida. Decorou mesmo aquela música, não é?

— Depois de ler tantas vezes com a senhora, vovó… Quem não decoraria?

A morena assumiu o espaço vago ao lado da senhora e abraçou um dos muitos coelhos de pelúcia. Não gostava de aparecer no palco, não sob o olhar dele, logo tinha um longo tempo até ter de se posicionar sob os holofotes mais uma vez. Sua parente seria prioridade por ora, tempo suficiente para que pudessem discutir alguns ajustes até a próxima repetição do musical.

Nas mãos da mais nova, surgiu um livro de páginas bem amareladas e carcomida, que ela fez questão de começar a folhear rapidamente em busca de um pedaço específico da narrativa dele. Os Tsukishi viviam na busca pela perfeição, e a mais nova Herdeira da Profecia não era diferente de sua mãe ou avó.

— Bem, é um trecho complicado este da peça de hoje… — ponderou a idosa, pensativa. — Não achei que conseguiria capturar tudo desta última melodia tão rápido, Mimi.

— Foi uma tarefa difícil, realmente. — Os olhos da jovem nem mesmo se desviaram das folhas em constante movimento. — Mas acho que esse conto de Neith, Caos e a Guerra Divisora é bem mais fácil do que as profecias, vó!

— De contar? Talvez.

Sem nem movimentar os membros, o ar ao redor delas brilhou em púrpura. A energia etérea assumia diversas formas: humanos, armas, castelos e tantas outras, que interagiam com a mesma naturalidade que uma animação realista. Foi só quando elas rodearam a dupla que as criações de Tenko, tão belas e tão fidedignas, passaram a atuar segundo o roteiro brutal do espetáculo há pouco apresentado no andar de cima do camarim.

Morte, destruição, vida, criação… Neith e Caos, personificados como uma silhueta mais escura e outra mais clara, lideravam seus exércitos uns contra os outros, eliminando e criando novos aliados ao seu bel prazer. Entre os soldados, não existia bem ou mal, luz ou sombra — apenas um comando de seus líderes de exterminar o lado oposto, fossem humanos ou deuses que enfrentassem. 

Um total derramamento de sangue, encabeçado pela Criadora e pelo Disruptor.

— Compreender o limiar sensível entre boas e más ações — divagou a senhora, em contato visual com a neta — é essencial para que você conheça a verdade que a libertará. 

— Não entendi o que a senhora quis dizer.

— Você é capaz de entender e, talvez, perdoar o Homem?

A pergunta descabida da mais velha silenciou sua interlocutora por alguns instantes. Parecia divagar, ruminando a ideia em seu interior com grande vagarosidade, indo e voltando em muitas linhas de raciocínio por trás de seus olhos esmeraldinos. Tenko considerou a hesitação como evolução, embora não tivesse desejo de expressar sua percepção à donzela.

A mudez da garota perdurou por mais algum tempo, até que sua face assumiu uma expressão dura, com os olhos semicerrados. 

— As ações dele não tinham outro propósito que não o fim dos humanos, vovó. — A determinação da garota era uma montanha fria e absoluta. — Se algum dia o Homem voltar, eu espero que a Guardiã de Neith puna ele por todos os crimes!

— Para toda memória, um esquecimento — advertiu a idosa, em uma frase intencionalmente confusa. — Mimi, Caos e Neith são metades da mesma moeda, com poderes idênticos um ao outro. Eles apenas escolheram se especializar em criar ou destruir.

— Por isso temos 7 Arcanjos e 7 Príncipes do Inferno?

— Exatamente. Para que o universo exista, ambas as metades devem se manter em equilíbrio, ainda que uma subjugue a outra. 

— Mas isto não seria contraditório, vó? 

— A vida não é preto no branco como pensa, querida. 

A aura da antiga Guardiã voltou para dentro dela, encerrando a aula de história imersiva. Embora a jovem quisesse muito que sua ancestral ali ficasse, tinha plena noção do papel a ser desempenhado por ela como matriarca dos Tsukishi e atual proprietária do Teatro Real de Glacia. Muitos espectadores aguardavam o discurso habitual da Sábia Feiticeira sobre as profecias carregadas pelo clã Tsukishi e sua deidade, Mímir.

Porém, como esperado de uma criança, ela não compreendia por completo todos esses deveres imbuídos na função política de Tenko. O caminhar lento da senhora em direção à porta a deixou aborrecida, como ela fez questão de expressar. Foi por esse motivo que não soube conter sua voz de vazar por entre os lábios.

— Vovó!

— Diga, Mimi.

Os dois pares de esmeralda fizeram contato visual — Tenko sutilmente desafiava a prosseguir, ameaçando colocar de vez os pés para além do batente. Se nada fosse proferido nos próximos três segundos, assim seria feito, mas a garota não era do tipo que desistiria fácil de suas dúvidas.

— Você quer dizer que… um dia, eu posso ser uma pessoa ruim?

Sob o intenso olhar da neta, Tenko analisou o questionamento sobre ela imposto. Mimi era boa até demais em deixá-la pensativa, qualidade — ou talvez, defeito — que tornava-se cada dia mais aparente na menina de cachos negros ondulados. Ela sempre tinha um ponto de vista inédito, por vezes até surpreendente para a pouca idade.

Suas palavras eram mais do que uma mera pergunta. Eram uma dúvida cujo temor estava instalado no coração dela, tão profunda quanto as lendas que carregava como a próxima Herdeira da Profecia. Tenko estava ciente disto.

— Todos podemos nos tornar vilões. 

E, de novo, sua única resposta não ofereceu o conforto esperado pela menina.

— Por isso, querida, continue sendo uma boa garota. Colhemos o que plantamos.

— Sempre, vovó?

— … Sempre.

Uma mentira, pequena e não inocente. Mimi não deveria saber o quão injusta era a vida, e Tenko implorou aos céus para que assim continuasse por algum tempo. Com um clique na maçaneta, a Sábia Feiticeira sumiu para além do camarim.

 

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