Volume 2
Capítulo 46: A sutil arte da empatia
— Vejamos… você disse que queria levar, é… tudo isso pro prédio dos Sentinelas das Ondas? Senhorita Yamazaki.
— I-Isso! — A voz de Akane saiu mais fina que o normal. “Que droga!” — Obrigado, senhor K-Kyotake!
— Disponha. Shiki sempre comenta o quanto o professor Hoshiki é sem noção… — comentou, encarando-a por cima do ombro. — mas não achei que fosse tanto ao ponto de deixar uma pessoa do seu tamanho carregar os livros de geobiomagia da sala inteira. Se superou no meu conceito.
— E-Eu sou f-forte, tá! Só não consegui porque fiquei sem equilíbrio… e porque tô perdida. E com fome.
Akane sentiu suas bochechas enrubescerem com a risada suave do garoto à sua frente. Para quem olhasse de fora, seria impossível distingui-la de um tomate bem maduro, e isto não favorecia em nada seu desejo de não parecer ridícula na frente de seu veterano. Quase tropeçou quando foi ajustar a posição do seu corpo, tentando se esconder atrás da pilha de livros enquanto lembrava-se de como se meteu naquela situação.
O cochilo usual de Yamazaki foi interrompido por um grito estrondoso vindo da porta. Antes mesmo que pudesse assimilar a situação e colocar uma expressão facial adequada, uma montanha de papel formou-se diante dela e, por trás dessa, as íris azul-marinhas de Saiko Hoshiki, o docente, a encararam.
— Yamazaki, leve isso com você pra minha sala no quartel da Vanguarda do Céu. Shiki vai saber onde guardar — comunicou o professor, afobado. — Turma, dispensados! Até semana que vem!
Tão rápido quanto o vento emitido por seus poderes, o Guardião de Hermes deixou a sala sem quaisquer outras explicações. O atordoamento dos alunos foi muito mais breve do que o da garota, cujo cérebro só processou o problema real quando estava caminhando pelo corredor com os materiais a ela entregues. Sua face se distorceu com a noção repentina de que não sabia uma informação crucial para aquele momento.
— Mas onde diabos é a base da Vanguarda do Céu?
Seu grito chamou a atenção de alguns transeuntes. Sentiu um peso intenso em seu baixo abdômen, o que a desesperou ainda mais — não podia encostar aquela pilha enorme em algum canto e sumir, ou seria punida depois. Sua mente entrou em parafuso, ao passo que a vontade de ir ao toalete tornava-se grande demais para ignorar.
Aquelas coisas sempre aconteciam com ela, por que tinha que ser tão azarada assim? Os olhares de julgamento por ser a terceira (ou quarta?) vez passando em frente ao mesmo jardim não colaboravam para acalmá-la também. Mais alguns minutos e ali estaria o fim da vida estudantil tão breve de Akane Yamazaki.
Restava apenas aguardar seu triste destino, que a condenava a ser motivo de chacota por toda a estadia na Academia. Será que voltar para casa depois da humilhação seria extremo demais? Sua mãe com certeza a recepcionaria de braços abertos. De fato, não era má ide…
— Com licença, senhorita… Está tudo bem?
Akane quase caiu para girar na direção da voz desconhecida, os olhos marejados de alívio e frustração. O que a fez se desestabilizar não foi a ajuda oferecida, não mesmo. Um arrepio desceu sua espinha ao admirar os cabelos brancos bem arrumados e a face estoica.
O contato visual a preencheu de um calor estranho, poderoso. Não sabia se estava alucinando pela ansiedade ou se o príncipe encantado de seus sonhos realmente havia se materializado diante dela. Mesmo o corte, com sua longa franja cobrindo a lateral esquerda de seu rosto, era idêntica à do garoto que desenhou por anos a fio. “Ó, Leão, se isso for um sonho, não me acorde!”, implorou, entre o atordoamento e o encanto.
A falta de reação pareceu, aos olhos verde-água do rapaz, um péssimo indicativo, pois seu desconcerto era perceptível. Numa tentativa de consertar a péssima primeira impressão, ela quase derrubou de vez o que carregava para se aproximar dele.
— N-N-Não! Não m-mesmo!
— E tenho como ajudar?
As íris castanhas de Akane o fitaram por alguns segundos, ponderando sobre ser sincera ou manter para si seu sofrimento. Fosse por sobrevivência ou um surto de coragem, jogou os livros para o moço gentil antes de disparar na direção do banheiro mais próximo.
— E-Eu volto já! Por favor c-continue aí! — gritou sem olhar para trás.
E assim chegaram ao presente momento, onde uma envergonhada Akane caminhava com menos da metade dos livros a poucos passos de seu veterano. Seguia-o de perto, com medo de se perder, mesmo que ele fosse quase trinta centímetros mais alto do que ela e chamativo demais para ser ignorado. Ah, e claro, extremamente atraente.
Nos dois meses em Palas, nunca tinha encontrado com alguém cuja beleza fosse sequer comparável. Não só isso, Taniko Kyotake exalava uma aura aconchegante e reluzente, quase como uma fogueira em uma noite de inverno. Akane sentia-se incapaz de desviar das costas largas e torneadas daquele jovem misterioso que apareceu apenas para salvá-la naquela tarde.
Uma vez passado o choque inicial, as semelhanças dele com o “parceiro ideal” da leonina era assustadora. Era como se o desenho ganhasse vida e estivesse ali ao seu lado, resgatando-a de um tragicômico fim. Nada era capaz de justificar algo assim, nem mesmo a maior das coincidências.
“Ok, Akane, mantenha a calma! Você só precisa seguir ele e agradecer, nada demais!”, era o que repetia para si mesma na tentativa de diminuir o rubor de suas bochechas. Nunca mais iria vê-lo de qualquer forma, então nada daquilo importaria — podia contentar-se eternamente com as visões de sua infância para evitar a decepção.
— E-Estamos chegando, senhor Kyotake? — perguntou, na tentativa de quebrar o gelo entre eles. — M-Minhas pernas estão um pouco cansadas!
— Só mais um po…
— Taniko?
Ambos viraram para encarar quem chamara o príncipe com tamanha intimidade. Enquanto a garota reagiu com um largo sorriso, o outro desviou o olhar em um mísero instante ao perceber o interlocutor aproximar-se deles.
— Professor Onishi! Boa tarde! — cumprimentou ela, empolgada. — Achei que todos os professores tivessem sido convocados! Até o professor Hoshiki sumiu…
— Foi uma emergência envolvendo uma Maldição, mas já está contida. Contarei para a senhorita e aos demais em nossa sessão de amanhã. — O olhar de Dai caiu sobre seu aluno mais velho. — Deveria se juntar a nós, Taniko. Não sabia que havia retornado de Camelot.
— Não posso.
A resposta do príncipe foi imediata e dura, confundindo sua novata. Nem mesmo sabia da existência dele, quanto mais que pertencia ao mesmo grupo de treinamento organizado pelo professor de Controle Divino. Se era um veterano, deveria estar presente, tal qual Shino e Naochi faziam aparições ocasionais. Pensar nisto a deixou intrigada.
Ao mirá-lo com seus olhos castanho-escuros, arrependeu-se com amargura de ser tão leviana: nos lábios comprimidos e testa franzida, viu a perfeita mistura de melancolia e frustração que só era possível em alguém em puro sofrimento. Ainda assim, Taniko não emitiu uma palavra a mais antes de seguir seu próprio caminho.
— Eu entendo o que sente, garoto — atestou o professor, como se soubesse do interior de seu aluno. — mas aquilo não foi culpa sua. Não havia o que ser feito.
— Eu era responsável por eles, mestre — rebateu. — Desculpe. Vou indo, peço perdão pelo tempo que passei fora.
— Espero vê-lo logo de volta aos nossos encontros, Alteza.
— Claro.
Akane, que até então acompanhava em silêncio, seguiu seu guia pelos corredores, tão perdida quanto antes. Foi apenas quando a história contada pelos veteranos há semanas atrás e o nome do garoto bondoso a sua frente se associaram que soltou um grito de espanto.
Taniko Kyotake, o antigo Quinta Cadeira. Aquele que renunciou ao cargo por circunstâncias não divulgadas e, desde o início do ano letivo, não dava as caras pelo campus. Além de tudo, era também o príncipe herdeiro do ramo principal de Camelot. Esse tempo inteiro, Akane estava tratando um verdadeiro projeto de rei como quem trata um colega de mesma classe.
Sem aviso, seus passos pararam de ecoar pelos ladrilhos, e o jovem virou-se para ver o que havia se sucedido com sua companhia desengonçada. Teve de segurar o riso e o espanto ao vê-la ajoelhada e com a testa ao solo, embora ainda mantendo os livros equilibrados sobre as mãos.
— Senhorita Yamazaki? — chamou, em dúvida do que fazer. — O que está fazen…
— M-Me perdoe o d-desrespeito, Alteza! — desculpou-se sem erguer o pescoço. — Tamanha indelicadeza da minha parte é intolerável! Terei que arrancar meu intestino em retaliação!
— Não precisa de nada disso!
— M-Mas…
— Juro que não tem problema. — Com uma única mão, ele a colocou de pé. — Não estive em nenhuma aula há algum tempo. É natural que não me reconheça.
— O que aconteceu pra isso? Esteve doente? Algo familiar?
Mais uma vez, ele sorriu, sem graça. Akane se arrependeu na mesma hora, ciente de seu erro fatal — a proximidade física não era sequer comparável à distância emocional entre eles. Seja lá qual o motivo, sua pergunta havia ativado algum mecanismo de defesa.
— Digamos que foi algo pessoal, sim. Como Dai disse, retornei há pouco tempo — comentou, sem muitas brechas para perguntas. — Oh, estamos quase lá. Tá vendo aquela torre cinza ali?
— Sim…
Taniko tentava ocultar o desconforto anterior com seu bom humor, mas Akane desistiu da conversa. Na cabeça influenciável e sensível dela, suas ações eram irreparáveis e deveriam ser punidas com rigor. Não mudaria de ideia tão cedo.
Com os conhecimentos do veterano, logo encontraram a porta de destino, cujos inscritos em prateado liam-se “Major Hoshiki”. Duas batidas na porta e os olhos vermelhos de Shiki apareceram na fresta entre a madeira e o batente.
— O que faz na base de outro esquadrão, Kyotake? — Apesar de julgadora, a pergunta era bem pertinente. — Não me diga que mal voltou de Camelot e já quer seu cargo de volta.
— Vim apenas ajudar uma novata — respondeu, seco. — E não, não quero a Quinta Cadeira.
— Não vai nem lutar por isso? Você é tão sem graça…
— Não me importo com isto. Senhorita Yamazaki — chamou, antes de entregar a pilha nas mãos dela — espero ter sido de seu auxílio. Até outro momento.
Rápido quanto na sua primeira abordagem, o príncipe deixou a sala sem hesitar. Eles não mereciam ter que lidar com seus problemas — tudo que passou e fez foi culpa inteiramente dele, não era obrigação de ninguém escutar suas lamúrias ou inseguranças. Em especial, aquela novata empolgada e um tanto diferente.
Já estava pronto para fechar a porta do edifício quando passos velozes fizeram-se presentes atrás de si. Sua curiosidade falou mais alto do que sua pressa, então virou-se na direção da pessoa para saber se não era Shiki e sua insistência irritante em lutar com ele. A surpresa veio na forma de cabelos ruivos e olhos castanhos, somados a um corpo diminuto e uma respiração pesada.
— A-Alteza! — O ar faltava nos pulmões de Akane. Deveria treinar mais sua corrida.
— O que? — respondeu, tentando manter o sorriso amarelo em sua face. — Precisa de ajuda com mais algu…
— Preciso d-dizer mais uma coisa! — interrompeu Yamazaki. — V-Venha aos treinos do p-professor Onishi! Por favor! Só isso, tchau!
O nervosismo de Akane levou a melhor mais uma vez, e ela sumiu pelas escadarias usando toda a força em suas pernas curtas. “Preciso urgente de um mapa de banheiros!”

— Como eu fui tão idiota? Idiota, idiota, idiota, você é uma estúpida, Akane!
O dia da Guardiã de Barachiel não tinha mais como ser o mesmo depois de seu momento de coragem impulsiva. Horas passaram como um borrão, sua mente dividida entre a euforia extrema e arrependimento amargo com sua atitude. Deu-se conta do estado deplorável apenas quando caiu na cama macia e confortável de seu quarto, quase apática.
Dali em diante, sentia que ia explodir.
— Mas será que ele me odeia? Ele não pareceu odiar… mas eu não sei! Será que foi muito na cara que achei ele bonito? — Rolou mais algumas vezes, abafando seus gritos no travesseiro. — Que dor de estômago!
— Akane, vem jan…
— Cono se a-apaga a m-memória de alguém, Haru?
A loira teve que se conter com todo o seu ser para não rir quando as mãos de uma desesperada Akane apertaram seus ombros. Os olhos arregalados não a deixavam levar a garota a sério de jeito algum. As cobras, todavia, eram “livres” para expressar o sentimento — os sons de risada eram inquestionáveis.
— H-Haru!P-P-Para de rir!
— Foi mal, foi mal!
— Vocês duas, a Kyo tá ficando com raiva da comida dela ter ficado em segundo plano! Venham comer!

24 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Setor Norte da Academia de Palas
“Quando será que teve início esse surto de rigor com treinamento?”, perguntou para si mesma a garota de cabelos pôr-do-sol. Em pleno fim de tarde de quarta-feira, Yoko encontrava enorme dificuldade para sequer iniciar seu treino rotineiro: todas as salas que estava habituada a utilizar estavam ocupadas.
Seria por conta do método de avaliação espartano da professora Kitani? Bem, a semana de provas mensais estava a poucos dias de acontecer, então o desespero geral dos menos afortunados era compreensível. Porém, para a princesa solana, aquilo estava começando a lhe custar a paciência.
Depois de tentar pela enésima vez e dar de cara com mais uma porta trancada, viu-se obrigada a suspirar. Sua natureza auto-desafiadora não a permitiria ir para o quarto sem pelo menos uma hora de treinamento árduo, então partiu para a próxima. “Nessas horas, queria ser como o Shu e relaxar”.
— Nunca vou entender o que viu naquele garoto bobo, Yoko. — Amaterasu não fez nem o esforço de se projetar para ela. — Mas quem sou eu para falar de como o amor é tolo? Apenas gostaria que não fosse com o portador daquela fera selvagem.
— Há 4 milênios que não interage com ele.
— E não preciso para saber que continua levando sua existência dando enfoque a futilidades como os meios de fazer sua refeição! — retrucou a deusa. — Francamente… não haveria qualquer competição se não fossem a força e resistência naturais daquele poço de arrogância.
— Vejo que a rixa de vocês vai muito além da existência de Yggdrasil e Helias — refletiu a jovem, olhando ao redor. — Mas isso em nada auxilia a resolver minha situação atual.
Sua Bênção não a respondeu antes de desfazer a conexão mental entre elas. Talvez, só talvez, Amaterasu não gostasse tanto assim de ser contrariada por seu receptáculo — a Kan’uchi torceu para que não afetasse o progresso de seus poderes.
Após mais alguns minutos e tentativas frustradas, a sorte sorriu para a menina. Não que fosse admitir, mas escutar o clique da maçaneta se abrindo transmitiu um arrepio agradável por seu corpo sedento por melhora. Tinha que aproveitar aquela chance.
— Alteza Kan’uchi? O que faz aqui?
Seus olhos dourados encontraram os âmbar de uma garota de pele escura e cabelos brancos, sentada sobre um banco diante de um enorme cavalete. O quadro, posicionado um pouco torto na estrutura, havia sido iniciado há pouco tempo, chutaria que não mais que uma hora ou duas, a julgar pelos poucos pincéis dispostos sobre a mesa lateral.
Ainda que o rosto de Kyorai não expressasse nenhuma mudança significativa, sentiu a mana dela oscilar sem controle, como se comunicasse o desespero da harenariana em ter sido descoberta naquela posição. Seu corpo pequeno tentou ocultar o desenho óbvio de Olympia, falhando miseravelmente no processo.
— Estava buscando uma sala de treinamento… — Todas essas percepções foram enterradas para manter seu tom de usual desinteresse. — Quando encontrei uma sem a tranca ativada, acreditei estar vazia. Peço desculpas por invadir sua privacidade.
— Eu que peço desculpas à senhorita, Alteza. Esqueci de trancar a porta e, por consequência, fiz a senhorita ver algo tão inferior.
Shikage, enquanto falava, iniciara a desmontagem de seus materiais e, naquele instante, era a vez de guardar o projeto inicial em seu armazém espiritual. Antes que pudesse, todavia, a mão da princesa do sol segurou a sua própria no lugar — nem percebeu que Yoko aproximou-se dela. Ansiedade tomou conta da mais baixa ao notar o contato visual da recém-chegada com seu trabalho.
Não fazia ideia do que havia atraído o interesse de sua colega, seria a mediocridade da pintura? Havia começado há pouco tempo, vítima de um impulso de motivação ao receber seu primeiro pagamento como aluna da Academia de Palas. Por anos, sonhou com a oportunidade de usar a tela branca como forma de expressão, e sua ânsia por usar o pouco tempo disponível para isso lhe custou caro.
O silêncio entre elas perdurou, cada qual por seu motivo. Por fim, Yoko virou o rosto para o dela.
— Não sou nem de longe tão crítica de arte, mas devo admitir… Gosto de seu estilo, senhorita Shikage — elogiou a ruiva, sem demora. — As pinceladas são tão leves, teve alguma experiência anterior com pintura?
— Muito pouco, com uma colega do orfanato. — Kyorai passou os dedos pela superfície da tela. Uma onda de nostalgia a atingiu. — Ela me ensinou um pouco da parte teórica… mas nunca tivemos dinheiro para comprar os materiais. Quis fazer uma vontade minha ao menos uma vez na vida.
A princesa acenou em concordância. Havia outra razão para estar calada na presença da outra garota, algo muito mais do que admiração ao trabalho dela. O rosto de seu amado passou por sua cabeça, e ela foi capaz de rememorar com nitidez as palavras ditas a ela.
Desde o dia do piquenique, Yoko e Shuyu não haviam tido quase nenhuma chance de estarem na companhia direta um do outro. Embora estudassem juntos e, com enorme frequência, trocassem olhares, não era a mesma coisa. Os professores, muito provavelmente por conta do histórico das casas rivais, sempre os colocavam separados.
Naquela tarde, o apoio de Tatsuyu e Reiko permitiu que o jovem casal se esgueirasse de suas obrigações em seus respectivos apartamentos. Disfarçados com roupas bem mais casuais, eles fugiram juntos até as docas, onde um banco com vista para o Mar das Lendas serviria como testemunha ao amor adolescente deles.
Se qualquer colega deles soubesse de sua localização, seria incapaz de acreditar que Yoko era capaz de ter aquele sorriso brilhante estampado em seus lábios. Como sempre, a conversa entre ambos era fluída e divertida, entre assuntos diversos e piadas que apenas eles entenderiam. Afinal, aquela foi a maneira simples de Shuyu de conquistar o coração frio da Guardiã de Amaterasu.
Em algum momento, o tópico tornou-se os colegas de classe da 1-1. O olhar de Shuyu enrijeceu, e Yoko sabia o que isso significava — seu namorado estava com algum problema. Discretamente, entrelaçou seus dedos aos dele, para transmitir a confiança para o rapaz.
— Vai me contar o que está te atormentando, Shu? — convidou-o a falar, encarando-o nos olhos. O garoto retribuiu o toque com carinhos suaves na superfície de sua pele. — Você sabe que vou te ouvir.
O brilho gentil dela refletiu nos olhos esmeraldinos dele. Se antes havia receio em seu coração, este foi afastado pelo calor a ele transmitido por aquele toque simples e significativo. Ponderou por alguns instantes a melhor maneira de abordar o assunto.
— A mana da Shikage… — expôs o príncipe. Yoko ergueu uma sobrancelha em dúvida. — Tem algo estranho com ela. É como se eu sentisse algo pegajoso nela, não sei explicar.
— Nossas magias são opostas, luz e sombra. Mesmo assim, nunca senti nada assim perto dela.
— Você sabe que não sou normal, Yoyo.
— Não mesmo. E por favor, esse apelido me lembra a Shino, não usa não.
O pedido dela fez Shuyu rir e, em sequência, ser calado com um tapa certeiro na nuca. Não que isso o incomodasse, de forma alguma — amava ser “vítima” da espontaneidade contida de sua amada.
— Bem, eu já vou indo.
De volta à realidade, a nobre percebeu a esquiva silenciosa do assunto sobre o passado de Kyorai. Era natural não saber nada da garota, uma vez que não havia proximidade alguma entre elas, e a Guardiã de Ártemis nunca cedeu espaço para uma aproximação verdadeira. Suas únicas “amigas” de fato eram Ayame e Haruhi, cujo esforço sem precedentes uma hora a deixaram minimamente confortável ao redor delas.
Do ponto de vista de Shikage, sua fuga fazia mais do que sentido: além da vergonha de ter sua paixão juvenil exposta, a imponência da mais influente princesa dentro da Academia de Palas lhe era bem incômoda. Havia mais malefícios do que benefícios em se aproximar de alguém poderosa como Yoko Kan’uchi.
Por isso, quando o braço franzino da harenariana foi envolto pela mão pálida, ela não tinha como reagir de outra maneira que não surpresa.
— Senhorita Shikage — chamou, com neutralidade — me concederia a honra de um duelo?
— Por quê? Acredito que a senhorita prefira treinar sozinha, não?
— Magia de sombras foi… meu nêmesis no exame, assim digamos. — A aura laranja de Yoko a envolveu. — Quero estudar alguns novos truques. E a senhorita é a única da 1-1 com essa especialidade.
— O senhor Tamaki não seria uma escolha melhor?
— Por favor, prefiro casar com Sua Alteza Mizuchiko do que sequer cogitar uma sessão exclusiva para esse ignóbil me bajular. — Não havia um traço de piedade nas palavras cruéis. — Então, o que me diz?
“Não que eu tenha muita escolha, né?”, refletiu Kyorai, notando que o aperto sobre seu membro se intensificou após a pergunta. Era uma incógnita se aquele autoritarismo era consciente ou não, mas o que poderia fazer? Negar um pedido dela seria mal visto pelas colegas dela, e não precisava de um clima terrível na sala de aula.
— A senhorita que manda, Alteza…
— Ótimo, vamos começar agora mesmo. Saque sua arma — ordenou Yoko, tão séria quanto antes. — Três… dois…
— Espe…
Por reflexo, sacou seu punhal. Uma escolha acertada, sem dúvidas, pois Kan’uchi falou sério em começar em três segundos — se não fosse a lâmina no caminho, Kyorai teria sido fatiada pela katana ágil da princesa do sol.
O Manto da Lua Nova não era rápido o suficiente para ocultá-la sem um tempo de conjuração considerável, sua proeza com sua arma cortante era pífia e sua força física era risível. Logo, à curta distância, tudo que restava para a garota de cabelos de leite era esquivar repetidas vezes dos ataques e torcer pelo cansaço da outra parte.
Uma ideia falha, pelo visto. Quem estava à beira da exaustão depois de algum tempo nessa situação era ela, cujo suor escorria pelas laterais de seu cabelo pouco volumoso. Não poderia continuar por muito mais.
Com um salto mais potente, conseguiu distância suficiente.
— Noite Errante! — comandou, desesperada.
Sua mana azul-cobalto tornou-se sombra, vazando de seu corpo e consumindo tudo ao seu redor. A escuridão profunda devorou o brilho, antes intenso, de todas as fontes de luz do ambiente, mergulhando-o num oceano de cor negra. Yoko podia sentir a deusa do sol em seu interior contorcer-se em desconforto pela cegueira.
“Em meio às trevas é quando o sol brilha mais forte”, foram as palavras de sua mãe, um dia ditas a ela. Não era mais capaz de detectar a mana de Kyorai — seu atordoamento, apesar de breve, foi suficiente para deixar a oponente entrar em sua zona de conforto. Embainhando sua katana, inspirou fundo e deixou sua aura vazar aos poucos.
Além da falta de visão, duvidava do silêncio assustador ser natural. Era uma técnica apenas para ocultação, um protótipo barato do Eclipse do Mundo Invertido de Shou Rikage. Incapacitada de sentir qualquer coisa por seus sentidos, optou por focar na única coisa que Kyorai era incapaz de neutralizar.
O sinal para desviar veio da esquerda, uma oscilação quase imperceptível em meio à sua mana liberada anteriormente. “Óbvia demais”, comentou para si antes de esboçar um sorriso suave.
— Horizonte Flamejante!
O corpo de Yoko girou para a direita. A lâmina brilhou na cor dos cabelos dela, envolta em uma camada mágica poderosa que cortava a escuridão eterna com seu brilho. “Não vou cair no mesmo erro duas vezes”.
Dito e feito, o barulho de metal chocando com metal deu a certeza de sua experiência traumatizante com a antiga General dos Sentinelas das Ondas ter valido à pena. Kyorai conseguiu amortecer o impacto com seu punhal, mas o choque poderoso foi suficiente para arremessar seu corpo pelo campo e desativar sua magia em área.
Não teve sequer de se colocar de pé e Yoko já estava com a katana apontada para ela, encarando-o de cima com aqueles olhos dourados opressores.
— Confesso que seu poder é bem inconveniente de lidar. Foi uma boa tentativa — elogiou a princesa — mas a vitória é minha desta vez.
— Admito minha derrota.
A arma da solana desfez-se em partículas de mana laranjas. Kyorai, caída, aguardou o mínimo de gentileza para se levantar após ter sido abduzida para os desejos da colega — gentileza essa que não veio, pois Yoko apenas sentou-se no centro da arena e iniciou sua meditação diária. A julgar pelo fluxo de mana, ela havia entrado em transe bem rápido.
Em dúvida se estava ofendida ou só descrente com a falta de bom senso da princesa, Kyorai deixou a sozinha no cômodo privado em poucos segundos. A Guardiã de Ártemis não tinha a noção de que seu combate breve com Yoko fora muito mais frutífero que o esperado.
Pelo menos, para a herdeira de Helias, havia sido.
— Nada de estranho — murmurou, imersa em seus pensamentos. — Ela luta bem, ao menos. Me pergunto como fazê-la ser mais participativa…
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