Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 16.2: Dois tronos, um coração

24 de Dezembro de 4817 - Continente de Origoras, Reino de Helias, Palácio de Solane

 

“Bom dia (ou boa noite), raio de sol! Não sei em que horário vai ler essa carta. Acredito que na véspera do Festival da Estrela, pela demora de duas semanas que você sempre me contou. 

Aqui está muito quente, queria que fosse outono como aí em Helias. De preferência, embaixo de uma coberta quentinha com você — deve dar pra notar, mas eu sinto sua falta. Consigo até imaginar você falando (debochadamente) que não sente tanta falta assim, mas sei que quase seis meses sem ver um ao outro é tortura pro seu coração também. Ah, e eu sei que o outono aí é a mesma coisa do verão aqui, mas você me entendeu.

Estou escrevendo no aniversário do meu pai (dia 10), logo depois da festa. Ele e Suika anunciaram um namoro repentino, então agora ela é efetivamente minha mãe. É um pouco estranho depois de tantos anos acontecer algo assim, mas ver meu pai feliz é tudo que importa nessa situação. A Suika não sabia nem como agradecer as palavras gentis de todo o pessoal do castelo, nunca vi ela tão contente.

Falando de outros assuntos, falta um mês pro exame, como estão indo seus treinos? Certeza que agora você está fazendo aquela cara de convencida que eu sempre vejo, dizendo que não é surpresa que está indo bem. Eu não duvido que seja verdade, mas humildade faz bem às vezes (risos).

Meu pai diz que melhorei, assim como o Tatsuyu, Ayame, Heishi e Haruhi. Eles são bons amigos, como dá para ver nessa foto que a Suika tirou de nós (tá dentro do envelope). Quero logo apresentar todo mundo pra você, acho que vai se dar especialmente bem com a Haruhi, já que ela também gosta de maquiagem, produtos de beleza e tudo mais que não entendo nem quando você explica. Não que você precise deles, claro, não tem garota mais linda no mundo…

Sonhei contigo semana passada, acredita? Deve ser porque tenho ido ver os girassóis mais que o normal — ansiedade, sabe como é. Tenho desenhado bastante também, principalmente os campos floridos do castelo. De alguma forma, sempre acabo pintando você por lá. Espero que goste do desenho que fiz (tá dentro do envelope também).

Puxa, quase meia página já? Acho que você deve estar pensando que quer voltar pro treino a esse ponto (risos). Não consigo escrever pouco quando lembro que vai demorar pelo um mês para contar mais coisas pra ti. Pensar que ano que vem isso vai mudar e finalmente vou poder te ver quando quiser é o que me faz me esforçar ao máximo todos os dias.

A última coisa que quero contar é que, pela primeira vez, alguém não foi contra estarmos juntos. Tive que revelar pro Tatsuyu pra ele não ficar desconfiado de mim, mas foi bem mais receptivo mostrou apoio pra nós. Longe de mim ter duvidado em algum momento, mas saber que a esperança não é só nossa me deixou bem feliz.

Vou esperar uma última carta antes de nos encontramos em Palas. Ou será que você vai me fazer continuar louco por você por um tempo a mais?

Eu te amo, Yoko Kan’uchi. Te vejo em breve.

Com amor e saudade,

P. S.”

— Eu me pergunto como me apaixonei por ele… 

A voz embargada da jovem, sentada à sua escrivaninha, mal ecoou pelo quarto espaçoso, preenchido naquele momento pela luz do sol nascente. Teve que conter seus olhos dourados para não chorar ao ver o belíssimo item enviado pelo seu amado — um desenho dela em meio a um campo de girassóis, junto da fotografia dele com os novos amigos. 

A representação estava tão perfeita que a garota ficou admirando os detalhes por bons minutos. Havia imenso carinho e cuidado na cor dos longos cabelos lisos, pintados no tom de laranja do pôr-do-sol; na silhueta esguia, de pele branca delicadamente representada; no chapéu de palha sobre a cabeça da figura, dourado como suas íris… Yoko sentiu o calor em seu peito aumentar quando releu o último trecho.

— “Te vejo em breve”, não é, querido? — releu a princesa, soltando uma risadinha apaixonada em seguida. — Só você mesmo pra afrouxar minha postura, Shu…

— O que tanto suspira, Alteza? — chamou uma voz próxima ao batente.

A moça escondeu velozmente o papel assinado por seu amado, ao mesmo tempo que assumia uma expressão de neutralidade absoluta. Seu rosto agora tinha tanta emoção quanto uma boneca de porcelana — até o tom natural de sua pele se assemelhava com uma. Um pigarreio meio alto de Yoko fez a recém-chegada, de cabelos castanho-claros, levantar uma sobrancelha.

— Shino, eu já lhe pedi que bata na porta antes de entrar em meus aposentos — repreendeu a ruiva. — É deselegante fazer isto, ainda mais com outra dama.

— Ora, o que minha priminha está escondendo que nem a sua querida prima mais velha pode ver? — debochou a garota, enfatizando o apelido — Hm?

Acostumada a lidar com pessoas de sua própria idade, Shino Einatsu tinha certeza de que Yoko Kan’uchi entregaria seu segredo de bandeja de alguma forma — fosse um rubor, uma mudança na aura, qualquer coisa. O tempo sem falar com a princesa a fez esquecer-se que aquele jamais seria o caso.

Pelo menos, não com a herdeira de Helias.

— Apenas uma questão pessoal que prefiro que se mantenha apenas dentro de minha própria mente, querida prima. — A esquiva de Yoko foi perfeita. — Por isso, peço gentilmente que se retire para que eu possa seguir com o que eu estava fazendo.

— Poxa, nem um sorrisinho? — decepcionou-se a visitante. — Você é tão fria com todo mundo, Yoyo, às vezes nem parece humana. Ter sentimentos não faz mal.

— O único sentimento que uma Kan’uchi deve ter é a responsabilidade para com o povo de Helias e Amaterasu, Shino — retorquiu Yoko. — Como Sua Majestade, minha mãe, tenho de mostrar que a grandiosa linhagem de nossos antepassados segue focada em construir o futuro deste reino.

— Esse discurso não, Yoyo! — A repulsa na fala de Shino fez a princesa franzir as sobrancelhas finas. — A tia Kyouka já me traumatizou com ele.

— Me pergunto se você realmente frequentou as aulas de etiqueta, Shino. 

Einatsu deu de ombros, despreocupada. Sua prima mais nova poderia ser bastante incômoda quando se tratava de manter a formalidade. Não que isso afastasse Shino de qualquer maneira, mas ela preferia apenas evitar dar brecha a esse comportamento.

Conforme a morena se aproximou, sentiu a aura de Yoko vibrar com a sua.

— Susanoo tá querendo bater um papo com a Amaterasu, pelo visto — comentou Shino, sentando-se na cama próxima à prima. 

— Minha mãe diz que é a primeira vez em séculos que os Guardiões de ambos partilham do mesmo sangue — rememorou a ruiva. — Acredito que esta proximidade deve empolgá-los grandemente.

— Com certeza, querida Yoko. É bom ver meu irmão novamente.

Imponente, a projeção de uma mulher apareceu no quarto. Seus olhos, dourados tal qual um campo de trigo ao entardecer, reluziram na direção das jovens. Estava trajada em um belíssimo quimono de mangas bufantes cor de pêssego, com diversos magatamas vermelhos desenhados pelo tecido. Um obi com estampa de cerejeira prendia a peça de roupa no lugar.

Ao seu lado, um homem de igual altura, mas de escleras negras e olhos azul-cobalto, também encarou-as com uma expressão alegre. O quimono de tecido azul-escuro estampado com uma grande onda em suas costas contrastava belamente com sua longa barba cinzenta.

— Faço de tuas palavras as minhas, irmã — agradeceu Susanoo, com um sorriso. — Lembro-me das minhas atitudes repulsivas, eras atrás… Como eu era vergonhosamente desonrado e tolo.

— Isto são águas passadas. — Amaterasu ajustou a gola do quimono, revelando brevemente um magatama feito de jade em seu pescoço. — Esqueci-me da última vez, mas que bela arte esta em suas vestes. 

— Hokusai era um fascinante ser humano. Talentos como ele sempre foram raros — suspirou o deus. — Me pergunto se sua alma ascendeu.

— Torçamos que não, assim poderemos ver mais das magníficas obras-primas dele. Oh, perdão, eu e meu caro irmão não vamos atrapalhar a conversa das senhoritas.

As projeções dos deuses afastaram para além da parede, como espíritos. Shino achou graça na empolgação das divindades; Yoko, nem tanto, dada sua expressão enfadonha.

— Voltando ao assunto, Yoyo — retomou a mais velha, encarando-a — pretende ir à celebração de família hoje? A gente gosta de ter sua presença.

— Tenho de treinar, Shino — bufou a princesa, puxando um livro da pilha sobre a escrivaninha. — Não tenho tempo a desperdiçar com tradições fúteis e estarrecedoras.

— A antissocial ataca de novo. 

O olhar duro de Yoko se fez presente na direção de sua prima. Embora ela estivesse parcialmente correta sobre sua falta de interesse em conversar com estranhos por horas, a recusa da herdeira tinha outra razão: não se sentia confortável sob o rígido olhar de sua mãe.

Desde que conheceu e se apaixonou por Shuyu, há pouco mais de 2 anos, sentia-se sufocada na presença de Kyouka. Era como se o recém-surgido sentimento pelo príncipe competisse por espaço com a expectativa da rainha dentro do corpo da garota. Dividida entre a emoção e a razão, o dever e o amor — esta era a perfeita definição do espírito de Yoko Kan’uchi.

A única maneira de conter seu incômodo crescente era fugindo. Era a maneira de não ser obrigada a encarar as consequências de seu “pecado capital” ao seu país e criação.

— Não há motivos para eu ir. Tenho plena certeza de que Sua Majestade assim desejaria — atestou, não mais olhando para sua parente.

— A tia Kyouka não é um carrasco, Yoko! — retrucou Shino, indignada. — Ela é sua mãe e te ama também!

— Você não deveria voltar para Palas para passar com o senhor Einatsu? — A frase anterior foi deliberadamente ignorada. Shino bufou em menção ao seu pai. — Havia dito que estariam em Palas, se não me engano.

— Vou sair amanhã de manhã. Usando meus poderes, é tranquilo chegar até o fim da tarde em Cherina.

Yoko não se convenceu, mas não ia se opor aos planos da Guardiã de Susanoo. Seu foco passou em definitivo para as páginas detalhando a evolução da aplicação da magia — Shino tinha plena noção que Kan’uchi entrou em estado de transe, totalmente inacessível a uma pessoa comum. Ela assim permaneceria por algum tempo, para a tristeza da prima.

— Priminha, eu não sei o que passa na sua cabeça a maior parte do tempo… — Os dedos longos e finos de Yoko apertaram a capa do livro. — mas saiba que eu sempre vou estar com você. Te vejo depois.

A saída silenciosa de Shino deixou um gosto amargo na boca da princesa. Restou para ela se arrumar para o longo dia de treino pesado.

— Eu me arrependo profundamente de deixá-la me convencer…

Sentada em seu lugar à mesa da realeza, a herdeira de Helias só podia praguejar contra suas próprias decisões. A conversa com Shino a “forçou”, pela ausência de uma palavra melhor, a comparecer à festa de família naquela mesma noite. A ausência da prima até então estava dando nos nervos da princesa. 

De cabelos presos e usando um quimono carmesim com muitos sóis ilustrados no tecido, não demorou muito, contudo, para Yoko lembrar o porquê estava tão relutante em ceder no início. Homens nobres, das mais diversas idades, encaravam-na de cima a baixo — muitos deles com um olhar sugestivo para seu corpo maduro para uma adolescente de 15 anos. Que falta fazia o carinho genuíno e protetor de Shuyu naquele momento.

Para sua sorte (ou azar), a voz do anunciante tomou o salão. Ninguém mais a encarava — todos os olhos estavam naquela que adentrou o saguão com sua aura imponente.

— Saúdem todos Sua Majestade, Kyouka Kan’uchi! 

Todos os presentes levantaram-se de suas cadeiras para reverenciar a entrada da monarca, trajada em um quimono muito similar ao de sua filha. A única diferença notável entre elas era a utilização do obi dourado, símbolo da realeza de Helias há eras, ao redor de sua cintura e parte do busto.

Kyouka caminhou para o assento ao lado da filha com grande suavidade. Seus passos eram assustadoramente fantasmagóricos, como se os pés da rainha não tocassem o solo. A alcunha de “Executora Silenciosa”, como os presentes podiam ver, não era fachada ou exagero por parte da Longinus.

O alívio de Yoko pela situação anterior durou até encontrar os olhos de sua mãe, de íris amareladas e opacas. Em conjunto com a total frieza de sua face — diferente da mera inexpressividade da herdeira —, Yoko pôde sentir uma considerável intimidação ao retribuir o contato visual.

Um peso súbito sobre sua cabeça forçando a baixá-la.

— Boa noite, minha querida filha — saudou ela, quase que em um sussurro. — Estou surpresa que tenha se disposto a participar de nossa comemoração.

— Boa noite, Sua Majestade. — Embora amedrontada, Yoko manteve a voz firme. — Shino fez-me considerar em ao menos ter minha refeição junto de todos antes de seguir para os meus treinos noturnos.

— Muito me agrada ver sua dedicação, Yoko.

— Obrigada, Majestade.

Como o esperado, nenhum comentário sobre passarem o primeiro Festival da Estrela juntas em muito tempo, sobre sua aparência, sobre qualquer outra coisa que não o treinamento. A princesa engoliu seu desconforto, assim como a vontade de pronunciar a palavra “mãe”. Yoko era e sempre seria somente um recipiente para a vontade de Helias, como um dia todas antes dela foram.

Estava tão imersa em devaneios que nem percebeu a chegada de seu pai à mesa. A presença de Jikutei Kan’uchi, educado e simpático, lhe ofereceu um calor que não sabia que precisava naquele momento — agradeceu mentalmente por ao menos seu pai ser uma pessoa normal. A rainha ergueu sua taça, gesto que foi replicado pelos demais presentes.

— Por mais um próspero ano ao grande reino de Helias… — Kyouka direcionou o olhar para Yoko. — e à entrada de Yoko na Academia de Palas. Saúde!

A princesa não replicou o mesmo “entusiasmo” que ela, forjando um falso contentamento por meio de sua expressão — a melhor mentira que seu rosto de boneca lhe permitia fazer. Sua mente estava distante, ignorando os muitos agradecimentos e palavras graciosas que eram despejados sobre ela, sem cessar. Comentários e desejos de boa sorte vazios e desconexos de quem ela verdadeiramente era ou o que gostaria de sentir.

“Espero que o tempo passe logo para eu escrever ao Shu”. Seria com esse pensamento que aturaria as próximas horas de falsidade e desconforto.



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