Filho das Cinzas Brasileira

Autor(a): Hiore


Volume 1

Capítulo 2: Monstros Encarando-te

 

Em passos inseguros e lentos, Ana desceu as infinitas escadas. Com a postura contraída, seu olhar ia de um lado para o outro, tomava cuidado para não esbarrar em nenhum dos muitos alunos descendo. Seu coração acelerava conforme ela se sentia mais próxima do auditório, do palco, do público, do microfone.

Entrou e deu de cara com os bastidores onde professores e alunos de destaque estavam. Se separando do mar de pessoas, seguiu na direção daquelas figuras imponentes, sempre olhando de relance, e com certa inveja, para a plateia. 

O olhar continuava pregado no chão, cada movimento exigia muito esforço. Era um animalzinho muito preocupado, facilmente intimidado pelo tamanho e aura daquelas pessoas. Mesmo assim, forçou sua voz a sair da garganta para cumprimentar todos.

O primeiro foi o diretor, homem alto, trajava farda militar e com postura reta e digna. Um grande predador de ombros largos e olhar poderoso, por sorte, seu sorriso confiável amenizava sua presença sufocante.

Depois foram vários outros, cada um imponente da sua própria forma. Mal passaram 5 minutos, mas sentia como se fossem horas, por isso Ana reclinou o corpo cansado em uma parede no canto da sala. Quieta, observava os arredores, enquanto acabava de conectar os nomes que memorizou com os rostos que via.

Vez sim, vez também, seu olhar viajava para a escada ou plateia, sempre na expectativa de encontrar o familiar rosto do Leo. Como ele poderia ser tão imprudente! Esquecer a carteirinha já no primeiro dia era idiota demais, agora, por causa desse erro, ela não poderia falar com ele para se acalmar antes da apresentação.  

Foi em uma dessas espiadas, que viu uma pessoa vibrante. — Olá, todos… ha! — Com a voz cansada e sem fôlego, a loira chamou atenção para si. — Foi mal pelo atraso… ha!  — Relaxada, coçou a cabeça e se desculpou com um sorriso.

Era Sophia, uma linda estudante de olhos azuis vibrantes que vestia uma calça jeans skinny e uma blusa branca até o umbigo. Também usava colar, brinco, pulseira, ou seja, vários acessórios caros que brilhavam aos olhos.

Vasculhou o lugar inteiro em instantes, mas não deu qualquer atenção para o diretor que reclamava por seu atraso; quase saltando, seguiu na direção da Ana. Achou a garota fofa e decidiu ser amiga dela.

— E ai? — Inclinou seu corpo até ficar muito perto e, encarando nos olhos, sorriu; afastou-se um pouco e estendeu a mão animadamente. — Sou Sophia Bujiarzzo Pinheiro, você deve ser uma aluna nova, né? Vamos ser boas amigas.

Um arrepio percorreu Ana, ela só não deu um passo para trás por estar encostada na parede. Como um gato desconfiado, encolheu-se e olhou de relance para aquele ser vibrante. Não sabia como lidar com alguém falando com ela repentinamente.

— Sou Ana, prazer… — respondeu sem jeito, fugindo do azul forte nos olhos da loira, virou sua atenção pro chão. 

De repente, o sorriso vacilou e uma certa raiva apareceu no seu olhar da Sophia. Notando o próprio comportamento, tentou ajustar e acabou com um sorriso forçado.

— Por acaso você é a Ana Santos?

As mudanças repentinas eram assustadoras para a menina tímida. Querendo fugir, pensou até em mentir, mas acabou dizendo que sim com um balançar sutil da cabeça.

— Entendo, foi você que entrou com a nota mais alta da história, né… — se forçou a botar um sorriso relativamente amigável no rosto — parabéns por quebrar o meu recorde!

Se virou rápido e escondeu a irritação que surgia, saiu andando com passos firmes enquanto lembrava da derrota. Deixada para trás, Ana suspirou aliviada, naquele breve tempo, sua capacidade cardíaca tinha sido testada e aprovada. Mal tinham se falado, mas já considerava aquela desconhecida uma pessoa assustadora, queria distância.

Então, antes que ela notasse, os discursos começaram O primeiro a entrar com passos firmes foi o diretor. Chegou ao microfone e, sem pressa, olhou para todas as pessoas com confiança, esperando até que ficassem em silêncio.

De forma inesperada, calaram a boca sem ele ter dito nada, era como se sentissem que deveriam ficar quietas. Então o discurso teve início com os cumprimentos de sempre e algumas formalidades. Seu tom aumentou e ele disse:

— Anunciarei um aperfeiçoamento na nossa metodologia educacional, daremos aos alunos mais poder, mais voz e — em um tom mais firme, continuou — mais responsabilidade. Para uma melhor educação, completa em todos os sentidos, para a formação de um cidadão de bem, devem conhecer e sentir na pele a responsabilidade que carregam e carregarão ao entrar para sociedade! Por isso deixarei, para alunos, a responsabilidade pelos discursos de hoje. Não só eles! Saibam todos, queremos que tomem a frente, assumam outras responsabilidades e cooperem com a instituição.

Era invejável a força que tinha na voz, Ana não conseguia nem se imaginar falando dessa forma, só podia arrepiar e admirar. Com olhos amedrontados, continuou prestando toda a sua atenção e anotando, de forma mental, tudo o que ele explicava. 

Em sua mente a única conclusão era: impossível. Era impossível falar daquele jeito, era impossível se destacar, simplesmente… Impossível não existe, porém; ou existe? A imagem do seu pai, orgulhoso e sorridente, diria que nada é impossível. Lembrando do seu caixão, do choro daquele dia, ela não poderia dar um passo para trás.

Idolatrando aquele homem, Ana nunca questionaria suas palavras, portanto, para ela, definitivamente não existia algo como impossível. O palco era assustador, se imaginar lá era como tomar uma facada, algo que não queria fazer de forma alguma, mas… 

Coragem, coragem é o mais importante! Seu pai tinha sido um militar que nunca fugiu e, para não se sentir ainda mais uma falha, não podia fugir. Os aplausos marcaram o fim da paz, a garota era a próxima, por isso, assim que o diretor deixou o palco, ela avançou para aquele campo de batalha.

Suas costas curvaram e, inconscientemente, levou a mão ao peito. Cada passo era instável e, por mais que quisesse olhar para frente, seu olhar sempre recai na rota de fuga. Notando a própria fraqueza, imaginou sombras decepcionadas, comparava-se com elas, com essas memórias de pessoas incríveis e, perto delas, era minúscula.

Entre o microfone e os bastidores, o caminho era longo. Adentrando à terra de ninguém, sentiu o primeiro impacto: luzes fortes e, antes que os olhos pudessem se acostumar, os sons estouraram como uma bomba. Sem notar, já estava no meio daquela guerra; cercada por inimigos, tinha que chegar ao microfone.

Avançou a passos inconstantes, acelerando e desacelerando. Cada vez mais perto, já reconhecia rostos, alguns olharam para ela e suas pernas tremeram. Qual seria a distância que percorreu? Não mais que 4 metros, mas, se dissessem 400, acreditaria.

Quando finalmente alcançou a nova trincheira, entendeu: era só o começo. Com a parte fácil feita, agora tinha que forçar o ar para fora dos seus pulmões, mas as barreiras eram maiores do que nunca. O máximo que conseguiu, foi que um inaudível "ah" escapasse pela garganta.

O suspiro fraco, captado pelo microfone, foi reproduzido de forma ruidosa. Sua pele ferveu diante das risadas que ecoavam. Por um instante, todo seu corpo se preparou para fugir, mas paralisou e tremeu. Ainda tentou se posicionar para falar, mas acabou pisando em um fio, quase tropeçou.

Sua imagem caindo, as risadas, os olhares que lhe dariam em todos os dias que seguiriam; Ana podia ver tudo isso, sua mente criava o pior dos cenários, misturando o barulho das fofocas e do seu coração. 

Conforme tudo ficava escuro, o real era substituído por sombra, a imaginação distorcida tomava conta de tudo. Pouco importava o que acontecia ao seu redor, via apenas imagens embaçadas criadas por sua mente em pânico. A sombra assustadora, a envolvia estendendo sua mão para sufocá-la.

— Gostaria de falar so-sobre segurança… — desviando o olhar para o chão, tentou dizer com clareza. No meio das palavras, lembrou que não tinha se apresentado; já tinha falhado, acreditou. Como não havia mais volta, continuou falando as palavras misturadas que lembrava.

Todos aqueles papéis, pesquisas e pensamentos vinham em um emaranhado. Se arrependeu profundamente de ter escrito mais de um discurso… qual era seu tema mesmo? Perdida, disse muitas palavras.

Segurança seu pai sentimentos polícia efetividade 15% novo plano diretor marcados o mal do século planos planejamento mudança pensamento estratégico melhor treinamento água assassino futuro colaboração…

Sem dúvidas havia um sentido que ligava essas palavras, mas era difícil para ela ter certeza de que conseguiu transmiti-lo, mesmo que conseguisse, poucos ouviriam-no, sua voz era baixa e, mesmo que ouvida, sua forma de falar quase não tinha impacto, era, no máximo, esquecível. 

O barulho aumentava, ela podia sentir isso, o desinteresse generalizado se espalhando. Com o peito apertado, lamentou ter cedido para o medo e ficado em silêncio, afinal isso só aumentou o barulho. Mais que nunca, seus músculos estavam prontos para fugir. 

Se segurou como pôde, era sua responsabilidade fazer aquilo, por isso resistiu a uma desagradável ânsia de vômito e tremor pelo corpo.

Conseguiu falar até a última palavra. 

Falou, falou e falou, talvez mais do que o necessário e, ao se despedir, não sentiu um pingo de alívio sequer, apenas sentiu que tinha falhado.

Deixando o palco, recebeu olhares de reprovação e de pena, mas o único a falar foi o diretor. Curto e grosso, como sempre era, o homem a criticou duramente e, sem um segundo olhar, foi fazer outra coisa. Todos tinham trabalho a fazer, por isso Ana logo se viu livre da atenção e olhares.

Como um rato, esgueirou-se para fora daquele lugar, tinha que aproveitar o momento em que esquecem dela. Por mais que fugisse, não conseguia sentir alívio, o ar não adentrava seu pulmão de forma alguma.

Foi só ao chegar no meio das escadas que conseguiu um pouco de silêncio, com quase todo mundo no auditório, aquele lugar era deserto e silencioso: perfeito.

Ar entrou nos pulmões, conseguindo acalmar um pouco a mente, sentou ali mesmo.

Segurou lágrimas, não se permitia chorar. Abraçou o joelho e se lamentou sozinha, tudo que conseguiu foi um pouco mais de autodepreciação, mas, pelo menos, se acalmou.

Uma paz melancólica e… Um grito?

Não tinha certeza, mas um arrepio percorreu a espinha quando ouviu algo como um grito. A mente que já queria algum refúgio, focou sua atenção no som.

Temporariamente, a adrenalina ajudou a esquecer os pensamentos, como se as vozes que atormentavam se calassem. Subiu a escada para conferir o que ocorria.

Começou com passos lentos, mas acelerou, cada vez os gritos ficavam mais altos e seus passos aceleravam, logo estava correndo.

Merda, o que está acontecendo?

Por fim, escutou o estrondo de uma explosão, os lamentos, a destruição, o som rítmico de seu coração, com tantos barulhos misturados, era impossível entender direito a situação.

Chegou ao primeiro andar e… Era vermelho; de início, foi cegada pela cor forte, violenta e imponente do céu. 

Com os olhos ainda debilitados pela força daquele brilho todo, só ouviu uma mistura assustadora de sons, até que um rugido cortou tudo aquilo.

Com quase 2 metros de altura, estava na sua frente um animal que parecia com um filhote de urso, com a pequena diferença que tinha um chifre roxo no centro da testa.

Sem dar tempo para respirar, a criatura avançou na direção da Ana. O peito apertou, a respiração pesou, uma enorme pressão a paralisava, era o medo. Mais uma vez, se via cara a cara com o pavor, com a paralisia.

Cerrou os punhos, dessa vez seria diferente.

Numa explosão de adrenalina, sua mente clareou, só uma coisa importava: ficar viva. Todos os pensamentos foram limpos, a única coisa que importava era sobreviver. 

Reagiu rápido, deu um passo para trás e, em sua frente, algo invisível atrasou a besta por alguns segundos. Ana conhecia os limites dos seus poderes, por isso foi rápida em usar os instantes que teve para analisar os arredores.

Um extintor, as janelas, uma velha arma decorativa, a estátua, o tamanho reduzido do corredor, alguns quadros. De repente, viu uma luz, tinha como derrotar aquele inimigo.

Num ato quase insano, avançou até o monstro, desativou sua tatuagem e apostou sua vida na única escapatória que havia.

O urso reagiu com um rugido, as garras brilharam num tom lilás e ele moveu a pata em um ataque de cima para baixo. Um movimento previsível, o animal ainda atacava como um urso caçaria; saber disso, deu a possibilidade de desviar.

Por centímetros, as unhas da besta não atingiram os olhos da Ana. Num movimento surpreendentemente atlético, ela deslizou alcançando o extinto atrás do inimigo.

Usou a ferramenta na hora, o jato era relativamente forte e, com isso, conseguiu ganhar alguns segundos. 

O tempo era precioso para respirar com calma, Ana sempre treinou para ser militar, por isso podia se mover bem, mas sua crônica falta de fôlego era um grande empecilho.

Antes que a carga do extintor acabasse, ela esticou a mão para alcançar a arma na parede. Era uma espingarda, provavelmente teve um disparo poderoso no seu auge, mas ela nem perdeu tempo tentando atirar, aquela velharia não funcionaria mais, nem teria carga.

Empunhou a arma como se fosse um bastão, na outra mão carregava o extintor como escudo. Era um pouco pesado, isso limitava sua velocidade, mas não tinha o que ser feito. Por fim, deu alguns passos para trás, ficando de costas para a estátua.

O monstro não tinha nenhuma piedade, em instante, já estava avançando fortemente com a intenção de matar. Rugia como uma besta, seu olhar era assassino.

Pulou para cima da sua presa; tão frágil e pequena, ele não esperava que ela pudesse oferecer mais qualquer resistência.

Ana sorriu. Num movimento rápido, usou o extintor para se defender da mordida, o que levou o monstro a fincar as presas no objeto. Ao mesmo tempo, com toda a força que tinha, rolou o corpo, saiu do ataque da besta e fez ele cravar ao ombro na estátua.

O plano era simples, como a estátua tinha várias partes pontiagudas, aquilo poderia, talvez, ferir a pele do bicho.

De qualquer forma, ela soltou logo o extintor, aproveitou os poucos segundos de distração do inimigo e o acertou com toda a força. Um golpe certeiro no pescoço, tão forte que a espingarda quebrou.

Ana suspirou um pouco aliviada, afinal, se fosse um animal normal, aquele golpe causaria direto na traqueia seria suficiente para o abate. Infelizmente, o oponente era um monstro, não um animal.

Não levou nem um segundo, o urso avançou. O primeiro ataque, Ana conseguiu afastar usando sua “mão invisível”, mas chegou no seu limite em instantes. 

A besta atacou de novo, sua intenção era estraçalhar a presa. Naquele ponto, não tinha para onde fugir, para piorar, Ana sentia os efeitos da falta de ar, seu fôlego era, como sempre, terrivelmente ruim.

O ataque se aproximou, por isso a garota tomou sua decisão, a chance de sobrevivência era quase zero, mas o que restava era tentar um golpe de jiu jitsu, o prendendo em um triângulo de tal forma que ele não conseguisse a morder. Claro, as garras ainda continuariam livres para serem cravadas em suas costas, mas era a única opção que restava naquele momento.

Determinada, se preparou para arriscar tudo em um ataque, mas…

— Ana, corre! — Uma voz familiar cortou o momento de terror. Ao olhar melhor para a cena em sua frente, viu uma besta presa por tentáculos azuis. — Ha..ha… Como esperado, o herói sempre chega no último momento.

— Leo! — O rosto da garota se iluminou, até a falta de ar, magicamente, passou,

— Sim, sim, sou eu; agora, foge porra! Não consigo segurar essa merda por muito tempo. — Leo era fã de reencontros épicos e emocionantes, mas, na realidade, realmente não rolava perder tempo num momento emocional.

— Mas…

— Só vai de uma vez, já vou logo atrás. Vou ganhar um tempinho, você vai na frente e já avisa todo mudo sobre o que está acontecendo, vá encontrar o diretor. 

Claro, a garota ainda hesitava em abandonar o amigo naquela situação, queria dizer mais alguma coisa, mas não teve chance, logo um grito ressoou:

— Pode deixar o resto comigo, só vai, porra!

Mesmo sem entender nada, suas pernas se moveram para fazer como o amigo mandou. Talvez por medo, talvez por estar muito acostumada a obedecer os outros, talvez por racionalidade, a decisão final dela foi correr para o auditório.

E, enquanto ela corria para longe, outra explosão ecoava, era outra besta, essa bem maior, que vinha a todo vapor atrás de Leo.

— Olha que maravilha, parece que sua mamãe já chegou, porque não vai se reencontrar com ela.

Os tentáculos azuis que seguravam o filhote se moveram o atirando na mãe, Leo esperava ganhar alguns segundos com o ato, mas…

Num movimento feroz a besta deu um único tapa no animalzinho lançado em sua direção, um golpe e aquela criatura foi reduzida a carne moída.

Eu esperava um pouco mais de amor materno, sabia? Não fode!

Cansado, Leo encarou seu enorme inimigo, na ânsia de salvar a melhor amiga, ele tinha gastado todo seu resto de energia, mal conseguia invocar Plac mais.

A situação estava uma merda e, para piorar, o cheiro desagradável de cinzas estava começando a realmente incomodá-lo.

“Apenas queime ele?”

A voz bizarra ecoou em sua cabeça fazendo com que tivesse arrepios por todo o corpo, por alguns instantes, seu olho brilhou intensamente, mas Leo resistiu.

Respirando pesado, um sorriso irônico e um pouco insano se formou no rosto do garoto, então palavras de provocação escaparam pelo seu lábio.

— Pode vir para cima.

Como podia, assumiu uma postura de combate e encarou seu inimigo, não iria se entregar para a morte facilmente.

 

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Nota:

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É isso, obrigado por ler.



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