Volume Único
Ato 2: Berserker
Inglaterra — algum lugar em Londres.
A Torre do Relógio.
Para a maioria, esse termo se refere a um ponto turístico popular em Londres.
Para os magos, no entanto, significa algo completamente diferente.
É a sede da Associação que reúne inúmeros magos e, ao mesmo tempo, é a melhor instituição educacional para a formação de jovens magos.
Poderia muito bem ser chamado de Vaticano da magia. Tão antigo quanto a própria Inglaterra, produziu vários magos de primeira classe, cada um deles elevou a arte da magia a um novo nível.
“Porra....”
Uma palavra indigna daquela instituição austera ressoou pelos corredores.
“Você sabe o que você é? Resumindo, você é um imbecil.” Disse um homem de trinta e poucos anos se queixando com jovem que o encarava. Seus longos cabelos ondulavam na brisa enquanto reclamava.
Ele usava um casaco vermelho com ornamentos dourados nos ombros e seu rosto tinha uma expressão tremendamente azeda.
Mas aquele jovem desesperadamente respondeu—
“Ah, qual é! Pelo menos me descreva com três palavras!”
—uma resposta que estava um pouco errada.
“Você é um cretino e um imbecil. Não há outras palavras para descrevê-lo.”
O jovem ficou de pé, sem ser intimidado pelo homem severo.
“Mas eu realmente, verdadeiramente quero participar, mentor! Tenho que ir para os Estados Unidos para a Guerra do Santo Graal!”
“Tem merda nenhuma! Não saia por aí berrando isso nos corredores! Seu imbecil irrecuperável! Que merda... onde você ouviu isso? Não é um assunto secreto, mas certamente não é algo que um idiota insignificante devesse saber!” O mentor deu uma olhada no garoto insistente, verificando se não havia ninguém nos arredores.
Ele era um instrutor na associação, a instituição de ensino a mais nobre no mundo mágico e acima de tudo era conhecido como Lord El-Melloi II. Aparentemente, esse não era o seu verdadeiro nome, mas todos que o conheciam se referiam a ele como Lord El-Melloi II por respeito.
Embora ainda fosse jovem, foi considerado o melhor mentor na Torre do Relógio. Todos os alunos que o tiveram como mentor se tornaram magos de primeira classe. Seus alunos se tornaram famosos entre os magos do mundo por suas façanhas.
Como tal, ele ganhou o respeito de muitos magos, que lhe atribuíram vários apelidos, como “Mentor Carisma”, “Mestre V” e “Grande Big Ben ✰ Estrela de Londres”¹.
No entanto, ele não tinha grandes feitos em seu nome, e parecia um pouco irritado por seus alunos estarem roubando o centro das atenções.
Mas por enquanto, o que o irritava era especificamente o jovem que estava diante dele, que também era um dos seus aprendizes.
Em resposta à pergunta de seu mentor sobre a Guerra do Santo Graal, o jovem respondeu com indiferença: “Ontem, alguns mentores e administradores da Associação estavam realizando uma reunião do conselho em uma das salas de aula do porão, certo? Conhece aquele famoso mestre-de-fantoches, Sr. Rohngall? Essa foi a primeira vez que o vi em carne!”
Ao ouvir a resposta de seu aluno, a expressão de El-Melloi ficou irreconhecível, talvez enfurecida. Ele agarrou o rosto do seu aluno e sibilou, “Por—que—diabos—você sabe o que aconteceu na reunião?”
“Eu estava um pouco curioso, então espiei!”
“Era uma reunião secreta, seu idiota! Eles devem ter criado dezenas de Bounded Fields!”
Ele desviou os olhos. “Er, bem, veja, sei que eu não deveria, mas estava realmente, realmente curioso...” Respondeu, pedindo desculpas.
“Então tive uma ideia, por que não tentar hackear o Bounded Field da própria sala? E sabe o quê, funcionou!”
—silêncio.
O uso da palavra “hackear” entre magos não era uma peculiaridade dele: seu uso era de fato bastante prevalecente entre os magos mais jovens. Suas ações atuais provavelmente não tinham nada a ver com hackear ou crackear. Presumivelmente, ele quis dizer que tinha se infiltrado no Bounded Field sem ser notado, entrou na reunião e espionou.
Flatt Escardos.
Ele era o mais antigo dos alunos de Lord El-Melloi II.
Embora estivesse sob a tutela de El-Melloi desde jovem, ele passou muitos anos na Torre do Relógio incapaz de graduar.
Para descrevê-lo em poucas palavras, apenas os insultos de El-Melloi eram apropriados.
No entanto, usando mais algumas palavras, seria justo descrevê-lo como um homem com ilimitado potencial mágico e talento. Um homem que, no entanto, falta a capacidade de pôr esse talento para qualquer bom uso.
Ele era o filho mais velho da família Escardos, uma família que vivia na costa do Mar Mediterrâneo. Esperava-se que Flatt fosse um mago que tivesse Circuitos Mágicos como os que raramente são vistos, juntamente com o talento necessário para controlá-los, mas —
Infelizmente, seu talento mágico era inútil já que ele não tinha a disposição severa que é necessária para todos os magos.
No início, ele foi aclamado como um prodígio e estudou com vários outros mentores. Eventualmente, porém, todos eles começaram a desistir de Flatt e assim, por fim, ele foi designado para Lord El-Melloi II, pois não havia mais ninguém disponível.
Os anos se passaram. À medida que os talentos mágicos de Flatt se desenvolveram, ele passou a superar todos os outros alunos. Outros mentores foram incapazes de obter os mesmos resultados com seus aprendizes. Este era um bom sinal para a reputação do Mestre V.
Dito isto, Flatt tinha muitos outros problemas, por isso ainda estava na graduação da Torre do Relógio.
Normalmente, Lord El-Melloi II se recusava a ignorar os pontos fracos de um estudante, não querendo enviar um mago mal preparado para o mundo. Mas dessa vez e só desta vez, começou a lamentar ter feito tal escolha.
“Um idiota talentoso é o tipo mais perigoso de idiota...” disse Mestre V, calmamente.
O Mestre V tinha superado a raiva. Ele havia conseguido uma espécie de ascensão mística. Dito isto, ele parecia tão mal-humorado como de costume. Exausto com o aluno, falou: “Vou fingir que nunca ouvi nada disso. Agora pare de me perseguir com isso.”
“Não vou me incomodar, mentor! Eu só, você sabe, preciso de algum tipo de item para convocar um herói, certo?! Não sei como encontrar um desses! Se eu tivesse um retrato de Napoleão, eu poderia invocar Napoleão?! Um imperador seria bem legal!”
“Se eu fosse o Espírito Heroico do Napoleão, preferiria que você enfrentasse o pelotão de fuzilamento do que fazer um contrato com você!”
El-Melloi pensou em parar por aí, mas decidiu que não. Talvez porque alguma coisa sobre a Guerra do Santo Graal veio à mente, ele perguntou a Flatt uma questão séria. “...Flatt, você sabe... por que você quer o Santo Graal? Não consigo imaginar que você leve a magia tão a sério querer alcançar a Raiz. Te conhecendo, tenho que perguntar: você não está planejando graduar, ou quer me irritar por não deixar você se formar, ou qualquer coisa tão estúpida quanto, certo?”
El-Melloi estava completamente despreparado para a resposta de Flatt.
“Porque eu quero ver!”
“...o que?”
“Quero dizer, seria super legal! É o Santo Graal! Hitler e Gobbles queriam isso no Terceiro Reich! E Shi Huangdi e Nobunaga e Godzilla todos queriam ele também! Se ele realmente existe, só tenho que ver como se parece!”
“Seu nome era Goebbels, não Gobbles. Godzilla nunca procurou por isto. Eu não sei sobre Nobunaga ou Shi Huangdi, mas historicamente e culturalmente falando, isso simplesmente não parece certo.” El-Melloi corrigiu Flatt sobre pontos que não importavam, mas permaneceu em silêncio.
Flatt esperou um pouco para que seu mentor respondesse, esperando ser completamente repreendido. Eventualmente, El-Melloi suspirou, e calmamente disse: “Você entende o que uma guerra de mago contra mago realmente implica? Você pode muito bem experimentar coisas piores do que a morte e acabar morrendo de forma horrenda sem conseguir nada.”
“E as pessoas que sabem disso ainda procuram pelo Graal, certo? Agora quero vê-lo ainda mais!”
El-Melloi estava prestes a gritar com ele, lhe dizendo para pensar mais sobre isso—
—mas mesmo que pensasse mais, esse idiota provavelmente acabaria dizendo a mesma coisa.
Tendo chegado a essa conclusão, resolveu questionar Flatt de um ângulo diferente.
“Bem, me diga então: você tem o que é preciso para matar alguém pelo Graal?”
“Uh.... Se pudesse ganhar sem matar... tipo jogando xadrez, ou...”
“Brilhante! Se seu oponente fosse o Campeão Mundial de Xadrez, talvez funcionasse! Talvez pudessem ter uma partida de xadrez!”
“...Este é um problema complicado, hein. Realmente, realmente quero ver os outros heróis... e se funcionasse, quero fazer amizade com eles! Se ficasse amigo dos seis Heróis, eu seria um mago incrível! Poderíamos até mesmo conquistar o mundo!”
El-Melloi ficou em silêncio. Viu que Flatt desviou completamente da sua pergunta inicial em algum lugar ao longo da conversa.
Ele não planejava repreender Flatt, nem estava particularmente surpreso com suas divagações.
Ele pôs a mão no queixo e parecia estar pensando por um tempo —
Finalmente, voltou à realidade e disse: “...isso não está acontecendo.” Pondo um fim às fantasias de Flatt.
“Sim, sim, bem, eu estou contando com você, mentor! Ou, devo dizer, Grande Big Ben ✰ Estrela de Londres!”
“Não me chame disso na minha cara! E honestamente, por que você teve que escolher este apelido!? Está zombando de mim, não está? Está zombando de mim, seu retardado!”
“Bem, não se preocupe! Vou inventar um novo apelido para você. Vai ser perfeito! Como, hum, que tal ‘Mentor do Território Absoluto’²!?”
“Caia fora e morra!”
No fim, Flatt parecia claramente miserável depois de ter sido tratado com tanta frieza por El-Melloi. Ele perambulou pela ala acadêmica da Torre do Relógio. Caminhou por um longo corredor, humilhando de maneira imprópria um homem de quase 20 anos de idade.
E então—
“Ah, bom te ver.” Uma mulher gritou para ele do corredor.
Ela era uma das funcionárias administrativas da Torre do Relógio. Em suas mãos segurava uma grande caixa e um pequeno embrulho.
“Estes pacotes são para o seu mentor. Você poderia passar para ele?”
E assim, ela colocou os dois pacotes nas mãos de Flatt. Agora, ele teria que entregá-los ao Mestre V, mas...
—— Ah, cara, aposto que ele ainda está louco.
Flatt teve pensamentos negativos enquanto voltava pelo corredor quando se sentiu dominado pela curiosidade sobre o conteúdo da caixa. Usou a magia da clarividência para examinar seu conteúdo.
Ele viu uma pequena faca com uma aparência sinistra, provavelmente projetada para uso cerimonial.
E então, com seus penetrantes poderes de clarividência, viu um nome inscrito na lâmina. Uma sensação eletrificante percorreu seu corpo.
—— Poderia ser...!
—— Mentor...! Você conseguiu isso para mim!?
Dominado pela sua própria interpretação errada, ele saiu correndo, carregando a caixa com ele.
Havia vários símbolos no interior da caixa, mas eles não foram escritos de forma que ele pudesse ler. Presumivelmente, eram instruções mágicas de algum outro país ou algo assim.
Ele poderia descobrir como interpretar essas instruções alguma outra hora. Por enquanto, ele tinha um objetivo: chegar ao centro da ala acadêmica o mais rápido possível.
“Filho da mãe... ele já está aqui de novo?” Lord El-Melloi II claramente não estava satisfeito quando viu um certo alguém correndo pelo corredor em direção a ele. Porém, quando Flatt o alcançou com um pequeno pacote na mão, estranhamente começou a balbuciar sobre coisas que não tinham nada a ver com a Guerra do Santo Graal.
“M... mentor... você ... c... conseguiu... es... esta coisa... para... mim!” Flatt ofegou enquanto mostrava o pacote ao seu mentor. Tendo corrido uma centena de metros em um ritmo frenético, Flatt ficou sem fôlego rapidamente.
El-Melloi olhou para o pacote, no início estava inseguro sobre o que realmente era. Quando viu o endereço e a marca impressa no exterior, percebeu o que era e assentiu. “Então, você... o quê, você quer isso?”
Flatt assentiu furiosamente, como se estivesse em um show de rock.
“Bem, tudo bem. Se você quiser, pode tê-lo. Eu não precisava disso de qualquer maneira.”
Ouvindo a resposta do seu mentor, Flatt brilhou de felicidade — a maior alegria na sua vida até agora.
“Muito obrigado! Quero dizer, muito obrigado mesmo! Estou tão contente por ser seu aprendiz, mentor!” Ele saiu correndo, quase chorando de alegria.
“Droga. Quando tinha a idade dele, eu era tudo que ele não é. Aposto que usou clarividência para dar uma olhada... O que havia lá dentro que ele queria tanto?” El-Melloi murmurou em voz baixa, exasperado.
Alguns minutos depois —
El-Melloi II havia retornado ao seu quarto. Enquanto pensava em seu pupilo incompetente, um armário chamou sua atenção.
Tinha uma fechadura dupla, com um componente físico e um mágico. El-Melloi desabotoou cuidadosamente as fechaduras e pegou o objeto dentro do armário.
Era um recipiente de aparência peculiar no qual descansava uma peça de roupa.
A seu ver, era uma antiguidade. Estava em decomposição e não tinha nenhum uso aparente.
No entanto, dado que era o objeto mais cuidadosamente guardado na sala, era evidente que não era apenas um pedaço de tecido esfarrapado.
“Ter os outros Servos como amigos e conquistar o mundo, hein...” Pensando nas divagações de Flatt, ele franziu o cenho.
“Se eu não pudesse detê-lo, estava pensando em deixá-lo ter isso... mas estou feliz que não tenha chegado a esse ponto.”
Ainda franzindo as sobrancelhas, El-Melloi II suspirou de alívio e voltou a colocar a tampa no estojo. Pensou no pacote que tinha deixado com Flatt.
“Suponho que não estou em posição de falar, mas eles realmente devem repensar esse sistema de ter estudantes mensageiros com o correio de outras pessoas. Não que fosse um pacote particularmente importante. Bem, de qualquer forma, se isso o forçar a esquecer a Guerra do Santo Graal, então é uma coisa boa.”
Alguns meses antes —
El-Melloi estava desfrutando de alguns videogames japoneses na privacidade de seu quarto. Toda vez que ele terminava de jogar, preenchia o cartão que vinha na caixa do jogo e anotava suas impressões. Era apenas a coisa certa a se fazer.
Claro, ele teve que pagar o postal internacional para enviar os cartões de volta ao Japão, mas o fez mesmo assim. Graças a isso, ele tinha entrado em uma série de sorteios e assim, seu quarto estava cheio de todos os tipos de produtos do jogo.
Isso não quer dizer que preencheu os cartões para obter os produtos. Pelo contrário, ele tinha pouco interesse na maioria dos que recebeu. Ele realmente queria apenas repassar sua opinião para os designers dos jogos.
E então, alguns meses depois disso —
Se houvesse algum produto que El-Melloi realmente quisesse, ele simplesmente a ordenaria diretamente. Quando viu o nome do remetente — uma empresa japonesa — no pacote que Flatt lhe trouxera, percebeu que era apenas mais um produto bônus. Assim, ele nem se incomodou em abri-lo antes de deixar Flatt leva-lo.
Assim como El-Melloi suspeitava, não era nada mais do que um produto do jogo.
A julgar pelo nome da empresa, imaginou que era uma action figure de algum tipo de jogo sobre robôs ou algo assim, mas...
Na realidade, era de um jogo de simulação chamado “Night Wars of the British Empire”³.
E o produto na verdade era ———
Alguns dias depois — cidade de Snowfield — Center Park
O sol brilhava intensamente no alto do céu ao meio-dia.
Flatt tinha embarcado em um avião para a América apressado. Claro, ele estava completamente despreparado para a viagem.
Tinha uma vaga ideia de como a Guerra do Santo Graal funcionava, mas não tinha noção das especificidades.
Ah, Flatt — um homem que tinha coisas mais importantes para se preocupar do que a Guerra do Santo Graal —
Um homem que olhava as marcas na mão direita com alegria.
“Estes são... tão... incríveis! Se usar estes... tais Selos de Comando... eles desaparecerão?”
Ele esfregou a mão algumas vezes. De vez em quando murmurava alguma coisa e então seus ombros caíam. Era como se ele estivesse com o coração partido.
“É como se eles fossem desaparecer. Entendi! De maneira alguma vou usar meus Selos de Comando, não importa o que aconteça!”
Aparentemente, Flatt descobriu de alguma forma que os Selos de Comando desaparecem depois de serem usados. Se qualquer outra pessoa com conhecimento da Guerra do Santo Graal estivesse no parque naquele momento, seguramente teriam apreendido Flatt ali e o levado para interrogatório.
Felizmente para ele, as únicas pessoas no parque eram pessoas comuns — a maioria eram crianças com seus pais.
Flatt olhou para seus Selos de Comando por mais um tempo. Eventualmente, abriu o pacote de pano que estava segurando.
Dali ele removeu uma faca.
Era uma faca de aspecto covarde, tingida de vermelho e preto, e era em suma, bastante grosseira.
Apesar de ainda estar embainhada, a sua lâmina era bizarramente lustrosa — até mesmo elegante.
“Ah cara, abençoado seja o Mestre V. Quero dizer, claro, ele estava me dando bronca e tudo mais, mas ele tinha essa relíquia impressionante, pronta e esperando por mim!”
Flatt ainda não tinha percebido que uma confusão tinha ocorrido. Ver a faca com seus próprios olhos não o dissuadiu. Em vez disso, o deixou mais confiante do que nunca e o estimulou a seguir adiante, trazendo-o até os Estados Unidos.
E então — imagine! — o Santo Graal o havia selecionado para participar da guerra e lhe deu Selos de Comando para isso.
Ele olhava alternadamente entre os Selos de Comando e sua faca — de vez em quando, ele murmurava alguma coisa.
Talvez trinta minutos se passaram, quando —
Uma cena chocante se desenrolou no parque — e se qualquer outro Mestre soubesse disso, certamente eles teriam desmaiado em choque.
Para ser franco, era um milagre. Se o seu mentor, El-Melloi II, estivesse ali para testemunhá-lo, provavelmente teria elogiado Flatt. Claro, ele teria ficado furioso ao fazê-lo. E humilhado Flatt algumas vezes antes de mais nada.
Foi um milagre? Ou apenas um golpe de sorte — ou talvez algo alcançado pelos próprios talentos latentes de Flatt? De qualquer maneira, em certo sentido, Flatt tinha emitido uma poderosa afronta contra a falsa Guerra do Santo Graal.
Naturalmente, o único que estava ciente disso era o próprio Flatt.
[Eu pergunto a ti: tu és o Mestre que me convocaste?]
“Eu... o quê!?”
Ao ouvir aquela voz assustadoramente nítida, Flatt saltou do assento e olhou ao redor em busca de quem falou.
Como antes, porém, tudo o que podia ver eram famílias e casais caminhando. Quem quer que tivesse falado estava longe de ser visto.
[“Eu”, tu disseste? Tomarei isto como afirmativa. Nosso contrato está completo. Como consortes em busca do Santo Graal, seremos companheiros festivos.]
“Hã? Huuuh!?”
Flatt furiosamente girou o pescoço em todas as direções, mas ainda não conseguiu encontrar alguém que parecia estar falando.
Talvez testemunhando o jovem em pânico, a voz continuou.
[Pelos astros... tu me convocaste diante das vistas do público, e na ausência de um altar! Deveras audácia tu tens, ó Mestre... Mas deixe-me compreender.... Se não usaste um altar, tu também não proferiste o encantamento convocação!?]
“Uh, um... desculpe, havia muita energia voando por aí e eu estava meio que brincando com isso... eu acho que nós sincronizamos. Cara, sinto muito por te chamar assim.”
[Compreendo... Bem, isso é muito impressionante — de fato evidencia sua excelência como mago.]
Aparentemente, a voz do tal Servo estava sendo transmitida diretamente na cabeça de Flatt.
Ele logo percebeu que a energia mágica fluía através dos Selos de Comando e ia... para algum lugar. Um pouco tímido, ele começou a falar com a voz em sua cabeça. “Er, erm... Acho que este não é realmente o, um, o momento certo para perguntar, mas... Servos são sempre assim?”
[De maneira alguma, rapaz. Eu sou um caso singular. Não deixe que isso te incomode.] A voz do Servo era mais amigável do que Flatt imaginara, e era bastante refinada e educada. Por estranho que pareça, ele não conseguia ter nenhuma ideia sobre qual, especificamente, poderia ser a identidade do Servo.
[De todo modo, eu realmente não disponho de uma “identidade” definida, por assim dizer. Tu poderias dizer que minha aparência e feitio são de todas as variedades — mas talvez não. É esse tipo de caso.]
Ao ouvir uma voz qualquer, normalmente pode-se dizer se o orador é homem ou mulher, se é jovem ou velho, talvez até mesmo qual sua profissão. Algo sobre a voz entrega esses detalhes. Mas esta voz transmitida diretamente na cabeça de Flatt, estava desprovida de quaisquer características. Era como se estivesse falando com um monstro sem cabeça.
“Então, um... você poderia me dizer qual é o seu nome?”
Uma pergunta comum.
Se a faca em sua mão era o que parecia ser, o Servo certamente seria exatamente o que ele esperava.
No entanto, Flatt era incapaz de conciliar sua impressão do “Espírito Heroico” Com a voz em sua cabeça.
Isso fazia sentido, já que ele sabia que sua imagem de um “Espírito Heroico” Não concordava precisamente com a classe de seres chamados de “Heróis”.
Mas, bem — em qualquer país onde filmes e romances britânicos fossem populares, não poderia haver muitos que não tivessem ouvido falar daquele Servo. Em termos de notoriedade, ele não estava exatamente em pé de igualdade como Sherlock Holmes ou Arsène Lupin, mas — diferente desses dois, ele realmente existiu uma vez.
Por alguma razão, o Servo permaneceu em silêncio. Flatt olhou nervosamente ao redor, mas —
De repente, um homem de grande porte, vestido com tons de preto, entrou em seu campo de visão.
“Ah garoto! Você finalmente se manifestou!”
“Eu o quê? Sobre o que você tá falando, garoto?” O homem de preto olhou para Flatt com suspeita.
Flatt se agitou e seu rosto se tornou um sombrio tom de branco.
Claro que o homem estaria vestindo preto.
Era um policial com uma pistola enfiada no quadril. Ele olhou para Flatt — um homem sentado em um banco em frente a uma fonte no meio do dia com uma faca na mão.
“O que em diabos você está fazendo ‘murmurando’ para si mesmo, filho? E para que serve essa faca? Você está agindo de forma suspeita.”
“N-não! Eu quero dizer! Isso não é!”
Flatt estava abalado. Tentou explicar o que estava fazendo, quando—
“Isso te surpreendeste?”
De repente, o policial começou a agir de maneira amável. Ele entregou seu cassetete a Flatt.
Parecia um verdadeiro cassetete — mas no momento em que o agarrou, ele desapareceu no ar.
Surpreso, levantou os olhos da mão, apenas para descobrir a ausência do policial. No lugar do oficial, viu uma mulher usando um vestido nitidamente lascivo.
E então, a mulher falou com ele. “Pensei em demonstrar minha especialidade antes de me apresentar.” A voz, embora certamente feminina, tinha a mesma sensação da voz que tinha estado na sua cabeça um pouco antes.
“Hã? Hã? O quê?” Flatt estava cada vez mais surpreso.
Então, a mulher desapareceu diante de seus próprios olhos e —
[Rogo desculpas por te alarmar, Mestre. Supus que este meio pudesse ser mais breve.]
A voz estava em sua cabeça novamente.
Algumas das famílias próximas pareciam ter percebido que algo estava estranho. Alguns esfregaram seus olhos enquanto outros inclinavam a cabeça, algumas crianças até perguntaram a seus pais por que o policial se transformou em uma mulher e depois desapareceu. É claro que suas perguntas foram recebidas com risos.
Dado o que tinham visto, e dado que a marca deixada no chão pelos saltos altos da mulher permanecia, eles poderiam ter certeza de que o que eles tinham acabado de ver não era uma alucinação.
A verdade não era para as pessoas comuns que olhavam com suspeita — somente dentro da mente de Flatt ela seria revelada.
[Permita que me apresente novamente. Meu verdadeiro nome é —]
Flatt esperou que ele continuasse, com a respiração ofegante.
Ele sabia qual era a verdadeira forma de seu Servo. No entanto, na lenda em que aparecia, o verdadeiro nome do Servo era muito mais importante.
Flatt esperou e esperou que a voz continuasse em sua cabeça, mas —
Quando o Servo finalmente continuou, o que ele disse o surpreendeu Flatt de uma maneira completamente diferente.
[Para ser franco, eu não me recordo.]
“Você está falando sério!?”
Flatt havia se erguido no banco em que estava sentado. Percebendo que não havia ninguém em sua frente e que ele parecia bastante idiota, se sentou embaraçosamente enquanto olhava furtivamente.
Sem prestar atenção às palhaçadas do jovem, o Servo continuou a falar, com uma voz desprovida de características peculiares.
“Ninguém deve saber meu verdadeiro nome, exceto talvez eu mesmo — o verdadeiro eu, não o eu da lenda... Ou, talvez, quem pôs fim aos meus assassinatos.”
A faca que Flatt segurava não era uma verdadeira relíquia, mas uma imitação.
Mas se esse Espírito Heroico se importava —
Isto pode atrair um espírito muito poderoso precisamente porque este Espírito Heroico era uma imitação projetada para entreter o público.
Esse Servo não tinha nome, embora houvesse a prova de que ele já viveu neste mundo.
E, no entanto, ninguém sabia como ele realmente se parecia.
Ninguém conhecia sua aparência. Seu verdadeiro nome. Se ele era um homem ou uma mulher.
Ou se ele era mesmo um humano.
Ele — embora seu gênero não fosse conhecido — era um símbolo de medo. Um que aterrorizou o mundo. As pessoas o imaginavam de inúmeras maneiras e ele era o tema de inúmeros contos e teorias.
Talvez um médico;
Talvez um professor;
Talvez um aristocrata;
Talvez uma prostituta;
Talvez um açougueiro;
Talvez um demônio;
Talvez uma fada;
Talvez uma conspiração;
Talvez loucura.
Nem sequer era certo se ele era uma única pessoa ou não. O medo que o povo tinha dele foi explorado para criar todo tipo de histórias — e então eles foram unificados em uma única lenda.
Mas ele não era apenas uma lenda. Ele realmente existiu.
Na verdade, para Flatt, que passara muitos anos na Torre do Relógio, sua lenda era provavelmente a mais próxima de casa.
Todo mundo sabia qual a prova de que ele existiu.
No distrito de Londres conhecido como Whitechapel—
Foram encontrados os cadáveres macabros de cinco prostitutas. Não poderia haver uma prova maior.
[Dito isto, há um nome pelo qual sou conhecido e pelo qual me identifiquei em minhas cartas.]
[Jack o Estripador.]
Alguns meses antes —
El-Melloi II tinha jogado “Night Wars of the British Empire”.
Ele encomendou o jogo do Japão pensando que seria um jogo de guerra sobre os vários cavaleiros lendários da Inglaterra.
Infelizmente, os japoneses não fazem distinção entre os homófonos “knight” e “night”⁴ na escrita e, neste caso, eles significavam o último. O protagonista do jogo foi baseado em uma pessoa real, que vagou pelas ruas de Londres durante a noite, lutando contra a personalidade enlouquecida dentro dele. Às vezes, ele também acabava lutando contra demônios. Era um daqueles jogos de aventura.
Apesar de não ser o que ele estava esperando, El-Melloi jogou até o fim e anotou uma lista de opiniões honestas sobre o jogo. Primeiro era sua opinião de que “o título do jogo deixa algo a desejar”.
Quando ele virou o cartão de pesquisa, notou que havia alguma informação sobre os prêmios que ele poderia ganhar nesses sorteios.
Se você enviar este cartão, poderia ser um dos 100 sortudos vencedores a receber uma réplica de uma faca com a assinatura de Jack o Estripador! (Bainha incluída)
—— Como se Jack, o Estripador, inscrevesse seu nome em uma faca.
Ele riu com o pensamento. Perdeu o interesse no prêmio em si, e voltou a escrever seus pensamentos sobre o jogo.
Esse tempo todo ele estava completamente inconsciente do que esse cartão de pesquisa poderia acarretar.
E então, alguns meses depois disso —
Flatt se sentou na frente da fonte no parque tendo uma conversa mental com o ser em sua cabeça.
Em pouco tempo, ele parecia ter se adaptado à situação e estava falando naturalmente com o ser.
“Então, você está dizendo que, por não ser ninguém em específico, você ganhou o poder de se tornar qualquer um, hein...”
[Correto. Mas tu tiveste sorte. Se me manifestasse como um Servo de outra classe, eu teria possuído teu corpo e iniciado um ataque enlouquecido... bem, em todo caso, vamos apenas dizer que eu estaria nadando em sangue agora.]
“Uh....” Flatt achou difícil interpretar isso como uma piada. Ele não podia deixar de olhar em volta para os rostos das pessoas ao seu redor.
Se Jack estivesse descontrolado, a maioria dos magos se preocuparia que as pessoas comuns viessem a saber da existência da magia. Flatt, no entanto, estava aliviado por uma razão diferente, atípico de um mago.
“U-um... a propósito, qual a sua classe? Você é Assassin?”
[Ah, minhas desculpas. Eu pertenço à classe Berserker.]
“Hã?”
A resposta do servo deixou Flatt confuso.
Flatt não era um completo ignorante — ele havia feito algumas pesquisas básicas sobre a Guerra do Santo Graal.
Sabia que os Servos da classe Berserker ganhariam poder em troca de perder a sanidade.
Talvez Jack tenha entendido por que Flatt estava confuso. Começou a explicar de maneira natural a natureza de sua classe.
“Compreenda, fui consagrado na lenda como um símbolo da loucura. A classe do guerreiro enlouquecido é a única que realmente me encaixa.”
“Ah... assim como um negativo com negativo faz positivo!”
Qualquer mago comum... ou, de fato, qualquer pessoa comum teria que se perguntar se essa explicação estava correta. Flatt, é claro, aceitou.
Isso, por sua vez, surpreendeu Jack, que murmurou algo antes de alterar sua explicação. [Se eu fosse a alma de uma pessoa real, isso provavelmente não teria acontecido. Mas devido ao fato de eu ser um emblema da loucura suponho que fui negligenciado. Isso é certamente um milagre. Então talvez haja algo único sobre esta Guerra do Santo Graal.]
“Uau. Servos realmente são incríveis!” Como de costume, uma resposta simples de Flatt.
Recordando um assunto que o “incomodava”, o Servo começou a falar de outra coisa. [A propósito, quando apareci diante de ti na forma de um policial — por que não tentaste me hipnotizar... ou usar alguma outra forma de supressão mágica? Certamente é o tipo mais básico de magia.]
“Hã?... Er, bem, eu pensei que primeiro deveria ter certeza que o policial entendia o que estava acontecendo.”
[Estava preocupado com sua competência por um momento, rapaz.]
Flatt, sentindo que havia um tom embaraçoso na voz em sua cabeça, mudou o tópico da conversa. “Então, se você encontrar o Graal, o que você desejaria?”
[Hrm... como tu és o meu Mestre, suponho que devo informá-lo... mas te imploro, por favor não ria de mim.]
O Berserker são hesitou por um momento antes de continuar a ecoar sua voz na cabeça de Flatt.
[...Desejo saber quem matou as cinco prostitutas em Whitechapel — em outras palavras, minha própria identidade. Isso é tudo.]
“Sua identidade...”
[Sou uma mera fábula, sem presença real. No entanto, quando penso nas pessoas inventando histórias e hipóteses sobre minha verdadeira identidade e natureza — isso me assusta. Não espero que me entenda, dado que tens um corpo, um nome e um passado para chamar de teu.] Sua voz soou mansa.
Ele só queria saber quem ele era.
Era uma ideia incomum, mas ao mesmo tempo, era provável ser o que o Servo desejava.
Flatt pensou por um tempo. Então, francamente, ele fez uma pergunta ao servo. “Então, quando descobrir quem você é, o que vai fazer? Tipo, se alguém te convocar em algum lugar além de uma Guerra do Santo Graal... você apareceria no corpo da pessoa que você realmente foi?”
[Isso pode acontecer. Embora minha forma atual difere da pessoa que uma vez fui, permanece verdadeiro que uma vez fui um assassino em série. As lendas sobre mim são todas baseadas nessa premissa. Se sou uma pessoa de uma lenda que também existiu na verdade, carrego o dever de ser tão verdadeiro com a minha realidade quanto possível.] A forma como falou de alguma forma deu a impressão de que estava sozinho.
“Isso não significa que não há nenhum verdadeiro você?” Afirmou Flatt, direto ao ponto, sem qualquer discrição .
Flatt era apenas uma pessoa ultrajantemente sincera. O Servo ficou surpreso e a voz que ressoava na cabeça de Flatt refletiu isso.
[... As pessoas nunca disseram que tu não tens modos?]
“Ahaha, com certeza dizem! O tempo todo! Obrigado!”
[Eu não estava te elogiando... mas, bem, isto é bom. Não precisamos discutir mais este assunto. De todo modo... Estou surpreso que conseguiste me convocar. Tu não podes esperar de mim nem o poder de um Herói nem a moralidade de um homem.]
Era um pensamento razoável.
Não importa que fosse Jack o Estripador falando. Qualquer um ficaria hesitante até mesmo por estar ao seu lado e convocá-lo como Servo —
Flatt, tão franco como poderia ser, respondeu.
“Eu amo pessoas como você! Sabe, homens de mistério com identidades secretas e tudo mais!”
[...]
“Vamos, isso é tão legal! Além disso, você é incrível! Não é ótimo!?”
Ele pode ter a intuição de um mago, mas seu temperamento era... não tão mago assim.
Se houvesse como seu comportamento se encaixar em um mago —
Seria que suas ações diferiam muito da maioria das pessoas comuns.
Para expressá-lo de maneira mais generosa, ele era dotado de uma superabundância de curiosidade — e magos deveriam ser curiosos.
Embora não fosse claro como o Servo interpretou Flatt —
Ele, um servo que deveria ter sido composto de pura loucura e selvageria, se preparou para a batalha. Com um pouco de otimismo em sua voz, ele falou.
[Muito bem, meu Mestre. Por onde começaremos? Usando minhas habilidades, podemos nos infiltrar em qualquer lugar e matar os Mestres inimigos onde eles estão! Aguardo suas ordens. Quais poderiam ser?] O Servo estava claramente de bom humor.
Seu mestre, entretanto, apenas sentou com um sorriso calmo em seu rosto. Verdadeiramente, ele era o mago mais insignificante dos magos.
“O tempo está bom hoje. Vamos apenas aproveitar o sol por um tempo. É agradável e quente!”
[Qu...!?]
Assim começou a jornada de um jovem que não sabia nada de tragédia e do espírito vilão que não criou nada além de tragédia.
Havia apenas uma coisa que eles compartilhavam: ninguém estava mais distante dos ideais da Guerra do Santo Graal.
Apenas isso e nada mais.
Notas:
1 Big Ben é o termo usado para se referir à Torre do Relógio londrina.
2 Zettai ryōiki (Território Absoluto) se refere a parte das pernas que fica amostra entre a saia e as meias.
3 Guerras Noturnas do Império Britânico
4 “Cavaleiros” e “Noite” respectivamente