Volume 10 – Arco 6
Capítulo 184: Fim da Chuva [REGRESSO]

A noite ia embora, dando lugar à madrugada do terceiro dia na ilha, mas a chuva ainda não tinha cessado.
O ruído das gotas a atingirem a terra e as folhas das árvores era bastante abafada pela profundidade da gruta onde Damon e Helena descansavam.
Junto deles, a garota inominada — “em busca” de saber sobre quem ela mesma era, palavras próprias — observava a ascensão das chamas amarelas e laranjas nas lenhas queimadas.
Graças a elas, o clima do âmbito se fazia bastante acalentador, propício para que pudessem relaxar os corpos desprovidos de qualquer incômodo.
Helena não suportou o cansaço excessivo daquele dia, onde havia enfrentado diversos perigos e foi levada quase ao limite.
Deitada sobre a capa que a cobria, arranjou uma maneira de adormecer cercada pelas folhas aromáticas no chão.
Damon permaneceu acordado, os olhos azul-escuros direcionados às labaredas.
Com a perna dobrada e o braço esquerdo repousado sobre o joelho, contava os segundos enquanto os ouvidos eram contaminados pelo crepitar incessante.
As preocupações aglomeradas naquele momento de descanso mostravam-se suficientes em prol de lhe arrancar qualquer resquício de sono.
Por isso o desejo de continuar era maior do que tudo, pois dessa maneira, ao menos, seria capaz de manter a cabeça ocupada com algo.
Aquele cenário não era muito favorável para o momento, cheio de dúvidas, pendências e lamentações nas ponderações pessoais.
O frenesi do qual tinha conseguido se livrar em parte da jornada no Berço da Terra era, de novo, acumulado por tantos sentimentos confusos em conflito.
As derrotas para Keith, o estado dos companheiros separados nos caminhos, a missão impossível ordenada por seu pai...
Ia disso até outras questões, bem afastadas daquele lugar.
Como sua irmãzinha deveria estar no Olimpo, o que estaria ocorrendo a respeito dos outros Imperadores das Trevas, a questão com as Musas remanescentes.
Os sonhos estranhos que tinha desde bom tempo...
E, por fim, não podia, em hipótese alguma, deixar de pensar em Lilith. Pouco a pouco, aquilo passava a se tornar sua principal fonte de inquietação.
Queria tanto saber se ela já tinha acordado de seu sono profundo. Torcia muito para que pudesse vê-la com os olhos abertos...
Não importava o quanto se perguntasse, só tinha uma maneira de ser respondido.
Deveria completar aquela missão, de qualquer forma. Tinha prometido, afinal, que voltaria para ela e sua irmã.
Tinha prometido a Atena que não morreria.
Piscando os olhos com lentidão, ergueu a cabeça até encontrar estalactites rochosas no topo da gruta.
Então, reunindo tudo aquilo nos ombros, soltou mais um lamento profundo pela boca. De algum modo, o permitia deixar parte da tensão se perder.
Não podia dar conta de tudo ao mesmo tempo; lembrou-se das palavras de suas tutoras durante o período vivenciado no Museion.
Era difícil seguir à risca.
Porém, com o tempo, tornava-se menos vulnerável às armadilhas da própria mente.
— Está preocupado?... por favor...
A voz chegou quase sussurrada aos seus ouvidos, o tirando daqueles devaneios de vez.
Ele até poderia agradecer àquilo. Contudo, somente virou o rosto em silêncio, até reencontrar a presença da menina de cachos de nuvens.
O semblante curioso vinha em sua cravada.
Um pouco deslocado por ser observado tão ferrenhamente por aquelas esferas puras de tão brancas, prendeu um riso de escárnio.
“Guarda seus segredos e quer saber dos outros”, sustentou a reclamação irônica, voltando a encarar a fogueira.
Evitou de responder à pergunta feita pela curiosa. Naquele instante, queria “devolver na mesma moeda”, por assim dizer.
Só que a respectiva não desistiu; permaneceu a fuzilá-lo pelas vistas níveas, lembrando o instante em que apanhou suas mãos e quase encostou seus rostos durante o encontro na chuva.
O filho de Zeus, perceptivo à encarada intensa, buscou manter-se inalcançável. No fim, gerou-se um incômodo que culminou a uma pressão que tinha pouco hábito em lidar.
Lembrar-se de Daisy foi inevitável. Era semelhante à irmãzinha quando queria muito saber sobre as missões dele ou seus motivos para estar abatido, abalado, entre outros problemas.
Mas diferente do caso com a irmã, agora sofria de um severo desconforto. Afinal, apesar de ter sido curado por ela, não gostaria de confiar tanto a ponto de...
— É uma pessoa bastante importante, não é?
A pergunta repentina, dessa vez sem a repetição viciada da conotação educada, quebrou a postura do olimpiano.
Deixou de ignorá-la de vez ao levar os olhos de volta a ela.
Por mais que sua identidade e objetivo fossem um mistério, não era como se tivesse muito a perder ao conversar um pouco.
Helena se encontrava no sétimo sono. O jeito plácido como ela dormia, mesmo sem tanto aconchego, era bem impressionante ao rapaz.
Somado àquelas determinações, o fato de que não conseguiria pegar no sono como a meia-irmã acabou o fazendo ceder à insistência, agora mais infantil do que a postura de outrora.
Com as vistas entrefechadas, mas leves, ele respondeu com sinceridade:
— É. Ela é muito importante. — Soou um pouco cabisbaixo. — E mesmo assim não pude cumprir minha promessa de proteger ela. Desde esse dia, não consigo parar de pensar nisso...
— Em quê?
Damon aguardou um breve átimo, taciturno. Apenas o som dos estalidos de fogo se pronunciou.
Através de um lamento, ele respondeu:
— Em quando ela vai voltar... pra eu me desculpar por tudo.
Ergueu o punho direito, onde ainda trazia o laço escuro, um dos que a garota usava para amarrar seu cabelo avermelhado nas características caudas gêmeas.
Mesmo ao passar por tantos desafios naquela ilha, ele conseguiu proteger aquele pequeno amuleto.
Depois de encontrá-lo junto aos chamativos fios ruivos, foi capaz de salvá-la. Por isso o seguia com ele.
Era a representação física de uma das promessas feitas para si mesmo e para ela, quando enfim despertasse de seu sono.
A lembrança de motivação que o mantinha em frente.
— E você gosta dela?...
A nova pergunta da menina pegou o apóstolo desprevenido. A princípio, não soube como se sentir diante daquilo.
Emoções indescritíveis sempre tomavam conta de seu peito ao pensar em Lilith. Tinha confirmado isso na última visita feita a ela, antes de partir à missão.
Sempre vinha à tona as memórias vívidas que teve com a garota, desde quando se conheceram ao ingressarem juntos na corporação até aquele diálogo não terminado em Delos.
Tais lembranças conduziram sua resposta:
— Eu nunca... pensei direito nisso. — Tentou continuar com a maior sinceridade possível. — Sempre considerei ela uma grande amiga. Desde o dia que a gente se conheceu e começou a conviver, sempre estivemos juntos. Só que, depois que... depois que eu quase perdi ela, eu... comecei a sentir coisas estranhas quando vejo ela.
— Como o quê?...
— É tipo... Meu coração começa a bater mais rápido. — Engajado na conversa, levou a mão ao peito. — Não consigo parar de olhar pra ela. Tudo que vejo nela chama mais atenção, como se me atraísse... Também, de vez em quando, tenho um frio na barriga esquisito. Coisas que nunca tive com alguém.
Conforme expressava os sentimentos, era contemplado por um tênue sorriso da garota, que reconhecia a sinceridade nas palavras de difícil exposição.
— Nem com ela — completou, num mussito. — Quer dizer, pelo menos eu achava que não. Mas agora, é como se... como se eu pudesse ver ela de verdade. Então, tipo... eu acabo pensando que... ela é incrivelmente linda.
Encabulado, fez beiço ao desviar o rosto enrubescido com o complemento em questão.
A alva prendeu uma risadinha de lábios fechados antes de ir diretamente ao ponto:
— Eu não lembro de muitas coisas. Como disse, estou sempre em busca de saber mais sobre mim mesma. — As palavras dela trouxeram o olhar dele de volta, pelo canto do rosto. — Mas lembro de alguém que me disse uma vez sobre essas coisas. Essa pessoa me falou... que isso tudo, se chama “amor”.
Diante da declaração graciosa, Damon apenas ergueu as sobrancelhas sem saber o que dizer.
Depois, terminou de virar o rosto e voltou a fitar os olhos serenos dela, que se uniam ao sorriso num semblante amistoso.
Por mais espantoso que fosse, os dois se entendiam em proporções iguais. Isso permitiu ao olimpiano notar com maior clareza a forma na qual ela agia perante outrem.
A timidez do início, natural, sequer a permitia transmitir segurança na voz. Mas mantinha-se acolhedora, a ponto de, aos poucos, deixá-los extremamente confortáveis em sua presença.
Tão confortáveis a ponto de os fazer se abrir com ela, destilando os sentimentos mais profundos numa conversa amigável.
Perceber isso fez o filho de Zeus refugar a atenção, voltando a erguer o rosto para as estalactites rochosas.
No canto dos lábios, subiu um riso tímido.
Pela primeira vez em dias, ou até meses, sentiu-se livre das preocupações encarnadas no coração.
Tudo graças a uma conversa franca com uma desconhecida, que levantava diversas incógnitas a ele e sua irmã.
Mesmo assim, além do grave ferimento curado, tinha relembrado das determinações principais que carregava consigo.
Graças à menina cacheada, pôde retomar o controle do caminho que desejava trilhar.
Elas estavam o esperando.
Com o clima mais leve entre ambos, permaneceram em silêncio, satisfeitos pelos resultados gerados por aquela discussão.
“Amor, é...?”, um sentimento não tão novo, mas que ganhava um novo sentido.
Agora sabia o que responder à pergunta deixada no ar por Lilith, em Delos. Agora sabia a razão pela qual estava despertando tantas sensações ao encontrá-la.
Teria que lidar com essas vontades enquanto estivesse no Berço da Terra. Ao mesmo tempo, aquilo o traria forças inéditas em prol de vencer o que viria pela frente.
A inominada escolheu deixar as coisas como estavam após clarear o coração nublado do rapaz
Contudo, ela ainda tinha algo a mais para dizer:
— Mas, lembre-se... por favor... — A voz aprazível chamou a atenção dele de volta. — Aquele que você persegue... A pessoa que deseja enfrentar... desconhece completamente o amor...
Tal sentença trouxe um baque repentino a Damon, que imediatamente compreendeu o novo ponto de vista sobre quem ela falava.
Seu algoz.
Abaixou o olhar até fitar a fogueira à frente. Fechou os punhos com vigor, pensativo sobre as palavras que retumbaram pelo silêncio.

— Damon? Acorda! — Helena mexeu com cuidado no braço direito do irmão. — Já amanheceu.
Sem perceber, ele tinha adormecido encostado na parede, sem deixar a posição sentada mantida durante a noite quase inteira dentro da gruta.
Abriu os olhos com lentidão, no reconhecimento ao local no qual tinha se estabelecido.
O fogo na lenha tinha se apagado.
Contudo, o bastão luminoso portado pela menina cacheada permanecia aceso, o que trazia boa claridade ao recinto.
Após se acostumar à luz, ele se levantou do chão. Conferiu o braço direito, para constatar que não tinha sido invenção alguma.
Estava, de fato, curado. E pronto para o auxiliar na busca da remontada na grande missão.
Depois trocou olhares com a nívea, que expressou o mesmo sorriso de quando conversavam.
Já ele escondeu a introversão ao dar a volta e ir em direção à bainha no outro lado.
Helena, que tinha dormido como uma pedra, ficou desentendida quanto ao clima estranho criado pela dupla, ainda mais com a reação do meio-irmão.
— Parece que a chuva passou... por favor...
A inominada avançou por baixo da passagem, em retorno à reta principal da gruta.
Helena colocou o vestido seco, mas ainda tinha o manto cedido pela anfitriã, por cima.
— Ela insistiu tanto para que eu ficasse com ela, então acabei aceitando.
A explicação veio por meio de um sorriso desconcertado ao passar o indicador sobre a bochecha.
Damon nem disse nada a respeito. Apenas pegou a bainha na parede e atravessou sua alça sobre o tronco, pronto para mais.
Os dois passaram a abertura e encontraram a menina com o bastão no aguardo.
Seguiram o trajeto iluminado até encontrarem a verdadeira luz vinda do exterior.
O som da chuva havia cessado, provocando um silêncio profundo no local, cortado apenas pelos passos das sandálias dos apóstolos.
Não demorou até serem recebidos pelo aroma de terra molhada, alheio a uma brisa bem gelada.
De volta ao lado de fora, se depararam com árvores derrubadas pela força da intempérie, arrancadas pelas raízes até tombarem sobre a trilha.
Apesar de ter amanhecido, nenhum dos três poderia sequer contemplar. O céu continuaria nublado, portanto, o ambiente escurecido e frígido era regra.
E assim permaneceria até o fim da jornada...
— Obrigada por nos ceder esse espaço para descansarmos. — Helena se curvou em agradecimento. — E, também, por curar os ferimentos dele.
E usou a mão esquerda no intuito de empurrar a cabeça de Damon, obrigando-o a fazer o mesmo.
A cacheada soltou uma leve risada ao ver o gesto forçado do rapaz. No fim, assentiu com a cabeça, relaxando o braço que carregava o bastão, agora apagado.
— Se continuarem na trilha, por aqui, chegarão ao destino desejado... por favor...
Apontou na direção correta, o trajeto estreito rodeado pelas árvores molhadas. Os descendentes olímpicos se entreolharam.
O rapaz prometeu a si mesmo que não questionaria sobre a identidade dela. Porém, a sensação estranha voltou a se pronunciar quando ela os indicou.
Deveria fazer igual com os demais sentimentos e lidar com aquela curiosidade.
Ao menos, já não desconfiava mais de sua índole por conta da série de fatores que se seguiram na pequena caverna.
Dessa forma, estava ciente de que era pouco provável o fato de ela estar os levando a alguma armadilha.
— Isso é...
— Tudo bem. — Antepôs-se à meia-irmã, que já iria a questionar. — A gente vai por ali. Valeu pela dica.
— Damon...
Com toda certeza ela estranharia a inesperada atitude do jovem, visto que tinha perdido toda a interação entre os dois depois que apagou em sono.
Preguiçoso para explicar, ele apenas a encarou e repetiu o gesto positivo. Precisavam se apressar rumo ao fim daquele trajeto, então tal encarada foi o suficiente.
Foi aí que Helena viu algo diferente no irmão.
Desde o início da tarefa, até mesmo antes, durante os treinamentos em Rodes, ele nunca tinha apresentado um aspecto tão tranquilo como agora.
Seguro e focado...
Talvez essas fossem as melhores definições, pensou.
Sua energia, expressões faciais e postura repleta de leveza comprovava tal visão. Em virtude disso, a jovem deusa apenas aceitou aquela escolha.
— Antes de irem, tomem isso... por favor...
O último recado ainda seria passado pela menina, que sacou um colar dourado do vestido. Nele havia uma pedra branca em formato triangular no centro.
Aproximou-se do filho de Zeus e passou a peça pelo pescoço dele, deixando a pedra preciosa descansar escondida sob a camisa branca.
Por fim, repousou a palma delicada sobre seu peito e completou:
— Isso irá protegê-los. Considerem como um amuleto... por favor...
Sabendo que perguntas só levariam a mais indefinições, ele aceitou o presente.
— Beleza. — Por fim, deu meia-volta até o trajeto indicado. — E... obrigado.
Por estar de costas, as palavras soaram afônicas. Ainda assim, foi o suficiente para alcançar o conhecimento da cacheada, que ficou levemente boquiaberta a princípio.
Quando o jovem começou a caminhar, seguido da parceira — que ainda prestou outra cortesia de agradecimento —, os lábios se curvaram em um sorriso benévolo.
— Não há de quê...
Sua resposta também soou fraca, porém Damon recebeu em alto e bom tom e fez que sim com a cabeça.
Entre os pequenos detalhes, a despedida se concretizou ao chegarem na reta principal.
— Vamo’ nessa, Helena.
— Sim!
Sem mais olharem para trás, a dupla partiu numa corrida contida, até desaparecerem da vista da jovem misteriosa.
Ela fechou os olhos alvos ao soltar um fraco suspiro. Depois os levou ao alto, em direção às nuvens carregadas no topo celestial, que se tornavam cada vez mais escuras pela extensão.
— Até nossos Destinos se encontrarem de novo... por favor...
O mussito perdeu-se em meio ao silêncio da floresta, entrecortado pelo uivo afiado do vento.

Opa, tudo bem? Muito obrigado por ler mais um capítulo de Epopeia do Fim, espero que ainda esteja curtindo a leitura e a história!
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