Volume 1
Capítulo 2.5: Reencarnação (S2)
No Reino de Analeit, vivia um garoto chamado Schlain Zagan Analeit; e, como seu nome sugeria, ele era um membro da família real. O menino era o filho de uma concubina do rei e vivia como o quarto príncipe.
Porém esse garoto possuía memórias de uma vida anterior. Nessa vida, seu nome foi Shunsuke Yamada.
Serei honesto: o garoto sou eu.
A última coisa que lembro da minha vida anterior era de estar assistindo a uma aula de japonês clássico. Naquele momento, notei uma rachadura no ar acima da sala de aula, e foi então que tudo ficou preto.
Eu sabia que fendas no espaço não eram uma ocorrência normal na Terra, portanto, o que quer que tenha acontecido, deve ter sido o motivo para eu morrer. Então, inexplicavelmente, renasci com as memórias de minha vida anterior.
E essa foi a forma como passei a viver neste mundo parecido com um jogo, onde habilidades e níveis são reais. Aqui, você realmente tem um “status”.
Como isso existe em uma realidade sem ser a de um jogo realmente? Eu me perguntei exatamente o mesmo por um tempo, mas acabei desistindo de tentar descobrir uma resposta. No lugar disso, percebi que seria mais divertido focar nos pontos positivos de viver neste ambiente. Treinar iria aumentar minhas habilidades, e era divertido aprimorar minha força dessa forma.
Contudo, este mundo também tinha seus pontos negativos — você não podia ver o status de qualquer um. O conceito existe, porém você precisa cumprir condições extremamente rigorosas se quiser compreender isso.
Veja, há uma habilidade chamada Avaliação que possibilita a visualização de status, mas poucas pessoas a possuem. Para adquiri-la, assim como você faz para se tornar um juiz ou um avaliador na Terra, você precisa de uma educação meticulosa sobre como julgar os valores das coisas, poderes de observação para entender a composição das substâncias, e outros requisitos de alto nível. Nenhum amador poderia ser capaz de fazer isso.
E mesmo que você consiga a habilidade Avaliação, é muito difícil aumentar seu nível, dessa forma, pouquíssimas pessoas a têm. Na realidade, tudo o que é necessário para adquirir a Avaliação é pagar a quantidade correta de pontos de habilidade. Mas, mesmo que isso seja tecnicamente possível, você não pode aumentar o nível usando essa opção.
A única forma de aumentar os pontos da habilidade de Avaliação é utilizando-a. Sempre que você usa Avaliação, sua proficiência aumenta, e se você chegar a um certo grau de proficiência, o nível vai aumentar também. Contudo, o uso dessa habilidade é o verdadeiro “X” da questão.
Por um lado, não é preciso nenhum poder mágico ou energia — e eu sei o que você deve estar pensando: “Você não pode apenas usá-la sempre que desejar?”. Antes fosse, mas… Mm-hmm, não é tão simples assim.
A loucura é esta: sempre que Avaliação é usada, o usuário é acometido por uma dor de cabeça e uma tontura de arrancar os cabelos. O nível parece variar dependendo do indivíduo, mas, nos piores casos, algumas pessoas irão desmaiar após usarem-na apenas uma vez; até os usuários mais talentosos não podem Avaliar mais do que duas coisas seguidas.
Como cada uso é tão adverso, usar a habilidade repetidas vezes para aumentar sua proficiência será um verdadeiro teste de coragem.
Como um extra, a habilidade Avaliação é inútil até atingir um patamar muito alto; sendo assim, são poucas as pessoas que se incomodam em adquiri-la — embora haja um punhado de famílias que ganham a vida servindo como Avaliadores, a fim de transmitir a habilidade para as gerações seguintes.
Assim, se você está se perguntando como as pessoas verificam seus status, e eu sei que você está, a resposta é: usando as Pedras de Avaliação.
Uma Pedra de Avaliação é um item mágico feito com um processo especial que permite ao portador usar essa habilidade temporariamente. O nível da habilidade concedido por uma dessas pedras depende de sua qualidade. O número de pedras no mundo que concede o nível 10, como a que pertence à família real, pode ser contado em uma mão.
Sem dúvida você precisa de permissão especial para usá-la, dessa forma, apenas nobres importantes próximos à família real têm alguma chance. Já que eu mesmo sou da realeza, posso, tecnicamente, a usar, mas não é como se pudesse fazer o que desejasse. Eu importunei Anna, a camareira, sobre isso repetidas vezes, mas a Pedra só podia ser usada assim que você atingisse uma certa idade.
Na realidade, descobri que sua primeira vez tendo seu status Avaliado é considerada uma ocasião especial, portanto, a nobreza e seus pares sempre organizam uma cerimônia enorme e formal para isso.
E eu também teria que passar por essa cerimônia.
Além da Avaliação, esta cerimônia serviria como a estreia da criança para a alta sociedade — tipo uma festa de debutante. Os resultados de sua Avaliação são revelados para todos presentes, e então os adultos começam a julgar seu valor bem naquele momento.
Eu tinha mais habilidades do que uma pessoa normal da minha idade, portanto eu sabia que não deveria ter nenhum problema. Mas, pelo que vi, se seu status for superbaixo, sua família pode te rejeitar, então essa é uma perspectiva amedrontadora.
De qualquer forma, eu e minha irmã mais nova, Sue — filha da esposa do rei, nascida quase ao mesmo tempo que eu —, estávamos a um passo de nossa estreia na vida social, por isso, tínhamos que usar roupas cerimoniais infantis para a ocasião e ouvir sobre o cronograma de novo e de novo.
O atual rei, em outras palavras, nosso pai, também estava participando.
Excluindo esse ponto, haveria um “quem é quem”¹ de outras pessoas importantes presentes, então cometer um erro e me envergonhar não era uma opção. Apesar de ser uma criança, eu ainda era um membro da família real, afinal, e precisava carregar a dignidade da família real em meus ombros e desempenhar o papel principal responsavelmente.
E esse era um peso enorme para um ex-plebeu de classe média baixa.
Contudo, quando vi o quão majestosamente minha irmã estava se portando ao meu lado, senti uma determinação para fazer as coisas de forma tão correta que beirava a impaciência.
— Você está pronto?
Eu assenti silenciosamente em resposta à verificação final de Anna.
— Então por favor, prossiga.
Anna nos empurrou para frente, e Sue e eu caminhamos lado a lado através da porta do salão cerimonial. Assim que atravessamos a entrada, o espaço cerimonial surgiu diante de meus olhos.
Um carpete vermelho seguia em linha reta da porta até um pedestal, onde um homem estava parado esperando. Uma enorme multidão de pessoas se alinhava à parede, observando-nos em silêncio.
Todos aqui eram nobres de nível elevado.
Minha irmã e eu caminhamos pelo carpete sem dizer uma palavra, de maneira calculada e solene, da forma que fomos ensinados a caminhar em antecipação para este dia específico.
Eu podia sentir os olhares dos diversos nobres me perfurando, mas dei meu melhor para ignorá-los. Finalmente, chegamos na frente do pedestal. Então paramos e nos ajoelhamos.
De pé atrás do pedestal estava o rei, nosso pai, Meiges Derra Analeit.
— A Cerimônia de Avaliação irá agora começar. — A voz majestosa do rei expandiu-se pelo salão de cerimônias.
Apesar de ele ser meu pai, só me encontrei com esta pessoa algumas poucas vezes; o homem parecia mais com um parente de alto nível do que um pai.
Isso só piorou o meu nervosismo.
O rei ainda estava falando, mas eu não podia processar tudo o que ele estava dizendo.
— Agora, Schlain Zagan Analeit. Você deve se levantar.
— Sim, senhor.
Eu me levantei.
— Permita que a Avaliação comece.
Eu avancei para a escadinha na frente do pedestal; sem sua ajuda, eu não seria alto o bastante com minha altura atual.
Uma pedra negra estava encaixada no pedestal — a Pedra de Avaliação.
Ela era menor do que eu esperava. Se eu fosse um adulto, o objeto se encaixaria na palma de minha mão com facilidade.
Escondendo minha surpresa, coloquei minhas mãos nela e, assim como fui ensinado, pensei: “Avaliar”.
Meu status foi mostrado com inesperada facilidade.
NOME |
SCHLAIN ZAGAN ANALEIT |
HUMANO |
NVL 1 |
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STATUS |
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HP: 35/35 (verde) |
MP: 348/348 (azul) |
Média da Capacidade Ofensiva: 20 (detalhes) |
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SP: 35/35 (amarelo) |
: 35/35 (vermelho) |
Média da Capacidade Defensiva: 20 (detalhes) |
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Média da Capacidade Mágica: 314 (detalhes) |
Média da Resistência: 299 (detalhes) |
Média da Velocidade: 20 (detalhes) |
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PONTOS DE HABILIDADES: 100,000 |
TÍTULOS: NENHUM |
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HABILIDADES: |
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[Percepção Mágica Nvl 8] – [Operação Mágica Nvl 8] – [Guerra Mágica Nvl 6] – [Atribuição Mágica Nvl 5] – [Ataque Mágico Nvl 3] – [Velocidade de Recuperação de MP Nvl 7] – [Velocidade de Recuperação de MP Nvl 7] – [Consumo Reduzido de MP LV2] – [Esgrima Nvl 3] – [Aprimoramento na Destruição Nvl 2] – [Guerra Mental Nvl 2] – [Atribuição de Energia Nvl 1] – [Concentração Nvl 5] – [Atingir Nvl 1] – [Evasão Nvl 1] – [Aprimoramento na Visão Nvl 4] – [Aprimoramento Auditivo Nvl 7] – [Aprimoramento Olfativo Nvl 2] – [Aprimoramento no Paladar Nvl 1] – [Aprimoramento Tátil Nvl 1] – [Vida Nvl 5] – [Massa Mágica Nvl 8] – [Instantâneo Nvl 5] – [Persistente Nvl 5] – [Força Nvl 5] – [Solidez Nvl 5] – [Alquimista Nvl 8] – [Proteção Nvl 7] – [Corrida Nvl 5] – [Proteção Divina] – [n% I = W] |
Eu podia ver meu status.
Ao mesmo tempo, os resultados apareceram em uma superfície em forma de tela na parede da frente. A tela estava conectada com a Pedra de Avaliação, então ela podia mostrar os resultados. Ao que tudo indicava, este mundo não tinha o conceito de “informação pessoal”.
Para mim, os resultados da Avaliação apareceram em japonês, mas na tela, eles apareceram na linguagem utilizada aqui. Eu estava me perguntando o que aconteceria se tudo fosse exibido em japonês, mas acho que o sistema estava preparado para esse tipo de coisa.
Vozes surgiram através da sala.
O rei ergueu sua voz e tentou acalmar a multidão, mas o tumulto continuou inalterado. Meu status devia ser fora do comum para causar essa reação e, honestamente, eu meio que imaginei que algo assim pudesse acontecer.
Meus atributos relacionados à magia eram relativamente altos. Anna me garantiu isso. Em comparação, minha capacidade física era apropriada para minha idade — bem, ela ainda era muito maior do que a média, mas não se desviava do padrão, diferentemente da minha magia.
Assim sendo, meu status era bem desequilibrado.
Quanto às habilidades, uma voz chamada de “Palavra de Deus” me informava sempre que eu aumentava o nível de uma habilidade ou recebia uma nova, então eu já sabia sobre a maioria delas.
Mas havia duas que eu não reconheci.
Uma era a "Proteção Divina", e a outra tinha um nome que parecia com um texto corrompido.
Curioso com isso, tentei usar a Avaliação.
Proteção Divina: Você é protegido pelos céus, tornando mais fácil para você conquistar os resultados que deseja em qualquer situação.
n% I = W: Não pode ser Avaliado.
O que é isso?
Essa tal de Proteção Divina era incrível. Com certeza uma habilidade que poderia ser considerada uma trapaça.
Contudo, a frase “mais fácil para você conquistar os resultados que deseja” deve significar que as coisas não irão necessariamente ir da forma que eu quero todas as vezes. Essa ainda era uma habilidade maravilhosa, mas eu não deveria depender muito dela.
O que eu não entendi foi a outra.
Seu nome e o resultado da Avaliação foram igualmente enigmáticos e não fazia ideia de que tipo de habilidade ela poderia ser. O fato de que a Pedra de Avaliação de mais alto nível disponível ainda gerou este resultado era bastante misterioso.
Se esta Pedra não pode me dizer, não deve existir forma para descobrir os detalhes desta habilidade, certo?
Eu não entendi.
— Não foi parecido com o da filha do duque?
— Sim, aquele prodígio…
— Mas Sua Alteza é tão prodígio quanto ela... Não, ele é ainda mais!
Enquanto os nobres continuavam suas conversas, eu ouvi repetidas referências à uma “filha do duque”.
Havia alguém que conseguiu um status similar ao meu?
E pensei que Sue fosse a única além de mim…
— Acalmem-se!
Em resposta ao grito excepcionalmente alto do rei, o salão de cerimônias por fim acalmou-se.
O rei me entregou um pedaço de papel.
Era um registro de meus resultados, impresso magicamente da tela conectada à Pedra de Avaliação. Aceitei o papel com respeito, então me curvei e me afastei.
Com isto, minha Cerimônia de Avaliação estava encerrada. Agora era a vez de Sue.
Não é preciso dizer que outra agitação preencheu o salão quando a Avaliação dela mostrou resultados parecidos com os meus.
Contudo, diferente de mim, Sue não tinha a Proteção Divina ou qualquer habilidade misteriosa corrompida.
Tirando a pequena comoção, a Cerimônia de Avaliação acabou mais ou menos sem nenhum incidente, mas nossos status excepcionalmente altos não foram a única causa para perturbações.
Ouvindo os nobres com minha audição aprimorada, descobri que pontos de habilidade só são adquiridos quando uma pessoa passa de nível, então ter cem mil pontos de habilidade no nível 1, como eu tinha, era muito anormal.
O que me lembrou que Sue também tinha 0 pontos de habilidade.
Eu imaginei que isto se devia ao fato de eu ser um reencarnado, mas o que me interessou de verdade foi que a filha do duque também nasceu com pontos de habilidade.
Pelo o que pude ouvir, a Cerimônia de Avaliação dela aconteceu poucos dias antes da minha e, como eu, ela tinha status incrivelmente altos para sua idade e pontos de habilidade que não deveria ter.
Pelo visto, a filha do duque até tinha aquela habilidade esquisita com texto corrompido.
Uma certa suspeita começou a surgir dentro de mim.
Se meu palpite estivesse correto, eu teria que me encontrar com a filha do duque a qualquer custo.
Uma oportunidade apareceria mais cedo do que eu esperava.
Após a Cerimônia de Avaliação, uma pequena recepção foi realizada em um local separado.
O rei levou Sue e eu para o centro do salão, onde acabamos sendo cumprimentados por uma fila de nobres. Os convidados estavam todos acompanhados por seus filhos, que eram, em grande parte, da mesma idade que eu ou um pouco mais velhos. Assim, basicamente, o propósito desta confraternização era apresentar jovens nobres que tinham idades próximas.
E foi dessa forma que eu conheci a já mencionada filha do duque.
— É um sincero prazer conhecê-lo. Eu sou a filha mais velha do Duque Anabald, Karnatia Seri Anabald.
Ela era uma garota muito bonita, com cabelos vermelhos ardentes e uma expressão notavelmente impetuosa. Só a aparência dela era o suficiente para atrair minha atenção, mas, acima disso, minha habilidade Percepção Mágica me disse que ela tinha um enorme poder mágico.
Ele era quase igual ao meu e ao de Sue.
Duque Anabald, a propósito, era um dos nobres mais poderosos no país; sua família esteve em posições importantes nessa nação por gerações, e eles vinham de uma linhagem com conexões à linhas de sangue de heróis e da família real.
Pessoas nascidas na família do duque passariam por uma educação dura e rigorosa, e eles seriam educados com o know-how² para auxiliar o país.
Ainda assim, a garota na minha frente possuía uma alarmante e anormal quantidade de magia.
Ela até excedia a do homem ruivo a seu lado, quem eu assumi ser seu pai.
— Como vai você? Eu sou Schlain Zagan Analeit. Yoroshiku.
Com uma certa convicção, falei as últimas palavras, que significavam “prazer em conhecê-la”, em japonês.
Os olhos da filha do duque se arregalaram por um momento, então rapidamente se estreitaram.
Julgando por essa reação, tive certeza de que meu palpite estava correto.
— Pai, posso falar com esta jovem dama por um momento?
— Hmm? — A resposta do rei soou um pouco surpresa.
Imagino que isso fosse natural, considerando que ainda havia uma longa fila de nobres com seus filhos esperando atrás do duque e sua filha, que eram os primeiros.
Mas eu não poderia recuar agora.
— Eu não posso?
— Eh-hem. — O rei me olhou, então olhou para o duque e depois para a fila atrás dele antes de falar. — Muito bem. Mas não demore demais. Você tem que voltar o quanto antes.
— Sim, senhor. Muito obrigado.
Eu agarrei a mão da filha do duque como uma criança e fugi.
Atrás de mim, eu podia dizer que Sue estava fervendo de raiva, mas não poderia me preocupar com isso no momento.
Deixei o salão e entrei em uma sala privada que servia como uma sala de espera — volta e meia, nobres deixavam as festas para discutirem negócios e outros assuntos particulares relacionados a trabalho, então sempre havia salas como esta perto de auditórios.
Este lugar devia ser à prova de som, e um guarda estava posicionado do lado de fora da porta, então estávamos seguros.
— Ufa. Devemos ficar bem aqui. — Eu estava abertamente falando em japonês.
— Não acredito nisso! Então o príncipe é um reencarnado também… — A filha do duque respondeu na mesma língua. — Caramba... Faz tanto tempo desde que ouvi outra pessoa falando japonês… Estou até ficando um pouco emocionada. — Ela parecia tão enérgica quanto sempre, mas agora seu tom estava bastante suave.
— Se você não se importar de me responder, o nome Colégio Heishin significa algo para você? — Eu falei o nome da escola do ensino médio que eu frequentava na Terra.
— Sim, é claro. Então você foi mesmo reencarnado neste mundo do mesmo colégio que eu…
Assim como eu suspeitava, esta garota era uma ex-colega minha, arrastada para este mundo pela fissura misteriosa em nossa sala de aula, exatamente como eu fui.
— Meu nome original era Shunsuke Yamada. E quanto ao seu?
— Pffft!
Quando eu ofereci meu nome, a garota riu de forma incontrolável.
— Ba-ha-ha-ha! Heh, ha-ha-ha! Você... Você é Shun?! Shun, um príncipe?! Ah-ha-ha… Isso não combina nada com você, cara!
Ela agora estava urrando com uma gargalhada.
Eu tive um estranho senso de déjà vu.
Eu não reconheci a garota diante de mim, mas sua forma de falar e comportamento a tornaram uma cópia de alguém que eu conhecia muito bem.
— Vo-você não é… Kanata?!
— Pois é.
Agora era minha vez de explodir em uma risada.
Meu antigo camarada de jogatina, meu parça Kanata, era agora uma jovem senhorita aristocrata — era como se ele tivesse renascido como o exato oposto de sua forma anterior.
— Ei, não ria! Você sabe o saco que foi renascer desta forma?
— Foi mal, foi mal. Você também riu de mim, não riu? Agora estamos quites.
— Acho que sim. Droga, mesmo assim ‘tô feliz por nos encontrarmos desta forma. Eu estive sozinha esse tempo todo.
— É... Você e eu. Também ‘tô feliz por ter te encontrado.
Kanata e eu socamos um ao outro no braço.
Nesse momento, lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Kanata.
— Droga, mas o quê?! Ah, caramba, me desculpe. Juro que eu não ‘tava... Soluça... querendo chorar... Soluça…
Os soluços de Kanata ficaram mais fortes e, antes que percebesse, eu também estava chorando.
Foi aí que me lembrei de quando entendi o que tinha acontecido; a reencarnação. Não era como se não sentisse falta da minha vida antiga… No mínimo, eu estava cheio de arrependimentos — ainda estava no auge de minha juventude, e queria passar mais tempo me divertindo com meus amigos. Eu nem mesmo consegui uma namorada.
Além disso, me sinto terrível por não apenas morrer antes de meus pais, mas também antes de meus avós. Quando eu percebi que nunca veria minha família de novo, meu coração se despedaçou de uma forma que você não pode imaginar.
E também estava curioso sobre o estado da escola após minha morte. Lembro-me da fenda no ar e do momento em que ela se abriu... Se eu morri por isso, o que aconteceu com todos os demais? Kyouya, Kanata, Hasebe que sentava ao meu lado... Todos eles morreram comigo?
Esse pensamento me apavorou.
Aquela manhã foi perfeitamente normal, mas agora eu nunca mais veria qualquer um deles.
Estive lutando contra esse medo esmagador desde que reencarnei. Sem saber o que estava acontecendo, de repente, acordei como um bebê, então era natural que me sentisse aflito. Acima disso, o país do meu renascimento não era o Japão. Na verdade, ele não estava nem na Terra — era um mundo totalmente diferente.
A princípio, não percebi.
Eu não podia entender a língua, e raramente deixava o berçário, então havia muitas coisas que eu não entendia. No início, pensei que era algum lugar na Europa...
Mas na primeira vez em que vi magia, me dei conta de que esse não era o caso. Isso aconteceu quando um poderoso sacerdote realizou uma bênção em mim. Fui envolvido em uma luz cintilante e senti poder fluindo dentro de mim. Foi então que senti a existência de magia pela primeira vez.
Inicialmente, isso foi excitante para mim, mas então fiquei angustiado novamente.
Eu seria capaz de seguir meu caminho em um mundo com magia? Já que fui apenas um cara comum em minha vida anterior...
Lá no Japão, não passei por nenhuma dificuldade. Mas neste mundo, onde nasci em uma família de elite, mediocridade não era uma opção.
Eu poderia atender essa expectativa? Isso me preocupava.
E como eu era um bebê, não poderia fazer meu corpo se mover da forma que desejava, o que era assustador; ser incapaz de viver sem a ajuda de outros aumentou meu estresse.
E se as pessoas me criando de repente decidissem me abandonar?
Eu não poderia fazer nada além de enfraquecer e morrer.
Para piorar, as pessoas cuidando de mim eram camareiras, não minha família verdadeira, e já que elas não tinham relação de sangue comigo, não havia garantias de que continuariam a fazê-lo.
Aliás, como eu ainda me lembrava da minha vida anterior, meus pais verdadeiros neste mundo pareciam estranhos. Dessa forma, seria possível que esses pais tivessem pouca ligação comigo e pudessem me descartar a qualquer momento, não é?
Minha mente estava tão desgastada que comecei a ter essas loucas desilusões.
Enquanto isso, comecei a tentar aprender o idioma de forma desesperada; não saber nenhuma palavra era mais assustador do que eu poderia imaginar, afinal, eu não entendia absolutamente nada! Quem diria que isso me deixaria tão angustiado...
Isso me fez sentir completamente sozinho.
Eu me preocupava sobre renascer em outro mundo. Inquieto sobre não entender a linguagem. Agonizando ao pensar se seria capaz de continuar vivo.
O que tranquilizou minha mente perturbada foi a presença da minha irmã mais nova, dormindo de forma pacífica ao meu lado.
Esta minha meia-irmã não estava preocupada com nada, como se não houvesse nada no mundo para se afligir.
Bem, acho que isso é natural para um bebê.
Uma criatura pequena e fraca que deixava seu destino nas mãos dos outros e dependia do mundo para tudo…
Isso era o que um bebê deveria ser — eu era diferente por possuir memórias de minha vida anterior.
Então, percebi algo…
Como eu tinha minhas antigas memórias, devia ao menos estar mentalmente acima de minha irmã.
Então por que eu estava tão cheio de preocupação quando ela estava bem ao meu lado, feliz?
Eu era o irmão mais velho dela. “Eu não devo agir de forma tão patética diante dela”, eu percebi isso. “Um irmão mais velho deve ser legal.”
Talvez isso tenha sido apenas pretensão, mas após esse ponto, parei de me preocupar tanto. Superei por completo meus medos, porém sabia que queria ao menos proteger minha indefesa irmãzinha.
Aos poucos aprendi mais palavras, e lentamente comecei a acumular mais informações sobre este mundo dos fragmentos de conversas que ouvia.
Querendo recuperar a amplitude de movimentos que estava acostumado a ter o mais rápido possível, forcei meu corpo de bebê para me mover o máximo que conseguia — graças a isso, aprendi a engatinhar muito mais cedo do que o normal.
Dessa forma, meu desejo de me exibir para minha irmã mais nova me motivou, pois eu queria ser um irmão mais velho de quem ela se orgulhasse.
Contudo, eu não contei com a possibilidade de que ela se provaria um prodígio impressionante que me imitaria e se tornaria quase tão forte quanto eu.
Kanata deve ter passado por quase tanta aflição quanto eu.
Quer dizer, deve ser chocante viver toda a sua vida como um homem, e então, de repente, renascer como uma mulher.
Tentei imaginar suportar o estresse de sua recém-descoberta feminilidade junto a todos os medos que eu encarei… Isso deve ter sido mais difícil do que eu poderia imaginar.
E assim eu estava reunido com meu amigo, quem eu pensei que nunca mais veria. Eu não poderia me impedir de ser vencido pela emoção.
Sem pensar, me movi para abraçar Kanata, que estava chorando. Nesse momento, um rugido ensurdecedor veio da porta da sala privada.
— O que foi isso?!
Kanata parecia abalado.
Entrei em pânico por um momento, mas me acalmei assim que percebi quem estava diante da porta.
Não, na realidade, só entrei em pânico por um motivo diferente.
Um segundo estrondo abriu a porta para dentro.
De pé diante da entrada, com um punho magicamente impulsionado preparado, estava Sue, que aprimorou sua força física com magia.
Ela olhou nós dois, então focou em Kanata.
— Sue, pare!
Se eu não tivesse me colocado entre eles, o soco de Sue lançaria Kanata para longe.
— Você não pode ficar com meu irmão! — Sue murmurou, agarrando-se a mim no mesmo instante.
— Sua irmã é assustadora, cara. — Kanata murmurou em japonês.
Esse foi o dia em que me reuni com meu primeiro colega de classe.
Notas:
1 – "Quem é quem" é um termo usado em inglês para se referir à uma compilação de curtos esboços biográficos de pessoas importantes de uma determinada área.
2 – Know-how é um termo que se refere ao conhecimento de normas, métodos e procedimentos em atividades profissionais, específicas as que exigem formação técnica ou científica.