Volume 3
Capítulo 2.2: Inverno
— Por favor, ao invés de fazer isto, nos mate.
— Nós, pobre soldados cometemos um erro, general!
Os oficiais abaixaram suas cabeças até o chão e se curvaram. Essa deve ter sido a primeira vez que a Farnese foi chamada de general pelos soldados. Ela, com a expressão tão cristalina quanto à água, olhou para eles.
“Por que eu deveria acabar com as suas vidas? Ninguém preza vocês tanto quanto eu. Então parem de conversa e continuem cavando.”
Os cantos da boca da Farnese se levantaram. Já que ela não estava acostumada a fazer expressões faciais, a sua boca se contorceu de um jeito muito estranho. Isto era bem aterrorizante.
“Ou talvez vocês queiram que eu dê a vocês o meu buraco? Vocês acham que conseguem me satisfazer com esses seus pauzinhos moles?”
Os soldados choraram.
Depois deste dia.
A senhorita elevou-se de prostituta normal para prostituta cruel.
No passado, o som das vozes dizendo ‘aquela prostituta!’ em um tom de zombaria eram altos, mas agora, as vozes balbuciavam ‘aquela prostituta cruel… ‘ em um tom contrariado e abafado. Os sons que se elevavam bem alto se dispersaram rapidamente, enquanto os sons que permeavam baixinho se espalharam.
Este era um acontecimento feliz, bem feliz.
Os capitães vieram correndo até mim mais uma vez. Diferentemente da outra vez, o tom de voz deles era bem intenso. Uma grave emergência podia sentida deles. Agora todos os capitães se referiam a Farnese como a Senhorita General. Podia ser só uma única palavra, ‘Senhorita’, sendo adicionada a ‘General’, mas isto já era uma grande diferença em geral. Por exemplo, um significado no mesmo nível de ‘aquela puta louca’ estava implícito ali. Isso não era um progresso impressionante?
— Já que a Senhorita General interfere com os soldados não só durante a tarde, mas também durante a noite, os jovens não conseguem dormir apropriadamente. Mesmo que nos falte energia depois de nossas refeições, mesmo com essa falta, nós ainda conseguimos lutar. Entretanto, como as pessoas deveriam lutar sem conseguir dormir?
— Isto não vem de um manual da arte da guerra, mas sim da própria vida. As pessoas deveriam ler livros baseados na vida, mas se alguém viver a sua vida baseada em livros, então o mundo não acabaria de cabeça para baixo? Mesmo que o conhecimento da Senhorita General seja profundo e ela tenha lido todos os livros relacionados à tática do país, a vida em si é uma questão aparte. Pessoas inferiores como nós apenas vivem a vida e não temos outra escolha que não seja continuar vivendo a vida. Por favor, entenda!
Eu escutei as palavras dos capitães sem me mover. Depois de ouvir tudo, eu fui até o armazém e trouxe uma picareta. A mesma picareta que os oficiais veteranos usaram até desmaiar de exaustão. Então eu disse.
“Entendo, as suas palavras são muito profundas, então elas conseguem penetrar um belo princípio. Vamos testar quão profundamente os seus corpos conseguem penetrar o solo?”
Os capitães fugiram.
Depois de um mês, a irracionalidade nas tropas havia sido completamente suprimida. O costume dos centuriões tomarem para si os salários dos decanos, e os decanos pegarem o salário dos soldados, havia desaparecido. A tendência de pegar dinheiro emprestado dos outros, e conspirar com pedintes e cafetões para vender coisas a preços exorbitantes, também desapareceu.
Farnese era uma garota perversa. Quanto mais este fato se espalhou em meio às tropas, inversamente, mais os sons dos soldados apontando para ela e a chamando de prostituta cruel diminuíram. Em certo ponto, ao invés de prostituta cruel, as vozes das pessoas a elogiando como sendo uma general que pensava nos soldados frente aos outros, se espalharam pelo exército. Isto muito provavelmente aconteceu mais ou menos quando o décimo primeiro poço foi cavado no quartel.
Os capitães reagiam sensivelmente ao humor dos soldados. Assim como os humanos percebiam automaticamente o cheiro de flatulências, os capitães entendiam o humor dos soldados.
Os capitães entenderam o clima e obedeceram a comandante. Já que os capitães estavam andando por aí gritando ‘Viva a Senhorita General Farnese’, eles deveriam estar com medo das consequências de vir reclamar para mim sem ponderar direito. Eles estavam se comportando como se fossem lamber a sola do pé da Farnese. Dentre eles, um realmente tentou colocar sua saliva sobre os dedos do pé da Farnese e acabou levando um chute.
Tsk, tsk.
Mas que pessoal adorável.
Finalmente, só restava o grupo de indivíduos conhecidos como decanos e oficiais veteranos.
Essas pessoas eram incapazes de jogar fora o prazer de extorquir dinheiro daqueles abaixo deles. Eles eram melhores que os soldados de baixa patente, mas piores que os capitães, então eles eram similares a bandidos de bairros pequenos. Eles não tinham a capacidade política de reagir apropriadamente às mudanças que estavam acontecendo, como os capitães conseguiram. Os oficiais veteranos tentaram proteger as suas autoridades e territórios.
Quando os oficiais veteranos maltratavam os soldados, eles iam longe. Eles arrastaram os soldados até um dos armazéns mais remotos do acampamento. Um rato, que era um familiar de uma bruxa, escutou em segredo às vozes que passavam pelas frestas da parede.
— Ei, filhos da puta. Quem foi que trouxe vocês, seus vadios, do vilarejo e os alistou no exército? Eu sou o cara mais velho que vivia na casa ao lado. Vocês nasceram não no exército, mas sim no vilarejo, certo? Então vocês deveriam tratar seus veteranos do vilarejo com respeito!
— Nós podemos viver nesta unidade agora, mas quando morrermos voltaremos para casa. Se vocês continuarem ignorando seus veteranos, então vocês acham que uma pessoa sequer de luto irá aos seus funerais? Vocês acham que a prostituta cruel vai se dar ao trabalho de organizar os seus enterros? Ela é uma puta que vai ordenar que vocês morram, não uma puta que vai cuidar de vocês depois que morrerem.
— Ei, não nos ignorem… Nós estamos dizendo isso em consideração a vocês. Além disso, não importa o quanto vocês gritem aqui, aquela prostituta não vai vir.
Farnese abriu a porta com força.
“Sim. Já que vocês me chamaram, eu vim aqui.”
Os soldados gritaram e caíram no chão. Eu consegui escutar o barulho dos materiais quebrando estrondosamente. Eu perguntei para a Farnese mais tarde, mas aparentemente os soldados estavam olhando para ela como se tivessem visto um fantasma.
“Já podem ir criando expectativas meus cavalheiros. Vamos cavar alguns bons buracos hoje.”
Os oficiais veteranos foram forçados a revirar a terra por dois dias seguidos sem dormir.
Por fim, a disciplina militar se ajustou. Os soldados estavam tomando conta de suas próprias tarefas domésticas. Se não fosse uma ordem oficial dos superiores, até mesmo os soldados de baixa patente não obedeciam sem pensar.
No final do mês que foi prometido, Laura de Farnese descartou o uniforme para soldados de baixa patente e se vestiu com a farda de comandante. Depois de se lavar, Farnese veio me visitar com o corpo limpo. A sua pele era mais branca do que a neve que havia acabado de cair, e a sua voz era tão limpa quanto o céu de que a neve havia caído. Eu sabia as suas intenções ao aparecer diante de mim, sendo como a neve e os céus. Independentemente de ela saber que eu já entendia os seus sentimentos ou não, a pequena psicopata criadora de problemas falou brevemente.
“Esta jovem senhorita reporta solenemente que ela atingiu o objetivo de Vossa Senhoria.”
Dava para perceber muita presunção e orgulho nessas poucas palavras.
Eu queria elogiar esta garota. Eu queria reconhecer o trabalho duro que ela teve permanecendo acordada noites inteiras perseguindo os oficiais veteranos, consolando os novos recrutas, e lavando todas as roupas com suas próprias mãos. Eu fiz um gesto para que a Farnese se aproximasse, e com um pente de marfim, eu penteei seus cabelos gentilmente.
Eu sorri.
“Muito bem. Quer uma bebida?”
Farnese não tentou ganhar adoração de suas tropas. Ela queria que cada um dos soldados a temesse. Ao invés de coragem para avançar contra os inimigos, Farnese valorizava o temor que os soldados sentiriam em desobedecer às ordens da comandante suprema. Isto era, de fato, diferente quando comparado a mim. Não sabendo o método para conseguir obter o medo deles, Farnese veio me perguntar.
“O que esta jovem senhorita deveria fazer para que os soldados a temam, Senhor?”
“Bem. Você tem uma aparência bem bonita, então isso pode ser difícil.”
“Eles teriam medo se esta senhorita tivesse uma cicatriz feia em seu rosto?”
“Cacete, essa criança ignorante. Como você pode pensar tão simplisticamente? Pense algo um pouco mais respeitável.”
“Apenas Vossa Senhoria e a Senhorita Lazuli chamam esta senhorita de ignorante…”.
Farnese ficou cabisbaixa. Recentemente Farnese vinha recebendo lições tanto da Lapis quanto de mim. Só que comparado a mim, Lapis a ensinava muito mais duramente. Era óbvio que essa garotinha reclusa, que passou a vida inteira pensando que era genial, ficaria desanimada se fosse maltratada frequentemente. Sentindo um pouco de simpatia, eu falei com ela.
“Será que eu deveria te contar um bom truque?”
No dia seguinte.
Farnese comprou quinze cães de caça. As cinturas destes cães eram finas, então eles pareciam ser magros, mas a cor de seus pelos era maravilhosa. Eles eram de uma raça que normalmente era criada pelas famílias imperiais e reais, então eles eram bem caros. Os cães não saiam do lado de seus donos nem por um instante.
— Parece que a Senhorita General adora cães.
— Criar cães de caça é um bom passatempo. Eles conseguem sentir o cheiro dos inimigos e persegui-los, então também vai ser útil para nós.
Os soldados se reuniam em pequenos grupos e comiam carne seca. Apesar deles jogarem um pouco da carne para se divertirem, os cães de caça nem sequer desviavam o olhar para eles.
Farnese adquiria a comida e alimentava os cães pessoalmente. A comida dos cães parecia ser mais luxuosa do que a que as pessoas comiam. Alguns soldados riam caçoando que a Senhorita General alimentava os vira-latas melhor do que eles. Depois de verem a Farnese dando belas refeições para as bestas, algumas pessoas disseram estarem felizes, já que ela finalmente parecia ser uma jovem garota, enquanto outros estavam preocupados que os interesses pessoais da comandante poderiam atrapalhar a ordem dos militares. Com tanto alegria quanto preocupação, os soldados olharam invejosos para a comida luxuosa dos cachorros.
Havia chegado a hora para o exército partir rumo à guerra. As tropas, que tinham dormido bem, haviam comido até encherem seus estômagos, estavam com os olhos vívidos, apesar do inverno. Três mil e quinhentos anões na infantaria, quinhentos centauros na cavalaria, e cinquenta bruxas contratadas da cidade, todos eles estavam sobre o campo invernal, esperando pelo discurso da general antes da nossa partida. Haviam pessoas reunidas em torno do campo, mas todos eles eram pedintes e prostitutas. Esses tipos de pessoas se mantinham ocupados, seguindo incessantemente onde quer que os exércitos fossem.
“…”
Portando uma espada formal-ritualística, Farnese subiu à plataforma. Não havia decoração, então a lâmina era pequena. Já que a aparência da arma era leve, ela combinava bem com o corpo da garota. Os cães de caça seguiram a sua mestra até o topo da plataforma. Os cachorros pararam silenciosamente em torno dela.
Farnese desembainhou sua lâmina. Ouvindo o som do metal, os cães de caça olharam para trás deles. A límpida espada azul cortou o longo pescoço de um dos cães. Sangue espirrou. Os outros cães não tiveram qualquer reação. Farnese matou todos os quinze cães de caça, e até o fim, nenhum deles latiu. Silenciosamente, o sangue escorreu pela plataforma.
—…
Os soldados prenderam a respiração. Eles não ousavam olhar a comandante nos olhos.
As pessoas temiam a general que havia matado impiedosamente os cães de caça, que ela havia criado com tanto esmero, eles temiam a general silenciosa que cujo rosto se manteve inexpressivo durante todo o massacre, e eles também temiam o fato de que essa general era apenas uma garota de dezesseis anos. E especialmente, eles temiam extremamente as intenções desta general que havia se dado ao trabalho de matar seus próprios animais de estimação, que ela havia tratado com carinho, no dia em que o exército estava partindo. Os capitães coçaram seus próprios pescoços enquanto olharam as cabeças rolando dos cães decapitados.
Laura de Farnese falou.
“Marchem.”
As tropas obedeceram.