Volume 3

Capítulo 2.1: Inverno

“Tente me chamar de pai.”

“Você está louco, Senhor?”

Eu organizei meu exército durante o inverno.

O temperamento dos soldados era feroz e violento. Eu não conseguia suportar a visão de uma garota com cerca de dezesseis anos fingindo ser uma general. Sempre que eu os encarava, os soldados rapidamente se movimentavam e obedeciam, mas era somente neste momento. Nos locais onde não havia fiscalização, os militares criticavam a Senhorita Farnese. Graças às bruxas espalhando seus familiares pelos arredores, nós conseguíamos escutar perfeitamente os soldados falando escondidos.

“Escutem bem.”

Tendo gravado as conversas deles em um artefato Tocador de Memórias, eu permiti que a Farnese escutasse tudo. Os soldados se referiam a Senhorita Farnese como a ‘Prostituta humana’.

 

— Nós somos demônios, então por que uma prostituta humana está aqui dizendo que vai nos comandar? Que tipo inovação de merda é essa?

— É uma merda fresquinha. Isso que ela é.

— Mas a aparência daquela garota é boa.

— Quem vai pra guerra para olhar para o rosto de alguém? Nós lutamos para cortar os pescoços em que os rostos estão presos. Mesmo que a prostituta humana tenha memorizado alguns trechos de um manual da arte da guerra, eu duvido que até mesmo os oficiais mais peixes pequenos ficariam impressionados depois de ouvir que ela leu alguns livros.

— Quem sabe? Todas nossas cabeças podem ser arrancadas depois de irmos com elas para o chão e escutarmos ela gemer.

 

Os soldados riram alto. Também conseguimos escutar alguém os repreendendo ali perto, dizendo que se tentarem pegar uma garota, especificamente uma que Sua Alteza Lorde Demônio Dantalian já havia transado, seria algo perigoso. Entretanto, não foi dito em uma maneira em que estavam realmente os repreendendo seriamente. Foi dito em um tom jocoso, rodeado por escárnio. Escutando até este momento, eu fechei o artefato.

“O que você acha?”

“Parece que os soldados estão falando irresponsavelmente o que bem querem, sendo que não sabem de nada sobre esta jovem senhorita.”

Farnese murmurou com o rosto sem emoção.

“Esta jovem senhoria nunca se deitou com Vossa Senhoria. Mas que pessoal problemático.”

“Ei.”

Aquela parte não era o problema.

Um pouco mais… Como é que se diz? Não tem um problema mais importante sendo ignorado? Se eu tivesse que indicar mais detalhadamente, então tem o problema dos seus comandos militares não estarem recebendo um grama sequer de respeito. Apesar de ter escutado o meu comentário, o rosto da Farnese continuava sem emoções. Ela nem virou seu olhos para a minha direção, ao invés disto, apenas continuou lendo seu livro de história silenciosamente. Enquanto lia seu livro, Farnese murmurou.

“Não é possível identificar e consertar um problema dentro de um exército facilmente. Eles serem incapazes de simplesmente aceitar alguém de fora significa que eles já são firmemente unidos internamente. Já que eles são firmes por dentro, não cairão facilmente quando enfrentarem os inimigos. Eles são elites.”

“E então?”

“Se esta jovem senhorita cortasse as gargantas dos centuriões e dos decanos, então este exército firme cairia de dentro para fora e decairia, tornando-se uma mera multidão desorganizada. Os capitães que ofenderam esta jovem senhorita seriam degolados, e as suas posições seriam preenchidas por outros que seriam bons em agradar esta jovem senhorita. Ao invés de capitães habilidosos, capitães bons em puxar-saco acabariam recebendo tratamento preferencial, e isto não é correto. Essencialmente, um exército é um corpo de pessoas que se mantêm unidas por ambos, trabalhadores internos e externos. Esta jovem senhorita teme cometer a tolice de remodelar a parte externa e fazer com que a interna se deteriore.”

Eu examinei minuciosamente a expressão da Farnese.

Apesar de ter escutado as palavras vulgares cuspidas pelos soldados inferiores, não havia qualquer sinal de resistência vindo dela. A única coisa que havia nela era contemplação sobre o que ela teria que fazer para lidar apropriadamente com os soldados tratando-os não como pessoas, mas sim como ferramentas.

Laura De Farnese era uma psicopata.

No entanto, ela era uma psicopata inteligente.

“Seria admissível deixar todo o comando militar em suas mãos?”

“Vossa Senhoria não pegou esta jovem senhorita do mercado de escravos para fazer com que ela comandasse suas tropas? Tudo bem Vossa Senhoria, não há com que se preocupar. As questões militares são a tarefa desta jovem. Já que este é um problema envolvendo esta senhorita, então ela tem de resolver isto sozinha.”

Eu sabia que a minha preocupação era desnecessária.

Querendo terminar esta conversa com um teste, eu a repreendi.

“Os problemas militares vão ser resolvidos só porque alguém como você disse que consegue lidar com eles?”

“As palavras de Vossa Senhoria são bastante agressivas. Ao invés de utilizar palavras para instaurar medo nesta jovem senhorita, utilize um objetivo para iluminar o caminho para ela.”

“Eu vou te dar um mês. Tenha controle sobre a disciplina dos militares dentro de trinta dias. Se você não for capaz de defender este belo discurso que você fez agora, então eu vou te açoitar pelo crime de abrir a sua boca sem pensar direito.”

“Entendido.”

Farnese ainda não havia tirado os seus olhos do livro. Já que eu havia abrido agressivamente o caminho a sua frente, agora era hora de ajudá-la gentilmente pelas costas. Eu perguntei a ela.

“Não tem nada com que eu possa ajudar?”

“Por favor, conceda os familiares das bruxas para esta jovem senhorita. Ela os utilizará como seus olhos e ouvidos, e os usará para examinar coisas que esta jovem senhorita não consegue enxergar nem escutar.”

“Um pedido fácil”.

“Ah, e também —.”

Farnese falou.

“Por que Vossa Senhoria disse que se tornaria o pai desta senhorita?”

“Os soldados estão te desrespeitando porque você é filha de humanos. Eu pensei que o desprezo contra você diminuiria se eu te adotasse como filha.”

Farnese tirou seus olhos do livro. Finalmente ela estava olhando para mim, mas por algum motivo seus olhos estavam repletos de suspeita. Quase parecia que ela estava me tratando como comida estragada.

“Isto é bem indecente. O que você disse pode até não estar errado, mas a linha de pensamento de Vossa Senhoria é lastimável. Neste mundo todo, que Lorde tentaria resolver um problema militar com uma adoção? Apesar de esta jovem senhorita ter sentido isto antes, mas Vossa Senhoria é um pouco insano. No mínimo, você não é normal.”

Por que você se importa com isso!?

Você que é a psicopata!

 

 

 

Farnese mergulhou na parte mais interna dos problemas militares. Ela estendeu sua esteira de dormir no alojamento onde os soldados descansavam e se divertiam. A general estava vestindo o uniforme que os soldados de patente baixa usavam, um único conjunto de esteira e cobertor para dormir, e uma tigela de má qualidade. Ela estava planejando viver ao lado das tropas.

Os capitães vieram correndo até mim e reclamaram.

 

— Está tudo desconfortável desde que a general entrou na nossa área abruptamente.

— Já que a general está por perto, quando nós estamos recebendo nosso café da manhã com nossas tigelas, antes que consigamos nossa porção de sopa, nós acabamos olhando para a general ao menos uma vez. Enquanto olhamos para a general, nós acabamos mastigando a carne na nossa sopa uma vez a menos. Já que estamos sempre prestando atenção na general, nós esquecemos de mastigar frequentemente, portanto, nós não temos energia depois das nossas refeições e ficamos com os estômagos agitados. As pessoas dizem que não se deve incomodar nem um cachorro vira-lata quando ele está comendo, mas como nós devemos lutar apropriadamente quando a general está interferindo nas refeições dos subordinados dela? Por favor, entenda.

— Vossa alteza, Por favor, entenda.

 

Eu cocei a minha testa.

Entendo, esses filhos da puta estão fazendo reclamaçõezinhas idiotas sobre as refeições deles. Eles estão insultando meu nome. Já que vocês estão gritando que nem cabras, eu também irei agir de maneira idiota. Vamos ver como vocês desgraçados lidam com a minha atuação de ‘irritado’.

Respirando fundo, eu atirei as palavras como projéteis de metralhadora.

“Vocês estão discutindo questões domésticas perante o rei? Que seja então. Eu vou informá-los de todos seus detalhes domésticos. Toda a comida que vocês enfiam na cara todas as manhãs vem de mim. Todo jantar que vocês metem no estômago e toda a merda que sai dos seus corpos, tudo isto vêm de mim. Quando as suas espadas quebram, para quem vocês vão pedir para consertá-la? Quem vai procurar pelo ferreiro? Quem vai conseguir os cavalos e os vagões para colocar as armas e mandá-las para o ferreiro, e quem vai prover a comida e o alojamento para os cocheiros que vão viajar tanto na ida quanto na volta? Sou eu quem comanda este lar. Seus ingratos. Eu estou dizendo para vocês que eu sou o Seu Monarca. Só porque vocês estão se sentindo um pouquinho desconfortáveis pelo fato de que estão prestando um pouco mais de atenção nela e estão mastigando um pouco menos, vocês vieram até os meus aposentos arrumar uma confusão?”

Eu peguei o travesseiro de madeira que estava utilizando para tirar uma soneca e o joguei nos capitães. Assim que o travesseiro de madeira bateu no chão e quicou, os capitães estremeceram. Eles abaixaram as suas cabeças ainda mais.

A maneira de falar que eu usava quando lidava com os Lordes Demônios e o tom de quando eu lidava com os capitães militares era bem diferente. Eu não permitia que eles se afastassem muito me comportando como se fosse muito nobre e poderoso na frente dos capitães. Em vez disso, eu me abaixava para o nível deles e faziam-nos abaixar as cabeças sem conseguir mover um centímetro. Esta era a minha estratégia.

“Estes tolos ignorantes.”

 

— Suas palavras são imensuráveis, Vossa Alteza!

— A culpa é nossa, Vossa Senhoria!

— Nós não pensamos direito.

 

“Bom. Vendo que vocês conseguiram pedir desculpas tão facilmente assim, não farei com que vocês se arrependam profundamente. Laura de Farnese é a general dando comandos militares em meu lugar, ela é a general atuante. Sempre que eu não estiver presente, ela é a sua monarca. A razão para eu não punir todos vocês agora mesmo não é porque eu aceitei as suas desculpas, mas sim porque eu quero que vocês vão até a general atuante e terminem as suas desculpas lá. Um erro que acontece dentro do exército deve ser perdoado pela general.”

 

— Mas, Vossa Alteza.

— Nós lutamos com a força que nos é dada pela comida. Se nós não conseguirmos comer nossas refeições direito, então…

— Nós não queremos dizer isto, mas…

 

Esses desgraçados?

Eu desembainhei uma espada.

“Eu deveria ajudar pessoalmente a fazer com que as refeições desçam pelas suas gargantas mais facilmente?”

Foi neste momento que os capitães finalmente fugiram. Já que eles estavam correndo mais debilmente do que com vigor, eu os persegui. Os capitães ficaram surpresos e gritaram. Eu peguei o travesseiro de madeira e o joguei mais uma vez, como eu era um arremessador talentoso, o travesseiro atingiu exatamente no meio da parte de trás da cabeça do capitão. Eles escaparam. E desta forma, eu ajudei a Farnese.

Eu tinha confiança de que Laura De Farnese estava destinada a se tornar a maior comandante no continente, assim como na história original.

E como previsto, depois de quatro dias Farnese havia descoberto o problema no exército. Vestindo o uniforme militar dos soldados de baixa patente, Farnese veio me informar.

“A irracionalidade em meio às tropas é imensa, Senhor.”

“Que tipo de irracionalidade?”

“Se tiver um comandante de regimento, um centurião, e um decano, isto é suficiente para o problema acontecer. Em geral, os comandantes de regimento dão suas tarefas para os centuriões, os centuriões dão suas tarefas para os decanos, e os decanos dão suas tarefas para os soldados. No fim, os soldados de baixa patente tomam conta de tudo no exército. Até mesmo os soldados, já estando cansados disto, se dividem em mais e menos importantes entre eles. Os menos importantes acabam lavando a roupa e arrumando a cama para os mais elevados.”

“Um problema proeminente em qualquer exército.”

“Os soldados deveriam lutar como soldados e os centuriões deveriam lutar como centuriões, e ainda assim, por que eles estão dando ordens uns para os outros apenas para fazer com que suas próprias vidas fiquem mais fáceis? Esta jovem senhorita, que é a general, deveria ser a responsável por comandar os soldados, mas já que tem vários superiores mandando os soldados realizarem tarefas, é como se tivessem diversos generais ao mesmo tempo. Em um exército destes, não tem a menor chance de um comando militar conseguir organizar e percorrer todo o regimento.”

Eu cuspi no chão. A minha garganta sempre parecia estar seca por causa do inverno.

“Você consegue resolver isto?”

“Esta jovem senhorita esmagará este problema facilmente.”

Eu preferia deixar a irracionalidade como estava a manipulá-la adequadamente, mas parecia que Laura De Farnese era o exato oposto. Aguentar a irracionalidade ou resolvê-la sozinha, eu pensei qual dessas opções seria mais conveniente.

“Muito bem então. Faça como bem desejar.”

“Esta jovem senhorita agirá em prol do objetivo de Vossa Senhoria.”

A Farnese começou a tratar a disciplina dos militares mais severamente.

Daquele momento em diante, seja um capitão, um veterano, ou um novato, independentemente do seu nível de experiência, Farnese estabeleceu uma regra que todos deveriam lidar de seus próprios afazeres por si só. Ela mesma tomou a frente. Farnese lavava seu próprio uniforme pessoalmente, e lavava as suas próprias botas. Um dia, quando um soldado trouxe uma refeição para ela, Farnese levantou a voz e o afastou.

“Leve isto para longe. Eu não tenho meus próprios braços e minha própria boca?”

Farnese não comeu nada naquele dia. Assim que a comandante jogou fora a sua refeição, os soldados não souberam o que fazer. Deste dia em diante, não se viu mais a cena de soldados entregando refeições para os veteranos.

Entretanto, naquele momento, isto só havia desaparecido exteriormente.

Era inevitável que algo que havia desaparecido exteriormente só estivesse se escondendo mais profundamente por dentro.

Em uma noite que estavam especialmente ambiciosos, os veteranos reuniram os soldados secretamente e os maltrataram. Utilizando os familiares, nós conseguimos escutar ao vivo os sons desta violência vindo dos cantos do acampamento.

 

— Ei, levantem a cabeça seus filhos da puta. Vocês acham que a prostituta humana vai continuar vivendo nos nossos dormitórios para sempre? Ela é o tipo de vadia que vai embora depois de quinze dias. Assim que ela se for, eu vou pessoalmente fazer vocês morrerem.

— Pensem bem em quem realmente está tomando conta de vocês. Aquela prostituta humana é alguém como Sua Alteza, e não alguém como nós. Eu vou dar um conselho sincero para vocês, fiquem na linha.

—Sim, nós entendemos.

 

Não importa aonde, o que eles dizem é sempre igual—.

Enquanto eu atentava meus ouvidos ao som, e sentia um pouco de saudades, Farnese murmurou ao meu lado.

“… Entendo, eles estão me desafiando para ver quem vai vencer.”

Oh?

Pode ser só a minha imaginação, mas aquilo ali pareceu ser um rosto ligeiramente irritado. Já que era bem raro a Farnese demonstrar qualquer emoção, isto era intrigante.

Desde aquele dia, Farnese começou a sair em patrulhas noturnas.

Ela não vagava pelos lugares abertamente, mas sim fingia que era uma coincidência sempre que possível. Por exemplo, fingindo que ia ao banheiro no meio da noite e dar de cara com a violência que estava acontecendo em um armazém, ou fingindo acordar ao sentir uma presença e ir examinar atrás dos dormitórios. Era um truque óbvio. É claro, não havia nenhuma tática que funcionava tão bem quanto um truque óbvio. Pense bem nisto. A comandante havia parecido subitamente vinda das sombras. Os soldados não conseguiam evitar ficar assustados.

“O que vocês estão fazendo?”

Os veteranos que estavam maltratando os soldados não conseguiram responder.

Com o rosto sem emoções, Farnese anunciou.

“Entendo. As pessoas que não dormem quando precisam dormir devem conseguir lutar muito bem quando precisam lutar. Eu estou aliviada que vocês formam um exército forte e unido. Os oficiais veteranos aí, me sigam.”

A Farnese obrigou os veteranos a fazer trabalhos manuais. Dando uma picareta para eles, ela ordenou que cavassem. Já que o solo estava endurecido por causa do frio, as pontas da picareta não conseguiam perfurar a terra. Olhando para o chão impenetrável, os soldados fizeram uma fogueira para derreter o solo. Depois de acendê-la, eles cavaram até que um pequeno monte de terra surgiu próximo aos quartéis. Então Farnese olhou para os soldados e deu outra ordem.

“Muito bem. Agora encham ele de volta.”

Os veteranos colocaram a terra, que eles cavaram em vão, de volta no buraco. Demorou quatro longas horas para cavar e tampar o buraco. O chão voltou a ficar plano. Olhando para os veteranos que pensavam que seu trabalho havia finalmente acabado e estavam enxugando o suor, Farnese falou friamente.

“Cavem de novo.”

Os rostos dos veteranos empalideceram. Durante metade de um dia, os soldados cavaram e encheram buracos repetidamente. Era um trabalho sem qualquer razão ou objetivo. Já que não havia objetivo ou meta, eles não conseguiam enxergar um fim para ele, e já que não conseguiam enxergar um fim, eles não conseguiam aguentar a situação atual. Muito provavelmente eles queriam morrer. Devia parecer que eles estavam cavando as próprias covas. Eu assisti de longe com as minhas mãos nas costas à Farnese atormentando alegremente os soldados veteranos.

Sendo sincero, era divertido.

 

 



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