Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – arco 7

Capítulo 89: O prólogo de Lawrence Jugram, parte 2

Há um lema em minha família.

Do sangue viemos, para o sangue viveremos, e pelo sangue morreremos.”

Esse é o caminho que Lira Jugram nos deixou, é o ditado mais sacro, que pede lealdade completa dos membros para com o coletivo, independente de certo ou errado, do que queremos ou não.

Todos entre os Jugram devem, obrigatoriamente, se sacrificar pela família. Era assim no início de nossa história, mas… mais para o início dessa maldita era, esse ditado de merda deixou de ser um mantra que afetava todos para um que deixava metade da nossa população escravizada.

No início, não me importei muito de ser um escravo. Talvez nunca tenha me importado tanto assim. Nós, Portadores, somos servos da humanidade.

Com onze anos, eu me tornei o herdeiro legítimo de Absalão. Minha irmã não conseguia acompanhar meu progresso e, por isso, foi deixada de lado.

Minha mãe, contudo, não podia aceitar que eu, alguém que ela odiava tanto, assumisse esse posto. Imagina, uma pessoa que nunca se importou com as tradições de nossa família começando a fomentar a discórdia entre as conselheiras, tentando arranjar alguma desculpa.

O quão patético isso é?

Independente dos desejos de minha mãe, minha posição como herdeiro era garantida. Era impossível ela passar o Diário para alguém menos capacitado, não com Absalão claramente querendo que eu fosse o próximo portador.

Provável que saiba disso, mas os Diários tem vida própria. No caso de dois ou mais herdeiros, eles que decidem quem é o melhor candidato.

E Absalão clamava por mim. Clamava que tomasse ele de minha mãe, que a muito tinha abandonado os desejos de Cana Jugram.

Ainda que não conseguisse dormir direito devido a cacofonia que preenchia minha cabeça, recusei-me a ir atrás dele. Não era a hora certa ainda, de alguma forma eu sabia disso.

Minha hesitação custou caro.

Algumas semanas antes do meu décimo segundo aniversário, minha mãe finalmente entendeu que minha irmã não era apta o suficiente para tomar o diário de mim…

Ela não aceitou o desejo do Diário, e, enquanto temia pela minha vida, sabia que ela não tentaria nada.

Eu era a pessoa que Absalão escolheu. Não podia fazer nada contra mim, não enquanto não surgisse um candidato mais qualificado…

E, com isso em mente, minha mãe teve uma ideia. Ela entendeu que não poderia me matar, entendeu que eu era o melhor candidato vivo…

Como ela poderia resolver isso? Bem, a resposta é simples…

Criando outro candidato, é claro.

Havia um pequeno problema nisso, contudo.

 

Um problema? — perguntou Lewnard, dando sua completa atenção para a história que contava.

Minha mãe fez muitos experimentos com diversos tipos de Energia. Experimentos que afetaram-na tanto fisicamente quanto espiritualmente. — Minha voz era quieta, calma. Senti minhas mãos me abraçando conforme a memória daquela noite tocava uma vez mais em minha mente. — Depois de gerar eu e minha irmã, Lira Jugram havia se tornado estéril…

 

Além disso, como era filha única, ela não podia pedir para outra gerar uma herdeira digna dela…

Mas, como deve saber, Lordes Sombrios raramente pedem para outras pessoas. Eles tomam o que querem e, se tem alguma coisa impedindo eles de conseguir aquilo, eles destroem tudo o que está na frente deles, independente das consequências.

Então, se não tinha nenhuma irmã, tia ou avó viva, Lira Jugram tinha apenas duas pessoas que podiam gerar um herdeiro… Duas pessoas que, convenientemente, eram homem e mulher.

E ela tinha a certeza que, juntando esses dois, ela poderia criar o herdeiro ideal, tudo graças a pureza do sangue…

Contudo, ela também sabia que o amor que ambos nutriam um pelo outro não era romântico. Era apenas o amor fraternal entre irmãos…

Mas, como eu disse antes, dane-se as consequências, não é?

Pensando nisso, minha mãe trancou eu e minha irmã num quarto e permitiu que um gás especial fosse liberado. Sabe o que era esse gás, Hollick?

Ao ver a expressão dele, sorri. Um sorriso falso e triste, que tentava desesperadamente emular confiança, felicidade.

 

Afrodisíaco… — A voz da Licantropo carregava incredulidade com aquilo, mostrando o quão chocada estava.

Olhando para ela, assenti e olhei, curioso, para a expressão que Lewnard fazia…

O rosto dele mostrava claro ódio com aquela injustiça, assim como o desejo de fazer algo que pudesse me ajudar…

Curioso

 

Mesmo que eu e minha irmã tentássemos resistir, passar horas dentro de um quarto com um afrodisíaco poderoso pulsando nas veias, ainda mais quando os dois são adolescentes…

Bem, acho que entendeu o que aconteceu a seguir.

Após eu retomar a consciência, minha irmã estava lá, chorando, enquanto ignorava tudo o que acontecia ao redor…

Ela, a mesma irmã que me era tão importante. Uma das pessoas que mais me amou, que mais me apoiou, estava reduzida a uma sombra do que era…

Não podia aceitar aquilo. Recusei-me a aceitar aquilo…

O Diário de Absalão chamou-me uma vez mais, clamando pela rebelião pela qual era tão famoso.

E, pela primeira vez em minha vida, eu respondi.

Três dias depois, a saúde de minha mãe começou a piorar. Algumas semanas com a aplicação contínua do veneno e ela já estava de cama, febril e quase morrendo.

E, foi naquele momento, após uma luta violenta entre mamãe e eu que me tornei o Portador de Absalão, matando a Leide Sombria dos Jugram no processo.

 

Inacreditável…

Pisquei pela primeira vez desde que começou a contar a história, incapaz de entender, de aceitar aquilo.

Não me importo se acredita ou não em mim, mas, de qualquer forma, aí está — disse, a raiva ainda presente na voz, tão intensa quanto o fogo infernal. — O porquê de eu odiar sua irmã e aquelas da laia dela é bem simples. Elas tiraram tudo de mim.

Ele… realmente está falando a verdade. Esse cara tem tanto ódio dentro dele que é perturbador. Eu… não entendo como isso é possível.

E, mesmo que seja justificado, mesmo que a raiva dele tenha um bom motivo, só está se machucando ainda mais. Enquanto é um poderoso motivador, eu sei bem como a vingança age.

É uma lâmina de dois lados. Ela mata seu inimigo, mas o corte que causa em si é profundo, quase não sara.

Eu entendo. Acredito em você, mas… — Meus olhos se perderam conforme memórias surgiam. Memórias de como fui criado, do peso das expectativas. Expectativas que não pude manter… Ele é igual, porém diferente.

Enquanto os Hollick acreditavam que seria um segundo John, um gênio, os Jugram previam que ele só seria um incomodo, alguém que não vale o tempo, que não é merecedor de nada.

Lembra e muito o Lumis… mas, ainda assim, as soluções que ambos encontraram são opostas. Um matou a família e o outro quer ser aceito por ela.

Eu… quero ajudá-los.

Talvez não seja por altruísmo. Bem provável que seja um desejo egoísta… Só sei que ver eles sofrendo tanto, ver eles num lugar onde poderia estar… dói. Dói tanto quanto ser esfaqueado.

Esse ódio generalizado não é a resposta. — Os olhos dele estreitaram-se e rangeu os dentes. Precisava falar isso… tinha que ao menos tentar salvá-lo. — Você só vai ficar mais machucado. Não passei exatamente pelo que passou, mas ouça-me, por favor… Apegar-se ao passado dessa forma…

Engoli em seco, sentindo um caroço na garganta. Por que falar isso é tão difícil? É como se estivesse matando uma parte de mim… Mas, tinha de ser feito… Era preciso.

Vai te destruir.

Não me faça rir… — disse, desviando o olhar e, suspirando, levantou-se. — Isso foi uma perda de tempo. Achei que, como filho de uma lenda, podia entender um pouco do que passei, mas acho que estava errado.

Nisso, virou-se e andou até a saída, dando uma última olhada em minha direção.

Eu odeio aquelas como sua irmã… mas odeio ainda mais arrogantes como você.

Nisso, bateu a porta, deixando o silêncio permear no local, um que permitia apenas nossas respirações serem ouvidas.

Acho que devo falar com ele… — Grishka levantou-se e seguiu atrás de seu líder, deixando-nos a sós.

Ei, Lewnard… — Virei-me para Jin, o Kairiano parecia perdido, incapaz de decidir o que falar. Contudo, direto como era, olhou para mim com confusão estampada no rosto. — Você estava falando por experiência… Perdeu alguém?

Suspirei com a pergunta pessoa, minha mente voltando direto para os companheiros que deixei em Kielrakai.

Não fui eu, mas, recentemente, uma amiga passou por algo parecido. E, sinceramente, dói ver ela assim…

O ódio que origina a vingança é o que mais machuca. Aqueles que o cultivam sempre acham a mesma coisa, que a dor vai passar quando o inimigo estiver morto. Que só assim as coisas melhorariam…

É uma das mentiras mais danosas que contamos para nós mesmos.

Suspirando, olhei para a porta e levantei-me.

Talvez não possa ajudá-los ainda, mas tenho que focar no que posso fazer.

Meu sonho não será alcançado se continuar fraco.

Com minha energia escapando vagarosamente, fui treinar, disposto a recuperar o pouco de controle que tinha conseguido há um mês atrás.

Um mundo de paz, onde o ódio não reina… Vou fazer o possível para alcançá-lo.

 



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