Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 75: Memórias que te arrastam, parte 2

Parei de bater no metal quando deu meio-dia. Naquele momento, saí da forja, dirigindo-me até onde Blair trabalhava.

Meu corpo estava suado e o cheiro de fuligem estava agarrado na roupa que vestia. Não quis trocar. Arrumar-me tomaria tempo do almoço, e, sinceramente, queria só um café.

Já se passaram duas semanas desde que voltei a tentar segurar uma espada. Não parei um único dia de tentar, sempre que tinha tempo livre. 

E as visões não melhoraram nem um pouco.

Na verdade, agora sinto estar sendo observado por algo maligno mesmo sem estar tocando na espada. 

Daqui a pouco, vou ouvir vozes também… 

— Passa aqui! — Ouvi um grito infantil e olhei para àquela direção, sorrindo quando vi as duas crianças jogando bola.

Era uma bem ferrada, cujas custuras mal aguentavam a força do chute… 

Tão inocentes… Era uma visão tão simples e insignificante, mas tão bela que não pude controlar as memórias que vieram.

Memórias de um tempo mais simples, antes de conhecer Kruger, antes de decidir empunhar uma espada.

Antes de conhecer a ganancia que hoje assola meu coração.

 

A primeira coisa que vi quando acordei, naquele cargueiro, foi a escuridão. Meus olhos rapidamente se adaptaram e senti um cheiro delicioso corroer minha mente. 

Ao olhar para o lado, vi o corpo dela, a mulher que me criou e cuidou, fazendo o trabalho de mãe para uma criança que nem era sua.

Estava pálida, com diversas mordidas no pescoço. Sabia que não duraria muito, que precisava de alimento, mas estávamos presos numa enorme caixa de metal, que servia como esconderijo e prisão.

Os homens que invadiram Migrand jamais permitiriam que um Dhampir entrasse ali, por isso tivemos de nos esconder. Mary, ela… Não come nada já tem alguns dias. 

Não só isso, mas está oferecendo o seu sangue para mim. Eu tentei recusar, tentei afastar a fome, mas foi só um corte no pescoço que todas as preocupações saíram voando pela janela.

Mary era uma bruxa e isso era o que a manteve viva. As várias runas de Abjuração afastaram a morte e prolongavam sua vida… 

Lembro de me perguntar até quando conseguiria manter-se assim?

Estávamos em horário de dormir, mas lembro que meu estômago pedia por sangue. Olhei para os lados, buscando algum rato ou animal pequeno que pudesse me satisfazer, mas não tive sorte. 

Eles há muito pararam de vir aqui, tendo pressentido o perigo que era estar perto enquanto tinha fome.

Fechei os olhos de novo, tentando, em vão, dormir. 

No dia seguinte, acordaria com o rosto empapado de sangue, com o cadáver de Mary jogado aos meus pés. 

 

Suspirei com aquela memória. Ainda podia sentir o gosto dela e, se tentasse o suficiente, sabia que podia ouvir os batimentos que continuamente decaiam mais e mais.

Podia imaginar-me naquele lugar, de novo e de novo… Talvez, se nunca tivesse saído de lá, não causaria tanta dor… nem me machucaria a este ponto.

Nisso, voltei a caminhar, uma outra memória surgindo.

 

Era um dia nublado, frio mesmo para o inverno daquele país conhecido pelo desabrochar das árvores de pétalas rosa.

Três anos atrás, fugi do navio na primeira oportunidade que tive, pondo o pé no solo de Kaira. Agora, meu destino era um só. 

Com uma espada de madeira em mãos, caminhei por entre os bambuzais. Não sei o que estava pensando. Era difícil de dizer… Já era rotineiro a esse ponto. Pedir direções para a próxima cidade, buscar um lugar que me acolhesse, e então desafiar todos os dojos da região.

Abrindo a porta, adentrei no enorme salão, olhando para cada uma das faces estranhas, buscando o mais forte dali. 

— Dojo do Kamino-do. Meu nome é Edwars Nosferato e vim desafiar vocês por sua honra. — A tensão aumentou e o mais jovem deles levantou-se, indo até um outro cômodo.

Naquela época, minha fama já começava a espalhar-se. Tinha um ano e seis meses que comecei minha cruzada para aperfeiçoar minha arte ao máximo. 

Não havia um motivo concreto para querer melhorar, não havia um grande inimigo a ser derrotado, nem uma jornada gloriosa a ser concluída.

Acho que, naquela época, só tinha uma coisa que queria fazer com essa minha arte.

— Edwars Nosferatu… Esse é vosso nome, correto? — Um  senhor mais velho foi em minha direção. Meus músculos se encheram de tensão, pronto para sacar a espada, quando apenas passou reto por mim, fazendo-me sentir um calafrio. 

Lembro de não entender bem na hora o porquê, o motivo pelo qual fiquei tão incomodado, mas, analisando tudo o que sei hoje, o motivo ficou claro.

Não houve um único erro nos movimentos dele. Cada passo foi silencioso, calculado para gastar o mínimo de energia. 

Engoli em seco ao me virar e olhar fundo para os olhos dele. O mestre falava com outro aprendiz, mas não deixou de me vigiar uma única vez.

— Então? Quem vou enfrentar? O senhor?

— Não… Contra um amador como você, Kiryu deve bastar. — Nisso, o aprendiz deu um passo à frente, fazendo com que estreitasse os olhos. 

Tinha mais ou menos a minha idade. 

— Isso é uma piada? — perguntei, minha raiva aumentou quando vi a forma como sacudiu a cabeça. — Ele é um principiante! 

— Que tem a sua idade. 

— Vamos logo com isso… — disse, timidamente, enquanto recebia o resto do conselho do velho. Tão irritado estava que não me preocupei em ouvir a conversa…

Um erro fatal.

Começou após alguns segundos. A postura de Kiryu foi a primeira coisa que notei ser anormal. Era perfeita, sem nenhuma abertura que conseguia explorar na época. 

Engoli em seco, percebendo que era puramente defensiva…

Corri rapidamente com a ideia de forçar uma abertura com a velocidade e força bruta que herdei de meu pai, contudo… 

Quando a espada começou a descer, num movimento simples e sem nenhuma graça, senti uma dor nos dedos e, para meu choque e surpresa, o som de madeira caindo no chão ecoou. 

— A vitória é de Kiryu. 

Aquela foi a minha primeira derrota.

A primeira vez que perdi para um humano normal. A primeira vez que tive minha espada derrubada… 

Foi rápido. A postura não se alterou. O jovem apenas avançou um passo e deu uma estocada nos dedos da minha mão quando comecei o golpe, num movimento perfeito demais.

Olhando para o velho mestre, notei o orgulho nos olhos dele, assim como a frieza dos outros participantes. 

Kiryu não falou nada. Não aproveitou o momento para se orgulhar, nem usou daquela chance para se exibir.

Apenas voltou ao canto onde estava e começou a praticar o mesmo golpe que executei. 

— Como… 

— Recebi uma carta de um aprendiz meu. Ele era o mestre de um dos dojos que você destruiu no caminho para cá… Devia considerar expandir seu repertório. Começar sempre com o mesmo ataque te faz previsível. 

— Mas sempre funcionou!

— Sim. De fato, sempre funcionou… Até o dia de hoje — falou, olhando para Kiryu com um sorriso no rosto. — Sabe, aquele rapaz não tem uma única grama de talento… Começou recentemente, há um ano, e ainda não dominou nenhuma das técnicas do meu dojo…

Voltou a atenção para mim, forçando-me a desviar o olhar pela primeira vez em anos. 

— Mas ele tem algo que você não tem… Algo que cultivamos nesse dojo há gerações… E isso é respeito. 

Fiquei quieto, incapaz de oferecer qualquer palavra contra aquele olhar. Invés disso, continuei estudando o chão, como a criança mimada que era.

— Saia daqui. Se eu ouvir que destruiu outro dojo, você morre. 

 

Respeito, é… 

Suspirei, conforme lembrava de tudo o que fiz ano passado. 

Nisso, continuei caminhando até chegar na lancheria, aproveitando para sentar-me e olhar para o lado de fora.

Naquela época, não conseguia ter a força de espírito para olhar nos olhos dele sem pestanejar… 

Será que seria o mesmo hoje? Será que não aprendi nada desde aquela época? Mesmo julgando os outros pela força do olhar deles, mesmo que Lewnard conseguisse passar nesse meu pequeno teste, não sou o mesmo.

Acho o contrário. Se o velho estivesse vivo, provavelmente me daria uma surra por desgraçar o estilo dele. 

Mas… não é como se fosse só isso. O buraco é bem mais fundo… 

Mais uma memória veio à minha mente, uma de tempos melhores, que colocou um sorriso no rosto. 





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