Dualidade Brasileira

Autor(a): Pedro Tibulo Carvalho


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 74: Memórias que te arrastam, parte 1

Quando acordei, senti-me, pela primeira vez em muito tempo, renovado. Saindo da cama, vi que Blair preparava o café da manhã para o resto da casa. O cheiro era maravilhoso, apesar de saber como era o gosto de verdade.

Antes de sair do quarto, meu olhar caiu sobre o guarda-roupa e notei que estava entreaberto, permitindo que visse a coisa guardada ali.

Indo até lá, peguei-me pensando em tudo o que aconteceu nos últimos seis meses. Era difícil imaginar que tanta coisa mudaria. Antes um policial, agora sou um exilado. 

Antes forte, agora sou fraco, incapaz de mudar algo no mundo. Com cada passo via mais e mais imagens de meu passado, a maioria delas voltadas especificamente para Miia.

Meu peito doía com cada uma delas, desde o quanto implicava com ela para que fizesse seu trabalho, algo que não me arrependo; até quando saímos para beber, quando ainda não era o capitão.

Tempos melhores, que jamais voltariam. 

Quando enfim peguei o objeto que me causava tanta agonia, a espada que tirou tantas vidas e sonhos, senti o sangue manchar minhas mãos, senti mãos me puxando para as profundezas de um rio vermelho, que nunca acaba.

Ao tirar parte da lâmina da bainha, ouvi gritos ensurdecedores, todos de pessoas que eu matei, todos se lamuriando, dizendo que eu os mandei para o inferno.

Um deles, em específico, fez com que perdesse a força nas pernas e guardasse a espada, pulando para longe o mais rápido possível.

— Você me matou, Edwars! — A voz ia ficando mais fraca, mas ainda causava arrepio em sua pele.

Meu coração acelerado, o suor que caia do rosto, a pressão tão intensa que fiquei de joelhos. Não consigo respirar, é como se os pecados que cometi ao longo de minha vida formassem uma mão ao redor do pescoço.

Quero que isso pare… quero que isso acabe… 

Segurei o peito, a dor insuportável. Tentei controlar meu batimento, mas cada respiração lenta só deixava tudo pior. Olhando para baixo, não vi o chão que devia estar ali, mas sim o monte de cadáveres, cheios de vermes que começaram a subir minhas pernas. 

Eu estou preso num trono de corpos, um lugar tão alto e inacessível que não consigo ver o final dele. É aquilo que a morte me deu. O poder máximo de comandar tantos recursos… agora era minha prisão.

Estive no topo do mundo por tanto tempo, mas nunca olhei dessa forma. Não… não é que não via, mas sim que não queria ver. Sempre aparecia uma distração. Seja um caso para resolver, seja mais um bajulador querendo meu favor.

Agora, sem nada na minha frente, posso ver exatamente sobre que material esse palácio foi erguido… Os ossos e a carne de todos que já matei. 

Eram tantas pessoas… 

Senti um movimento debaixo de meus pés e fiquei apavorado. 

Eles querem me buscar… querem me levar para o inferno! Tentei pular fora, sair dali, mas não conseguia sequer mover um músculo. Estava à mercê daqueles espíritos vingativos. 

Antes que a mão pudesse agarrar meu calcanhar, o cenário mudou e vi, uma vez mais, o quarto onde estava. Consegui me acalmar um pouco, o suficiente para ficar de pé. 

Nisso, sai pelo corredor minúsculo até a cozinha e, abrindo-a, fui direto beber água. Pegando um pouco daquela água suja da torneira na mão, tomei-a na boca, sentindo minha garganta arder.

Mais… quero mais… 

Abri a torneira no máximo e enfiei minha cabeça ali, bebendo de tudo, sentindo a sede cada vez maior. Quero mais… quero mais… 

— Edwars… — Senti um toque frágil no ombro e então o cheiro de algo maravilhoso entrou no meu nariz. Seguido disso, uma melodia primal, bela e constante, de um tambor tocou. — Tudo bem, morcegão?

Olhando para a mulher à minha frente, peguei-a pelo braço e aproximei seu fino pescoço da minha boca. Sei o que quero… sei o que desejo, o que preciso! 

Senti meus caninos se alongando, prontos para rasgar a jugular dela e tomar-lhe toda a vida. Sim… é assim que tem que ser… Sou um monstro. Apenas isso.

E um monstro devora inocentes.

— Rapaz, o quarto que lhes cedi não era grande o suficiente? Podem não transar na merda da minha cozinha? — A voz rouca do velho soou atrás de nós, fazendo com que congelasse. 

Em um segundo, percebi o que estava prestes a fazer, em outro que me arrependi. Finalmente, no terceiro segundo, percebi o que isso parecia. 

Afastei-me dela rapidamente, sentindo um pouco de calor no rosto. Blair estava envergonhada também, com um sorrisinho no rosto. 

Nisso, suspirou e olhou para mim. 

— A comida está pronta. Vão vocês dois para a sala, por favor? — Caminhei a passos rápidos para lá, ouvindo a risada desavergonhada daquele velho senil. 

Quando passei por ele, o mesmo parou de rir e me olhou. Caminhando, sentei-me enquanto tentava entender o que acabou de acontecer aqui… 

Eu quase tive uma recaída… quase cometi um erro terrível! Coloquei as mãos e agarrei meu cabelo. Ela deve me odiar agora… 

Olhando para o lado, vi-o ajeitando-se na cadeira. 

— Obrigado — sussurrei, alto o suficiente para que isso ficasse entre nós dois, apenas. Era tolice achar que conseguiria entender o que acabara de fazer, mas não me importei.

Acho que o tempo que passei com Lewnard e Shiki acabou me mudando. Ainda que agora estivesse mais fraco e vulnerável, não era algo que odiava. 

 

Foi após outro dia insuportável no calor de Vislo que enfim consegui um tempo para conversar com o velho ferreiro. Edwars ainda estava martelando o ferro na oficina.

Esperava que o som constante de martelada o impedisse de ouvir isso… As orelhas de um Dhampir são extremamente sensíveis e mesmo ele não podia ignorar aquele barulho sem fazer um esforço consciente.

— Então, mocinha… O que quer?

O olhar do velho caiu sobre meu rosto e suspirei. Não gosto de ser chamada de mocinha, não quando já estou ficando velha, mas ignorei o sentimento. 

Vendo isso, suspirou e ajeitou-se na poltrona, reclamando sobre pessoas sem senso de humor algum, e só acendeu um cachimbo.

— Anda, desembucha.

— Preciso que encontre outro serviço para Edwars. — Coloquei a mão sobre meu braço, enquanto lembrava do estado contínuo dele. — Ele tem um passado complicado com espadas… E produzir as peças que pede está trazendo essas memórias em sonhos. 

Ficou em silêncio por alguns segundos e então soltou uma baforada do cachimbo e olhou de volta para a oficina, um rosto sem qualquer emoção nele.

— Se ele for fugir de seus problemas, nunca encontrará paz — disse, enfim. Senti uma veia saltar, mas não disse nada. Era igualzinho ao meu falecido marido! Ele seguiu o rei numa das expedições para Corpist e nunca esqueceu os horrores que viu lá.

Precisou de anos enfrentando os medos dele, de novo e de novo, para voltar a ser o homem que um dia foi… Só após conseguir se libertar daquilo que comecei a aproveitar a vida de casada. 

Ainda que soubesse que tinha razão, não mudava o fato que odiava aquilo. Vê-lo sofrendo era como um chute no estômago… e não poder fazer nada só deixava tudo pior.

— Não é justo! — Minha voz foi carregada na casa inteira e tentei me acalmar desesperadamente. Edwars apareceu, olhando-me preocupado.

— Tudo bem?

— Sim… sim, tudo ótimo… Só estou tendo uma conversa… Não é nada que precise se preocupar… — Pareceu hesitante em mover-se, precisando que o velho lembrasse-o do trabalho.

Quando saiu, virei-me de volta para ele, que sorria com a mesma provocação. Desgraçado.

Nisso, soltou um suspiro e olhou fundo em meus olhos. 

— Nada nesse mundo é — disse, levantando-se e puxando outro trago do cachimbo. — Minha neta é extremamente inteligente, mas nunca terá a chance de pôr esses talentos a prova devido a educação de merda do país. Meu filho idiota era gentil além da conta e isso lhe custou a vida. 

Era verdade. Sabia que era. Que não havia nada de justo para ser encontrado em Vislo… Sabia, dentro do meu ser, que o que os países mais poderosos faziam com essa terra era cruel. Exploramos recursos que não eram nossos e esmagamos qualquer resistência do povo.

Mesmo Anjus tinha culpa. Por mais que os nobres justificassem essas ações com a guerra fria contra Migrand, não havia qualquer desculpa para a guerra do Lago Enfari.

O maior conflito da história humana, uma guerra onde a maior arma da nossa história foi criada e usada no povo inocente de Ohlak.

Uma guerra que já estava a muito tempo pronta, que só precisa de um estopim — que veio na forma do assassinato de um político Migrandino —, e que, no término, precisou das ações de um único homem para impedir que os vitoriosos destruíssem os perdedores por completo.

No final, Migrand só foi salva de virar uma nação de segunda classe graças às ações de John Hollick, no primeiro congresso da OLDM. Ninguém sabe o porquê daquele homem decidir salvar o país daquela que causou tanta dor, mas qualquer criança consegue perceber o resultado daquela ação.

Com o tempo que teve para se recuperar, Migrand fez bombas nucleares, cada uma pronta para ser disparada contra Anjus. 

Isso levou ao atual cenário. O medo de ambos os países de destruírem o mundo que seus ancestrais tanto queriam conquistar. 

No final, esse foi o erro do portador mais poderoso da era em que vivemos. John, com o apoio de Euclidum Zenith, acabou criando o maior conflito armado da história humana. 

Pensar que ele morreu alguns anos depois, sem tomar responsabilidade por seus atos, me enche de raiva.

Não sou ingênua como era, não ao ponto de pensar que um cão raivoso nunca me morderia. Sei bem que a melhor forma de lidar com um animal feroz é o abate… Afinal, eles não fazem distinção entre homens, mulheres e crianças.

Apenas pegam aqueles que são os mais saborosos.





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