Volume 1 – Parte 3
Capítulo 19
Já era noite quando o banqueiro se aproximou de seu local de trabalho. Sua cabeça, aturdida e tilintando de dores, não sabia ao certo em que se focar. Um dia corrido e bagunçado como aquele, quente e nojento, apertado e atarefado, fazia com que ele caminhasse a passos lentos pela calçada. Chutando o ar e temendo que ele o chutasse de volta. Não estava sozinho, no entanto.
Em seu encalço, vinha o italiano comunista. Vinha fumando, com uma das mãos no bolso e não havia dito sequer uma palavra desde que saíra do metrô junto do banqueiro.
Depois da apreensão que Samuel sentiu naquela reunião no Brooklyn, ele pouco prestou atenção ao restante. Ouvia, mas não compreendia. Sua presença ali se tornou quase um adereço, digno de pena. “O homem visitou a casa e afogou em terras secas”… Virei um animal em uma gaiola, a mostra para todos… isso é loucura. Pensou, quando pisou do lado de fora do prédio decadente e ocupado.
Caminhou, se lembrando de cada detalhe da casa. Ignorou Lorenzo, por mero capricho. Era por ter medo na verdade, não queria conversar com o homem pelo fato do que ele pudesse querer discutir.
Um plano… ele vai querer discutir alguma forma de destruirmos a casa. Em algum momento… a qualquer momento… fale logo seu negro miserável! Fale!
Gritava isso, apenas em pensamento. Não tinha coragem para dizer ou fazer nada além de caminhar de volta para seu trabalho. Covarde.
Porém, mais uma vez, nada fez o italiano além de fumar e caminhar junto ao banqueiro. O silêncio ansioso que os rodeava era acompanhado por uma fria brisa noturna. Carros passavam, pessoas caminhavam por ali e falavam com seja quem estivesse acompanhando-as. Sons ainda haviam, porém, passavam despercebidos pela dupla, assim como o frio do outono.
Seguiu-se desta forma, até o instante em que se aproximaram do banco. Frente ao prédio de seu trabalho, Samuel pensou como teria sido o dia de seus colegas. Ironizava e temia o que seu chefe poderia dizer no dia seguinte, quando o italiano pigarreou:
— Seu carro… — Lorenzo começou a dizer, parando ao lado do banqueiro. Ambos encararam o banco, mas por razões diferentes. — Qual é ele?
— O que?
— Seu carro… qual é ele?
— É um Short Sedan… — Respondeu o banqueiro, não entendendo ao certo o rumo da conversa.
— Da Volkswagen?
— Tem algum outro?
— Touché… — Disse o italiano, rindo.
— Por que pergunta?
— Por nada.
— Vai roubar o meu carro?
— Por que eu roubaria um carro? Posso andar de metrô.
— Pra revender.
— Por que eu revenderia um carro popular?
— Porque vende fácil.
— Por que eu quero algo que vende fácil?
O banqueiro nada respondeu quanto a isso. Seu silêncio foi uma forma de protesto por aquele excesso de perguntas que o outro fazia, enquanto o mesmo mantinha uma expressão irritantemente plena.
— Você faz perguntas demais. — E estúpidas também.
— Eu sei… — Lorenzo comentou, acenando na direção de um lugar distante dali. — Seu carro é aquele?
É aquele mesmo. Pensou, não respondendo ao outro e caminhando na direção de onde seu veículo estava. Foi a passos rápidos, tentando se distanciar o máximo que podia do italiano. Sempre no seu encalço ele ficou, no entanto.
— Bem… — Começou a dizer, se aproximando da porta de seu carro. — É aqui que nos despedimos.
— Pois é, te vejo amanhã no seu escritório. — Essas palavras saíram da boca dele, ao mesmo tempo que se afastava do Sedan do banqueiro.
— Como é? — Perguntou, aturdido. Esse sujeito não pode aparecer aqui amanhã!
— Te vejo amanhã…
— Isso eu entendi. — Ele saiu de perto de seu carro, ficando frente a frente com o homem negro. Olhava-o nos olhos, apesar da diferença de altura. — O que não entendi é o motivo de achar que pode vir no meu escritório!
— Temos de discutir o plano.
— Tenho coisas para resolver! — Mentira. Não havia de fato nada que ele precisasse fazer, nada além da casa. Queria apenas evitar aquele sujeito, o máximo possível. — Tenho clientes para atender!
— Eu sou seu cliente, não se lembra? Apareci à sua porta, com todo o interesse do mundo de comprar a casa.
— Não precisa me lembrar deste pesadelo… — Disse. Como tiro esse maldito do meu pé? — Mas não pode aparecer em meu escritório amanhã com esse motivo. Vai levantar suspeitas e tenho outros clientes que querem a casa!
— Não, não tem. — Disse, simplesmente. O que? Como ele… sabe? — Falei com seu chefe. O sujeito não quis dar ouvidos a mim até que eu disse para ele que eu podia pagar qualquer montante. Até duas vezes o valor da casa.
— Quando…
— Hoje de manhã, enquanto você estava se afogando em terra firme.
— Eu não me afoguei em terra firme, idiota!
— Me chamou apenas de idiota? Já é um progresso… — Ironizou, revelando um sorriso fino e pequeno. Porém, ele sumiu logo em seguida. — Mas sim senhor Goldberg, você se afogou. Vi com meus próprios olhos o seu estado e era tudo menos bom. Tremia, como se estivesse no fundo de um rio a horas. Arfava, buscando qualquer vestígio de ar. Só parou de agir daquela forma quando te arrastamos dali para a calçada e não acordou até chegar no hospital.
“A casa quase te matou, mas essa não é a pior parte. A pior parte, senhor Goldberg, é que você ainda ama aquele lugar, não é?”
A hesitação de Samuel foi a única resposta que o italiano recebeu. Expressou algumas respirações falhas, ansiosas e irritadas, todas palavras que não conseguiu tirar de sua garganta seca e que desejava o doce gosto de uma bebida. Como não posso amar aquela casa? Ela é linda, perfeita, você que não compreende… Não compreende… É um imbecil, cretino, incrédulo, miserável. Burro. Burro! BURRO! nada além disso… nada além disso. A casa é perfeita, eu apenas tropecei e desmaiei. Nada do que eu vi era verdade… nada. Absolutamente. Vazou o gás da casa e eu inalei demais. Estava muito quente e eu suei até apagar. UM RATO ME MORDEU E EU FUI ENVENENADO!
Delírio. Puro e simples delírio. Odiava admitir. Odiar pensar nessa possibilidade. Odiava odiar aquela casa, seu único conforto de um quase ano tão ruim… A única coisa que me deixou feliz nesses últimos anos! Delírio, como foi dito. Esqueceu de sua esposa quando pensou isso. De seu casamento e de sua casa nova. Dos anos que passou na faculdade e dos poucos momentos bons que teve ao lado de sua mãe, em seus últimos dias de vida. Aos poucos, a ficha foi caindo. A casa… Tem algo na casa. Isso era um fato. Não podia ser algo, não não, isso ele não admitiu. Porém, aceitou o fato de que precisava voltar para lá. Olhou na direção de Lorenzo mais uma vez, imaginando quando poderia tirar aquele homem do caminho de minha felicidade!
— É Samuel…
— O que? — Lorenzo perguntou, genuinamente confuso.
— Se vamos trabalhar juntos, é cansativo manter sempre a formalidade. Me chame pelo meu nome. Samuel.
O italiano apenas o encarou. Viu o banqueiro se afastar e voltar para o seu carro, mantendo o que parecia ser uma expressão de incredulidade. Porém, depois de um longo instante, abriu um largo sorriso.
— Boa noite, então, Samuel.