Volume 1 – Parte 2
Capítulo 14
O teto de latão tinha uma cor indefinida, que ia de um pálido estanho a mais ferrosa das pratas. As barras de apoio, presas do topo ao chão do vagão e em padrões de jogo da velha, estavam maculadas com remanescentes de anúncios colados com fita, pedaços arrancados de adesivo e várias propagandas. Além de manchas avermelhadas, que fez Samuel engolir em seco ao imaginar que era sangue.
Essa sujeira, no entanto, era, muito provavelmente, o resquício de algum condimento de comida, fosse um molho barato ou um ketchup tirado de um pacote de fast food.
Samuel, porém, não pensava mais nisso. Pensamento bobo. O suor que escorria por entre suas orelhas o incomodava mais que uma sujeira qualquer, com sua camisa social se assemelhando a uma segunda pele, abafadora, gordurosa, e úmida, sobre sua protuberante barriga. Apesar do constante e rápido movimento do metrô, o vento estava imóvel. Inerte a tudo, indiferente a todos. Não se importava com o calor que o banqueiro sentia, nem com o cheiro porco que o homem exalava.
Eu vou derreter… Pensou. Arfava alto, não mais disfarçando o seu desconforto.
— Logo vamos chegar… — Lorenzo começou a dizer. O italiano se sentava lado a lado com ele, e olhava-o de cima a baixo, com uma clara preocupação. — Espero que você aguente até lá.
— O porco não vai aguentar, Lorenzo… — Big Tom exclamou, sentado no banco à frente dos dois. Jerry estava sentado ao seu lado, também, mantendo-se em silêncio, apenas olhando através da janela a paisagem cor de cobre que passava.
— Eu vou aguentar…— Mentiu, sentindo que cada fibra do seu corpo esquentava e fervia, da mesma forma que um pedaço de bacon frita na frigideira.
— Jerry, Thomas, vão até lá na frente e peguem um pouco de água.
— Eu que não vou ajudar esse… — Tom começava a protestar, sua voz se silenciando no mesmo instante quando recebeu um olhar de Lorenzo. Por que ele se calou? Samuel notou, também prestando atenção no italiano, percebendo então o motivo. Era excepcionalmente vazio de sentimento ou significado, ao mesmo tempo que aquela impassibilidade parecia carregar todas as sensações. Uma visão com significado nenhum, por tanto, tudo podia significar.
Os dois rapazes saíram depois do olhar esquisito e insignificativo, deixando o banqueiro e o comunista sozinhos com o vento inerte, o calor infernal e o silêncio da locomotiva — sendo “Silêncio” todos os sons rítmicos que ocorriam ali ao redor. O som do metal contra metal, as eventuais chamadas que ocorriam através das caixas de som, os exagerados e agudos esperneios de alguma criança dentro do vagão… O cotidiano é uma coisa estranha e esquisita. O convívio constante com ele faz você se esquecer do restante do mundo. É confortável viver assim… de maneira ignorante.
Samuel Goldberg vivia agora uma quebra desse conforto, através do desconforto de uma viagem de metrô. Sinto falta do meu carro… pensou, enquanto derretia de dentro para fora.
— Pode ir com eles se quiser… — Goldberg disse, querendo mandar para longe o homem que o acompanhava.
— E perder meu assento? — Ao mesmo tempo que Lorenzo dizia isso, ele apontou na direção dos assentos à frente dele, onde seus amigos estavam antes. Um casal de asiáticos se sentou ali e ambos começaram a conversar em sua respectiva língua materna. É vietnamita. — Não, obrigado.
— Não deixo ninguém roubar seu assento… — Brincou o banqueiro, deixando bem claro que mentia. O italiano apenas riu.
— Já me roubaram esse assento uma vez… — Enquanto retrucava, o comunista olhava para frente com aquele seu olhar vazio de significado e cheio de significantes. — Vou aproveitá-lo o máximo possível.
— O que quer dizer? — Mera pergunta simples havia finalmente tirado uma expressão do homem ao lado do banqueiro. Lessley estava incrédulo com a ignorância de Samuel, não acreditando que ele falava sério.
— Está falando sério?
— Por que não falaria?
— Você não é do sul?
— Sou!
Dando um riso pelo nariz, o italiano puxou um cigarro do bolso para fumar, mas hesitou. O guardou no bolso para então continuar sua fala:
— Acho que faz sentido você não saber… Preso em um mundinho quase perfeito, apesar dos problemas… — Ele disse muitas outras coisas, comentando sobre a forma como Samuel provavelmente levava sua vida e os privilégios que tinha, mas Goldberg escolheu ignorá-lo. O que esse criolo pode saber da minha vida? E lendo seus pensamentos, o italiano continuou. — Nada sei, de fato, da sua vida. Sou só um homem negro, não é? Para você, apenas isso…
Após um instante de desconfortável silêncio, sentido até mesmo pelo casal vietnamita, Goldberg continuou:
— Você sabe fingir muito bem ser alguém culto…
— Sei sim, minha especialidade.
— …E seu mundo não é maior que o meu. Vivemos no mesmo planeta, no mesmo país… na mesma cidade. Meu mundo não é menor que o seu. — Enfatizou o banqueiro, e o italiano apenas o olhou. Não com o mesmo olhar vazio de antes, mas sim de maneira compreensiva sobre tudo o que Samuel estava dizendo.
— De fato não é… vivemos no mesmo mundo… — Ficou por um instante em silêncio, mais uma vez, antes de continuar. — Mas se vivemos no mesmo mundo, por que somos tão diferentes?
— Porque você é um idiota!
— A resposta não deve ser tão simples assim…
— Por quê você é italiano?
— Não vivíamos no mesmo planeta?
— Não no mesmo país…
— Pois é… não no mesmo país…
O casal vietnamita à frente dos dois já estranhava o rumo daquela conversa, e discutia entre si se deveriam ou não sair de perto.
— Por que somos diferentes então, senhor Goldberg?
O banqueiro nada respondeu, por irritação e cansaço — além de claramente não saber. O homem pensou em quais as diferenças tinha do outro e a principal delas que rondava sua mente, não podia ser dito em voz alta. Não aqui, nesse vagão lotado. Então ele apenas encarava a forma como a luz reluzia na retinta pele do italiano.
— Eu não sei… — Disse por fim, admiti a minha derrota.
— Eu também não sei… — Respondeu o outro. O que?...
— Como assim? — Deu voz a confusão de seus pensamentos. Não pôde acreditar que aquele homem não tinha uma resposta para dizer quanto tudo aquilo.
— Ambos, eu e você, somos homens com idades semelhantes. Nascemos em países semelhantes… não é como se o fascimo italiano tivesse acabado com a minha vida… — Ironizou, em voz baixa. — Sou filho de uma empregada doméstica, um de oito irmãos, e você é o filho único de um fazendeiro…
— Como você sabe disso?!
— Ainda assim… não somos diferentes. — Ele não respondeu a pergunta de Samuel. Apenas continuou com sua linha de pensamento, sem se importar com o assustado olhar do outro homem. — Minha pele é negra e a sua é branca. Somos ambos homens, mas mesmo assim… por que somos diferentes? Ambos sofremos e lutamos para não termos praticamente nada no fim… e por quê?
— Não termos nada no fim? Você é rico! — Insatisfeito, o banqueiro parecia prestes a estourar. Os nervos à flor da pele e o calor fervendo cada poro em seu corpo. — Você tem uma aliança de jadeíta e tentou comprar a casa! Tem uma vida melhor que a minha, seu muleque* de merda! Negão filho da puta!
N.A.: Muleque aqui é uma tradução para uma antiga expressão racista, “Boy”, usada no sul dos EUA, para tratar dos homens negros, indepente da sua idade.
Sua última fala assustou a algumas pessoas no vagão, incluindo ao casal vietnamita, que se levantou e saiu de perto dali por conta da discussão dos dois homens. Samuel se assustou com a sua raiva, mas não exatamente se arrependeu do que disse, e Lorenzo… se manteve em silêncio. Não vai dizer nada? Sua expressão vazia foi estranha ao banqueiro, mas se assustou ainda mais quando, no instante seguinte, viu ele abrir um pequeno sorriso.
Ele foi em direção a um dos bolsos e tirou dali o mesmo guarda-jóias de madeira avermelhada que Samuel viu dias atrás. Lentamente e sem tirar o sorriso do rosto, colocou aquela caixa belíssima nas mãos do banqueiro. Sem entender toda aquela situação, Goldberg apenas abriu aquela pequena caixinha e viu que a aliança de jadeíta estava ali dentro. Por mil diabos…?
— Não tenho riquezas infinitas, banqueiro. Apenas algumas coisas bonitas, que vocês deram valor. — Continuou. — Essa aliança deveria valer as horas de trabalho e os custos de material do famoso artesão que o fabricou, teve de gastar para produzir. Por que isto até mais que aquela casa?
— Porque é único!
— Também somos únicos, Goldberg. Por que então o senhor pensa que somos iguais?
O banqueiro se viu incapaz de responder aquilo. Sua mente se assemelhou a um quadro em branco e tudo ao seu redor pareceu perder significado. Ele tá dizendo que é melhor que eu? Teorizou, com raiva, mas esse ódio logo umedeceu. Eu penso que sou inferior a esse comunista?
Ele de fato pensou. Por mero minuto que fosse, pensou. E agora tentava compreender o que definia essa justiça de valor entre eles dois. Ora… Eu trabalho oito horas por dia, levo o trabalho até em casa e faço coisas até mesmo além da minha função… e ele… Com o que ele trabalha? Bem… ele tem a aliança de jadeíta, deve ser alguma coisa importante… Lorenzo, no entanto, não mais tinha a aliança de jadeíta. O porta-joia ainda estava na mão de Samuel no instante que Thomas e Jerry retornaram. Ainda olhava para a jóia em sua mão, enquanto bebia a pequenos goles o copo de água que o arranjaram, e em momento algum o italiano pareceu se preocupar em pegar o objeto de volta. Agora eu tenho um valor maior que o dele… não é? Se pegou pensando, ainda assim, sua inveja de ver os três homens conversando casualmente entre si estava ali, à espreita e o incomodando.
Por que estou me preocupando tanto com valores… Por que teríamos um valor diferente, eu e ele? Eu sou branco e ele… mas ele tinha a aliança e valia mais do que eu… eu não valho mais do que ele agora?
Samuel não era capaz de perceber. Eles eram diferentes, porém o juízo de valor que os separava não estava no que faziam ou já fizeram, em sua força de trabalho ou no material que possuíam em mãos. Eles simplesmente não precisavam ter um valor! Para a sociedade, talvez, mas como indivíduos… Agora Goldberg possuía a aliança e tinha dinheiro para comprar a casa, mas seu chefe jamais a venderia para ele. Lorenzo já não mais possuía a aliança, e mesmo que possuísse algum outro dinheiro, jamais o chefe de Samuel venderia a casa para ele, independente do contrato. Iguais, porém diferentes. Unidos no desalento de um mundo injusto, separados por valores definidos que vão além deles e, paradoxalmente, intrínseco a eles mesmos.
Ambos eram humanos, mas um é italiano e o outro é americano. Um é negro, o outro é branco. Um é comunista, o outro, banqueiro. Ambos trabalham. Ambos sangram e suam.
Injustiça alguma deveria haver, no entanto ainda assim há.