Volume 1 – Parte 1
Capítulo 8
Era um sentimento extremamente dúbio estar prestes a embrulhar para presente a coisa que Samuel mais queria.
Faltavam apenas quatro dias para a casa ser tombada, eis aí a boa notícia. A má notícia era o fato de que ela nunca cairia nas minhas mãos... Muito pelo contrário. Estava prestes a olhar cada centímetro dela pela próxima hora neste outono seco e quente, para então ir embora, sem sequer ter sido de fato capaz de experimentá-la.
Doentia a sensação que Samuel possuía de tratar aquela casa como um objeto de prazer. De desejos. Era apenas um imóvel caríssimo, e caindo aos pedaços. Que eu posso restaurar, transformar numa casa linda… Belíssima…! Perfeita para mim… e a minha esposa. O nome de sua esposa não surgiu de imediato em sua cabeça. Num misto de culpa, sentiu seus pés afundarem no chão ao perceber que teria de dividir aquela casa com alguém. Talvez tenha sido para melhor…
Não, jamais! Não podia aceitar isso. Estava a poucos passos da casa e de sua imaculada entrada. Tão perfeito era aquele Palácio que o piso da frente sequer rangia conforme pisava. O banqueiro, no entanto, não percebia todo o restante do lugar rangendo sobre sua cabeça.
— Tenho de anotar tudo, não posso começar por dentro da casa… — Murmurava para si, tentando inserir algum pingo de razão em sua mente, mas não teve sucesso nesta tarefa, ao perceber que já estava agarrando a maçaneta de prata! Até mesmo a maçaneta é de prata!
Girou por instinto, mas se lembrava de que a casa, obviamente, estava trancada. Foi com certa dificuldade que arrancou do bolso de sua calça apertada uma chave de latão, que lhe foi dada por seu chefe no dia anterior.
“Amanhã você vai até lá e olha cada comodo…” Ele disse, pouco se importando com a aparente tristeza que Goldberg estava sentindo. “Se a casa chegar a menos de sessenta mil dólares, estarei cobrando do seu bolso.”
Irônico ele dizer isso, pouco antes havia dito que eu não possuía dinheiro para a casa, e agora quer tirar o dinheiro que nem tenho para pagá-la… E assim era seu chefe, ele notava… ou melhor, confirmava mais uma vez. Já conhecia sua falta de caráter, ou de empatia. Sou apenas um pobre homem que anseia por um palácio para viver…
Sim, um pobre homem prestes a abrir uma fechadura de prata com uma chave de latão.
O trinco abriu com facilidade, como se ansiasse por aquilo e a porta, ao ser aberta, se manteve em um assustador silêncio. Não houve quaisquer barulhos por parte da casa ou dos seus arredores, apenas a pesada brisa do outono, que carregava uma poeira densa, de engolir em seco.
A casa não estava sendo iluminada, então seu corredor principal, conforme se distanciava da porta, não podia ser visto com facilidade. Era uma penumbra que se tornava ainda mais densa com a leve camada de pó e sujeira que flutuava pelo ambiente.
O banqueiro então deu o primeiro passo para o interior daquele imóvel e sentiu que seus pulmões estavam prestes a saltar para fora do peito. Tanta emoção…! Estou finalmente aqui!
Toda aquela escuridão fez ele notar uma coisa rapidamente. Não havia eletricidade dentro daquela casa. Não importava onde olhasse, não via sinais de interruptores, lâmpadas ou tomadas. Havia, no entanto, antigos lampiões a óleo presos às paredes, três até onde conseguiu ver. Todos ornados com uma pequena corrente que descia alguns centímetros. Eram escuros como carvão e opacos, talvez pelo excesso de poeira.
Talvez eu devesse começar o relatório por aqui… Se pegou pensando, enquanto mais uma vez colocava sua mão no bolso, o oposto ao qual havia puxado a chave. Tirou de lá um caderno de notas pequeno, com um lápis tão pequeno quanto preso em meio a suas páginas. Pulou algumas folhas já sujas, com rascunhos de preços e anotações breves, como listas de mercado, preços de comida — entre esses estava riscado o preço de um uísque em promoção — e lembretes. Ali estava o seguimento de coisas que tinha de anotar, salas a se passar e o preço comum de certos objetos e materiais, tudo isto feito em preparação para o dia de hoje.
Também veio a lhe calhar a sua antiga formação de faculdade, uma que não se orgulhava totalmente. Em sua juventude, Goldberg vivenciou e presenciou a Segunda Grande Guerra. Guerra mundial como chamam hoje… A curiosidade o fez estudar história e se formar numa faculdade com relativo prestígio. A Universidade de Columbia. Era um excelente nome em seu currículo e, talvez, tenha conseguido o emprego no banco apenas por garantir ao seu empregador que “Posso identificar qualquer objeto de valor histórico que me ofereçam.”
Inventou essa habilidade na hora, e ela de fato funcionou. Várias vezes homens trouxeram para o banco tesouros de família que eram, em sua maioria, objetos de valor histórico, como armas antigas, jóias centenárias ou anéis de jadeíta.
Quando Samuel verificou na prefeitura, este palácio possuía registros que datam de quase dois séculos atrás. Se Pascal deixou esta casa da exata forma, as chances de existirem objetos históricos ali dentro eram imensuráveis.
Mais uma adição para o enorme preço desta casa. Mais um impedimento para comprá-la.
Estranhamente, nestes vários registros que Samuel encontrou, ele não havia encontrado o nome de nenhum dos donos daquela época. Ou do próprio Pascal.
Talvez se Goldberg estivesse com sua mente plena, ele teria notado todas as coisas estranhas daquela informação. Todas as contradições daquele lugar. O mero boato de que alguém havia morrido dentro desta casa se repetir em quase uma dezena de corretores deveria fazer qualquer um duvidar da qualidade daquela casa, mesmo que esta pessoa fosse pouco supersticiosa. A morte todos temem, e ela, a todos deseja.
Mas são só boatos… Ele pensava, enquanto adentrava cada vez mais nos corredores do casarão. Esta palavra combina muito com aquele lugar, pois a sensação era do espaço interno ser maior que o externo.
O pé direito alto do corredor, com quase três metros, passava a sensação de que o teto estava a uma distância infinita, e pela falta de luz do ambiente, o banqueiro não conseguia enxergar até onde ele ia. Observou e espremeu os olhos o máximo que podia, mas nada. Apenas um breu pleno.
Estranho… Pensou pela terceira vez. A casa estar com pouca iluminação era plausível, todas as lamparinas estavam apagadas e o espaço era tapado por várias paredes, a luz não entrava ali de forma fácil. No entanto, era meio dia. O sol estava pleno. A luminosidade do lado de fora era tanta há instantes atrás que Goldberg sentiu que sequer precisaria de uma lanterna. Veio sem ferramentas, apenas seu bloquinho de notas e um enorme desejo de ver aquele palácio em seus lugares mais íntimos… Mas seus desejos não iluminariam corredores escuros, nem fariam repentinamente surgir o bom senso.
Podia ter retornado enquanto a porta ainda estava aberta, pois quando se distanciou quase um metro da entrada, ela se fechou. Um vento repentino veio de lugar nenhum e fez a imaculada maçaneta bater com força.
Toda a casa se fez ranger com esta batida, como se estivesse se deliciando daquele momento.
Samuel apenas se perguntou de onde aquela ventania repentina havia vindo e acalmou-se pensando que eram apenas os ventos do outono… como se vendavais surgissem repentinamente dentro de casas abandonadas.
O homem apenas ignorou o fato da porta ter se fechado atrás dele, e continuou caminhando através do corredor escuro. Parou poucos passos depois, quando viu que preso a parede estava um enorme lençol branco e empoeirado. Ele estava obviamente tampando um quadro da poeira e Goldberg fez o que qualquer corretor faria.
Quando puxou o pano ele caiu diretamente para o chão e revelou uma pintura a óleo que representava uma mulher. O vermelho carmim em seu olhar combinava com seus cabelos, e seu sorriso leviano era como uma expressão de milhares de significados. Parada em pé e observando de cima quem quer que passasse no corredor, a pintura mostrava uma dama de alta classe, que vestia um longo vestido negro e com saiote extremamente justo. Atrás dela havia um cenário simples de cor chapada, um marrom levemente claro, expondo apenas um detalhe, que chamava talvez tanta atenção quanto a própria mulher de cabelos ruivos.
Atrás dela, posto sobre uma pequena mesa, havia um exuberante vaso com flores. O vaso era rudimentar e sinuoso, como as curvas de um violão, e em seu centro repousava uma pedra ígnea, como brasa, que o pintor daquele quadro de maneira brilhante pintou como se brilhasse. Posto no vaso, havia um buquê de flores roxas, que transbordava e adicionava uma cor vívida e animada sobre aquele quadro selvagem e de tons rubros.
— Linda… — murmurou sem perceber.
Olhar nos olhos daquela pintura era como encarar as chamas de uma fogueira. Aos poucos, o calor penetrou o banqueiro de formas desconfortantes, mas não ruins. Goldberg se sentiu então aquecido por ela, mas a sensação de repente esfriou.
Em sua nuca, seus pelos se enrijeceram com um repentino calafrio que sentiu. Pelo canto do olho ele enxergou, em meio ao breu do corredor, uma silhueta caminhar. Se virou no mesmo instante, para ver apenas a infinita e tenra escuridão.
— Senhor Pascal? — Gritou para as paredes, esperando que alguém o respondesse. — É o senhor que está aí?
Nada, nem o assovio do vento respondeu a ele. A poeira da casa parecia diferente, mais pesada e densa, e toda aquela falta de luz anormal começava a amedrontá-lo.
— Se houver alguém aí, deve sair imediatamente! — Ameaçou, por mais que fosse quem se sentia ameaçado naquele momento. — A casa está sendo avaliada para venda…
Deu passos hesitantes em direção da escuridão, os pelos de seu corpo ainda todos de pé e notava, com repulsa, a forma como seus dedos tremiam. Na última vez que eles haviam tremido daquela forma, Samuel estava com a mão doendo do tapa que havia dado em sua esposa. Uma dor recíproca, mas não semelhante. Enquanto um sentia a dor física, a outra sentia não somente isso, como também a quebra absoluta de confiança dentro de uma relação.
Suas mãos tremeram tanto naquele dia, que sua única vontade foi a de correr da sua própria casa. Para longe. Distante o suficiente para que até mesmo nenhuma das divindades que o ouviam pudesse acompanhá-lo.
Covarde… Disse para si mesmo, enquanto apertava as próprias mãos. Do que tem medo? De um vulto e um lugar escuro?
Num ímpeto desumano, Goldberg começou a caminhar pelo corredor escuro, ignorando todas as sensações ruins que sentia. Atravessou todos os outros quadros cobertos por lençóis e apenas chegou ao final de tudo aquilo, se vendo diante de uma curva. Viu então o dono da tal silhueta que ele havia visto momentos antes.
Uma enorme ratazana observava Samuel. Ela atravessou correndo por entre suas pernas durante seu momento de confusão com a presença do animal, e sumiu em meio a escuridão da casa.
— Era só um rato… — Disse, suspirando aliviado. O homem não sabia diferenciar um rato de uma ratazana. No entanto, sabia ouvir, e ouviu o som alto de talheres batendo entre si. O típico tilintar de uma gaveta se mexendo. — Deve haver uma infestação na casa…
Caminhou na direção daquele som, retornando alguns passos daquele mesmo corredor de onde estava. Não passou em frente de nenhum dos quadros cobertos por panos e viu eles de relance. Haviam quatro deles, além do já descoberto quadro da mulher de cabelos ruivos. A porta de entrada também estava em seu campo de visão, e sequer passou por sua cabeça sair daquela casa naquele momento.
Algo que deve ser dito, no entanto, era que por mais que Samuel não desejasse sair daquela casa, a sensação ruim em sua nuca ainda se mantinha. Ainda estava arrepiado em lugares que não gostaria de admitir, com um calafrio cadavérico lhe atravessando o estômago, as entranhas e tudo além disso.
Ainda assim, de alguma forma, ainda estava em êxtase pelo fato de estar lá dentro. A casa era, apesar de abandonada, belíssima. Rústica era o menor dos elogios a se dar pelo pouco que havia visto dela, ele pensava.
Ele não havia enxergado a poeira, no entanto, os rodapés de madeira trincados e inchados, ou mesmo as eventuais manchas de mofo nos cantos do teto. Cego e em um delírio divergente, se sentia, como já foi dito, em êxtase. Estar ali era como se perder em uma sensação tão boa, que não se notava que ela havia nascido de algo ruim. Uma felicidade artificial e manipulada. Goldberg apenas não notava isso… ou se recusava a notar.
Esses passos que ele retornou no corredor, em direção ao barulho que havia ouvido, fez ele se encaminhar para a cozinha. Um espaço enorme, capaz de aguentar um mutirão de pessoas, por mais que não possuísse qualquer mesa para este mutirão. Era evidente o quão antiga a casa era, ao se notar que não havia aparelhos elétricos naquele lugar. Goldberg notou de imediato a falta de geladeiras, aparelho de micro-ondas, qualquer coisa à base de eletricidade. Entrar ali era como viajar para o passado.
No entanto, havia armários, duas dezenas deles para ser preciso. Todos em perfeito estado, apesar do restante da casa, estando apenas empoeirados pela falta de uso. Estavam postos no chão, sob os balcões de mármore, e acima do chão, alguns passos acima da cintura do banqueiro. Haviam estantes com portas de vidro, suportes na parede com facas de diferentes tamanhos para cortes pequenos ou grandes, uma cozinha exemplar e completa, apesar da falta dos aparelhos elétricos.
Se bem que cabe alguns aqui, só vai ser necessário comprá-los, pode se pôr ali uma geladeira, ou mesmo um micro-ondas daquele lado… talvez uma cafeteira novinha…
Em meio aos seus delírios, ouviu mais uma vez a gaveta tilintar. Estava certo quando pensou ter ouvido os sons vindo deste lugar e a passos hesitantes… Por que estou hesitando?... Caminhou em direção a uma das gavetas da cozinha.
A cada passo, aquela sensação horrível de antes parecia piorar. Lentamente, o arrepio em sua nuca se tornava um toque, como uma áspera mão se arrastando por sua pele. Logo, esta mão o agarrou e pressionou de forma excruciante. Uma pontada atravessava seu coração a cada instante que se aproximava daquela gaveta. No entanto, Goldberg não deixou de se aproximar. Emparelhada com esta sensação ruim, ele se sentia embriagado com o fato de estar lá dentro, com aquela cozinha histórica perfeitamente preservada, com o quadro que havia visto no corredor, e com a possível beleza dos outros quatro. Estava em deleite com as belezas daquela casa, temendo-as ao mesmo tempo.
Tamanha confusão o tornava cego, ao ponto de deixar de perceber os reais perigos daquele lugar. Perigos que iam além de um mofo ou um pedaço de madeira trincado.
Finalmente era capaz de abrir aquela gaveta, e assim tentou fazer. Estava emperrada — o indeterminado tempo em que aquela casa estava abandonada começava a cobrar de seus móveis. Mas Goldberg havia notado que aqueles armários pareciam em perfeito estado. Será que tem algo bloqueando?
Puxou com mais força, ouvindo o tilintar de metal vindo de dentro da gaveta, mas ela ainda não havia desistido.
— Vamos… me facilita a vida — Disse, tentando uma segunda vez. No instante que puxou, foi como se a gaveta instantaneamente retornasse ao lugar, por uma outra força. Algo puxava aquele móvel, tanto quanto Goldberg. Porém, o banqueiro não parecia notar isso. Puxou uma terceira, quarta e quinta vez, não notando a poeira que levantava com toda essa agitação, o barulho que fazia, ou o quão exagerado e louco aparentava apoiando os próprios pés sobre a pia para puxar a gaveta com ainda mais força. — Vamos! — Disse, entre dentes e músculos velhos demais, que lhe cobravam por essa façanha anormal. Foi surpreendente, para Samuel ao menos, quando todas as suas juntas estalaram ao mesmo tempo. Não foi um estalo satisfatório, do tipo que se faz com os dedos. Foi como se todos os seus ossos se separassem, de maneira dolorosa.
A aflição foi tremenda e de imediato ele caiu no chão. Gritou, mas logo em sequência calou todos os seus gemidos. Marica… Gemeu. Sua marica… Se levantou, com as costas ainda travadas. Esperneava, mas lutava para se manter em silêncio. Sentia todas aquelas dores e gritava para si mesmo que não era nada.
Faça seu trabalho… Pensou, entre dores e medos. — Faz a porra do seu trabalho…! — Gritou, sentindo cada nervo de seu corpo implorando para que parasse e se afastasse daquela gaveta. Por que sentia tantas dores? Havia apenas caído. Estava já tão velho a esse ponto? Não, tinha apenas 46 anos … mas comia todos os dias colheradas de açúcar. Tomava tantos copos de café por dia, que perdia a conta. Comia além do que devia de comidas gordurosas e não saudáveis.
Será que o preço de todas essas mordomias e vícios estavam lhe batendo a porta? Não… pode ser isso… não agora…
Apesar de todas as dores, delírios… apesar de tudo isto, Goldberg abriu a gaveta da cozinha. Como que por pirraça, ela, quando ele se levantou, estava entreaberta. Não travou, nem hesitou, no instante que o banqueiro a abriu, rindo de todo o sofrimento do homem gordo e não saudável.
Ele apenas aceitou com raiva a derrota. Todas as dores em seu corpo gritavam para ele largar aquilo tudo. Para sair dali e correr em direção a qualquer lugar, e estava quase cedendo a isso, até o momento que viu um brilho dourado sair de dentro da tal gaveta.
Seus olhos pousaram nos talheres da casa, dezenas de facas, garfos e colheres, para todas as ocasiões que se pode imaginar, todas numa cor prateada e límpida. Porém, separado desses, havia algo ainda melhor, que brilhava e recendia com um glamour descomunal, digno desse palácio! Goldberg agarrou uma colher deste amontoado e viu o seu rosto sendo refletido, numa cor dourada, semelhante a de seu nome. Eram talheres de ouro.
Sabia disso, pois aquela colher dourada e brilhante era mais pesada que a própria colher de prata e facilmente se amassou quando a mordeu na ponta. Olhava para ambas com deleite. Pensar que raridades como aquela estavam ali… em perfeito estado… e brilhando ainda…
Eram peças antigas, obviamente. Goldberg não podia mensurar de quando exatamente, mas os talheres eram feitos de forma rústica, com riscos e linhas vistos hoje como antiquados para uma máquina se produzir. Tantos talheres de prata e ouro, produzidos para apenas uma casa… Quem morava aqui?
Essas dúvidas quicavam e voavam em sua cabeça, de maneira leve, enquanto ele olhava para a gaveta. Contava as facas, garfos e colheres e calculava em sua mente… Se a onça do ouro está custando 35 doláres, não está custando muito aqui, mas podemos revender pro exterior… Pouco se importando com as dores que gritavam em seu corpo, os itens daquela casa eram mais importante, por mais que não posso tê-los.
Foi em meio a dores ignoradas e delírios materiais, que Samuel ouviu, vindo de trás dele, um ranger de madeira, pesado e longo, que definitivamente não havia sido feito pelo vento ou por um rato.
Ele se virou de imediato, da mesma forma como quando ouviu a gaveta da cozinha tilintar. Viu, do corredor onde havia vindo, uma silhueta. Ela não era pequena como era a da ratazana. Tinha forma humana, com uma cintura fina demais para ser saudável e um cabelo extremamente longo. O banqueiro não podia ver seu rosto e assim que seus olhos pousaram sobre ela, não pôde evitar sentir todas as suas dores piorarem.
Alguém estava parado ali, observando o homem, em silêncio. Ele não sabia a quanto tempo, se ela havia acabado de chegar ou não. Sentia apenas que havia algo errado.
— Olá? — Perguntou, por mais que sua frase não fosse de fato uma pergunta, soando como um cordeiro, diante de um gigantesco lobo. Estava prestes a adicionar que aquela pessoa não deveria estar ali. Pensou nisso e sibilou essa frase em sua língua. Porém, antes que qualquer palavra fosse proferida, o altíssimo som de madeira se arrastando e um baque altíssimo fez Samuel se virar e olhar para atrás.
As suas costas, uma a uma, todas as gavetas da cozinha se abriam, aparentemente sozinhas. O estrondo de cada abertura fez ele cambalear e dar passos para trás. Nada saia de dentro delas, era impossível algo natural estar fazendo aquilo. Era um momento de terror, sufocante e delirante. Por mil infernos!
Deu tantos passos para trás que quando se deu conta, já estava diante da silhueta de momentos antes. Naquele momento, não sabia definir com exatidão o que o transtornava mais. Se era aquela repentina explosão e abertura dos móveis da cozinha, ou se era o fato de mesmo frente a frente com aquela silhueta, ainda não era capaz de ver seu rosto com facilidade.
Sentia apenas um cheiro repugnante, que fez suas narinas se fecharem de imediato. Porém, já era tarde. Seus pulmões pareciam se intoxicar com aquela ínfima quantidade de ar que inalou, como respirar o fundo de um rio sujo e mórbido. Um gosto adocicado e entorpecente pareceu se misturar a tudo isso. A estranheza parecia tomar forma e gritar a seus nervos receptores que havia algo de errado entrando em seu sistema, inundando cada centímetro de seu corpo. Uma praga, que fazia seus olhos saltarem da órbita e arderem como se estivessem sendo fervidos.
Ainda impregnado por tudo isso, ela falou:
— Você não deveria estar aqui…
Era uma voz enjoativamente doce e embriagada, como afogada por um intenso e profundo rio doce. De maneira lenta, a silhueta deu um passo. Samuel, em resposta, retrocedeu outro, não ficando em dúvida que era melhor se aproximar das gavetas escancaradas do que daquela silhueta amedrontadora. Seu rosto surgiu, sendo uma vista que o causou tonturas e calafrios.
A silhueta era de uma mulher e partes do seu rosto pálido estavam tapadas por seu cabelo longo e vermelho, encharcado como se tivesse sido mergulhado por horas a fio. Vestia um vestido longo e branco, de uma seda cara, mas que estava completamente arruinado por barro, manchas de bolor e com furos em vários lugares. Samuel via com nitidez apenas uma coisa. Um de seus olhos era completamente iluminado pela luz do lado de fora, e o marcante vermelho carmim daquele quadro de instantes antes surgiu em sua memória.
Aquela era a mulher do quadro no corredor, no entanto, não era uma imagem de triunfo, bonita, ou quente. Era fria, mórbida e ameaçadora. Olhar para aquilo era encarar a ruína do que um dia foi a mulher naquela pintura. Seu cabelo desbotado de quaisquer cores quentes, apenas o frio e pálido vermelho ensopado.
— Essa casa não é sua… Ela continuou a dizer. O banqueiro cambaleava cada vez mais. Estar diante daquilo era entorpecedor em sentidos que ele não era capaz de compreender. Evitava respirar, pois aquele cheiro horroroso ainda estava no ar. Se esforçava para andar para trás, pois até seus músculos sentiam o terror em seu sangue misturado com à intoxicante presença daquela figura encharcada. Desconfiava de que apenas o instinto de se esconder e fugir o movia naquele momento.
O medo que sentia naquele momento formava um bolo em seu estômago, que se misturava a todas as sensações ruins que sentia diante daquela mulher encharcada. Suava frio, enquanto seus olhos começavam a ficar marejados. Tantas sensações ruins em um momento tão desesperador, e ainda assim, Goldberg não podia deixar de sentir o êxtase de estar ali dentro daquela casa. Podia morrer em paz ali mesmo… Morrer?
E se eu morrer aqui?
Por que eu sinto que posso morrer?
Eu vou morrer…
Com toda certeza vou morrer…!
Essa mulher vai me matar!
Eu vou morrer dentro desse palácio?
Que coisa incrível!
Seus pensamentos dilaceravam sua cabeça, conforme a sensação mórbida surgia e seu o afinco positivo a rebatia. Foi em meio a tudo isso que, desesperado, Samuel fez algo que jamais achou que faria em qualquer situação. Era ilógico, mas do que adiantaria lógica em um momento tão maravilhoso como aquele? Estava dentro da casa, prestes a morrer para uma mulher que havia visto dentro de uma pintura.
Sem hesitação alguma e com todo o terror que seu corpo sentia, juntou a palma das mãos com força e começou a rezar. Que algum deus me ouça!
— Não existe Deus aqui dentro desta casa… — A mulher ruiva falou com sua voz mórbida e doce como um rio inquieto. — Apenas o Diabo…
Havia uma falta de exagero em sua frase, como se fosse um fato indiscutível. Disse aquilo de maneira fria, lenta, enquanto ainda caminhava em direção ao banqueiro. O homem sequer tinha mais forças para andar para trás. De alguma forma, a presença e a aproximação daquela mulher fazia sua garganta ser preenchida com algo, como se constantemente tentasse puxar por ar, mas nada chegasse. Algo impedia a passagem de sua traquéia, mas o que?
Tropeçou para longe dali, e então correu em direção a porta de entrada. Pelo corredor por onde havia chegado instantes antes, ele esbarrou nas paredes e caiu várias vezes. Sentia sua consciência se esvaindo e a fria e úmida presença da mulher de cabelos vermelhos em seu encalço. A porta de entrada estava em seu campo de visão, assim como o quadro da própria entidade que o seguia. Mais do que nunca, ele sentiu aquele olhar superior sobre ele e todo o peso que aquilo colocava sobre seus ombros.
Num último ímpeto, ele se levantou e avançou em direção a saída. Ainda não respirava, seus pulmões estavam preenchidos por toda aquela sensação fria e mórbida, úmida e densa. Doce, porém amarga.
Quando finalmente estava diante da porta, se adiantou para agarrar a maçaneta de prata. Notou de imediato, com o toque de sua mão e com a pouca luz que adentrava o ambiente, que pelo lado de dentro, a maçaneta estava enferrujada e a madeira estava quebrada em várias partes, além de inchada e manchada. Horrenda de se ver. Imperfeita demais para se consertar.
Tentou abri-la várias vezes, porém nada acontecia. Não havia trancado a porta quando entrou, então como? Tentou puxar, empurrar, implorar, mas nada movia aquela porta de madeira em perfeito estado…
ELA NÃO ESTÁ EM PERFEITO ESTADO SEU IMBECIL! Disse a si mesmo em pensamento. Tentou gritar isso, mas a voz parecia abafada por água. Até seus pensamentos estavam abafados, por mais que sua realidade gritasse para ele fazer o contrário, Goldberg ainda amava a casa.
Suplicando por forças que não possuía, ele apenas começou a bater na porta. A cada baque, o espaço em seu peito era preenchido por mais “água”. A sensação era exatamente essa, por mais que fosse diferente. Pesado… Denso… Doce… Não que Samuel já tenha se afogado alguma vez na vida, mas ali parecia a primeira vez, e isso estava acontecendo em terra firme, num imóvel abandonado na upper east side. Não havia água perto dele, apenas aquela mulher encharcada. Ainda assim… como?
Bateu mais na porta enquanto essas dúvidas o rodeavam, e uma outra vez. A saída não cedia, e a presença da mulher ruiva parecia cada vez mais próxima. Se virou em desespero, porém nada viu. A escuridão do corredor ainda estava ali e nada ele era capaz de enxergar por aquele véu. Porém, sabia que ela estava ali, sentia e pressentia o pior.
Socava e chutava a porta, mas nada, nenhum sinal de salvação. Sua prece não havia sido atendida, aquela mulher estava correta, apenas o Diabo existia dentro daquela casa… e é ela! Afirmou isso, com raiva. No entanto, lhe faltavam forças para expor essa raiva, enxuta-la para fora. Não havia espaço para nada além daquela água que entrava em seus pulmões.
A quanto tempo tentava respirar? dois minutos? três? cinco?... Parecem horas… mas não são. Ou talvez fossem. Samuel não sabia ao certo, mas compreendia o quão próximo estava de seu fim. Sua visão, ainda mais turva e as pálpebras cada vez mais pesadas, lhe mostravam o cansaço que seu corpo sentia. Seu peito não se movia, por mais que tentasse muito. Sentia um movimento em seu estômago semelhante a um excesso de líquido, mas não havia tomado nada. Nem de manhã. Estava sem café… morreria sem ter tomado uma única xícara de café no seu último dia. Também não via sua esposa desde que havia acordado de manhã. O que ele não faria por uma colher de açúcar naquele momento. Já que vou morrer, do que importa? Eu iria querer um copo de uísque.
Sim, uma bebida bem quente para entrar em seu sistema para aliviá-lo daquele frio que sentia. Seus ombros e cabeça sofriam uma pressão infinita, e seus ouvidos estavam gélidos, como se expostos a uma ventania fria de inverno. Tudo zunia, a dor era intensa, por mais que não fosse a dor comum de uma pancada ou um corte. É pior…
Até mesmo seus ouvidos pareciam entupidos, como se estivessem cheios de água. Ouviu de maneira abafada as últimas batidas que deu na porta da casa. Caiu de joelhos e pouco ouviu do tombo. Olhava para a porta, na esperança de que algo misteriosamente o tirasse dali. Sentia o cheiro de mato e o gosto de água de rio em sua boca. Não havia outra maneira de Samuel se descrever, estava se afogando.
Tudo parecia distante e cada vez mais escuro. Ouviu passos, abafados por seus ouvidos entupidos, e só podia pensar que era a mulher por detrás dele. Ouviu uma voz, tendo a certeza de que era a mesma mulher falando com ele. Quando então viu uma batida abafada na porta. Devo estar batendo nela sem perceber. Mas não era ele. Suas mãos estavam no chão, largadas, pesadas e enrugadas. Alguém tentava abrir a porta ao supetão, e Samuel não podia ouvir isso.
Seus olhos apenas se fecharam, enquanto o último pingo de consciência lhe abandonava a mente.