Diários de uma Apotecária Japonesa

Tradução: Noelle Tokito

Revisão: Kessel


Volume 1

Capítulo 29: Mel (Parte 3)

— Uma carta da concubina Gyokuyou?

— Sim. Disseram-me para entregá-la pessoalmente.

— Receio que a senhora Ah-Duo esteja tomando chá neste momento... — Fengming, a rechonchuda chefe das damas de companhia de Ah-Duo, olhou para Maomao com um ar de desculpas.

Maomao abriu a pequena caixa de madeira que carregava. Normalmente, ela poderia conter apenas um bilhete, mas desta vez continha um pequeno frasco com uma única flor vermelha em forma de trombeta. Um aroma familiar e doce emanava dele. Maomao viu Fengming estremecer; devia ter reconhecido a flor.

“Então eu estava certa?”, pensou Maomao, deslizando o frasco para o lado e revelando um pedaço de papel com uma lista de palavras específicas que suspeitava que Fengming conhecia muito bem.

— Gostaria de falar com você, se me permite, senhora Fengming — disse Maomao.

— Muito bem — respondeu Fengming.

“Gosto das pessoas perspicazes”, pensou Maomao. “Facilitam muito as coisas.” 

Fengming, com o rosto tenso, conduziu Maomao até o Pavilhão Granada.

Os aposentos pessoais de Fengming seguiam um plano semelhante ao de Hongniang, mas tudo o que possuía estava amontoado em um canto. Parecia que ela já havia feito as malas.

“Sim. Isso faz sentido”, refletiu Maomao.

Maomao e Fengming sentaram-se frente a frente em uma mesa redonda. Fengming serviu chá de gengibre quente, e uma caixa sobre a mesa continha pães duros. Eles foram generosamente cobertos com mel de frutas.

— Então, qual é o assunto? — perguntou Fengming. — Terminamos de limpar, se é por isso que você veio. — A sua voz era suave, mas tinha um tom investigativo. Ela sabia por que Maomao tinha vindo, mas não seria ela quem iniciaria a conversa.

— Quando você vai se mudar, se posso perguntar? — disse Maomao, indicando os pertences no canto.

— Você é muito perspicaz. — A voz de Fengming imediatamente esfriou. 

A “limpeza de primavera” havia sido apenas um pretexto. Para que uma nova concubina pudesse ocupar o lugar a tempo das saudações formais de Ano Novo, Ah-Duo teria que deixar o Pavilhão Granada. Concubinas que não podiam ou não queriam ter filhos não tinham lugar no palácio interno. Nem mesmo se fossem companheiras do Imperador há muitos anos. Ainda mais se não tivessem um apoiador poderoso na corte garantindo seu status, como era o caso de Ah-Duo.

Até aquele ponto, o fato de Ah-Duo ser irmã de leite do monarca, um vínculo mais próximo do que com os próprios pais biológicos, a protegia. Talvez, se ao menos o príncipe que ela gerara tivesse sobrevivido, ela pudesse ter mantido sua posição.

“Acho que entendo ela”, pensou Maomao. A concubina Ah-Duo possuía a beleza elegante de um jovem; mal havia um traço de feminilidade nela. Se uma mulher pudesse se tornar eunuco, talvez se parecesse com Ah-Duo. Maomao detestava basear suas conclusões em suposições, mas quando algo era um fato óbvio, às vezes era tudo o que se podia fazer.

— Concubina Ah-Duo não pode mais ter filhos, não é?

Fengming nada disse, mas seu silêncio era quase uma confirmação. Seu rosto se tornava cada vez mais severo.

— Algo aconteceu durante o parto, não foi? — provocou Maomao.

— Isso não tem nada a ver com você. — A dama de companhia de meia-idade estreitou os olhos. Não havia vestígio da mulher atenciosa e gentil que Maomao conhecera antes, apenas uma hostilidade profunda queimava em seu olhar.

— Na verdade, tem sim. O médico que assistiu ao parto é meu pai adotivo. — Maomao disse o fato de maneira desapegada. Fengming se levantou.

A equipe médica do palácio interno estava constantemente desfalcada, a ponto de até mesmo o charlatão que ocupava o cargo naquele momento conseguir manter-se no emprego. A razão era simples: um homem com aquele conhecimento único: uma habilidade médica bem desenvolvida, não precisava se tornar eunuco. Provavelmente foi fácil demais atribuir o trabalho ao seu velho socialmente inepto.

— O infortúnio da concubina Ah-Duo foi que o nascimento de seu filho coincidiu com o do irmão mais novo do Imperador. Pese os dois na balança desta corte, o parto de sua senhora claramente foi considerado o menos importante.

O bebê sobreviveu ao parto difícil, mas Ah-Duo perdeu o útero. Depois, a criança morreu jovem. Alguns especularam que o infante de Ah-Duo havia sido vítima da mesma maquiagem tóxica que matou o príncipe da concubina Lihua, mas Maomao pensava diferente. A mãe de um jovem príncipe, como Ah-Duo, jamais teria permitido o uso daquele pó mortal sob a supervisão de seu pai.

— Você se sente de alguma forma responsável pelo que aconteceu, senhora Fengming? Quando concubina Ah-Duo ficou indisposta após o parto, acredito que foi você quem cuidou do bebê em seu lugar...

— Bem — disse Fengming lentamente. — Você descobriu tudo, não é? Mesmo sendo filha do inútil charlatão que não pôde ajudar a senhora Ah-Duo.

— Sim. Mesmo assim. — A culpa na medicina não podia ser descartada com um mero encolher de ombros: algo que seu pai sempre dizia. Ele aceitaria prontamente insultos como “charlatão”.

— Você sabe que esse charlatão impediu sua senhora de usar pó facial com chumbo branco. E você era inteligente demais para ter dado à criança algo tão mortal. — Maomao abriu o pequeno frasco na caixa da carta. O mel brilhava dentro dele. Maomao colocou a flor vermelha do frasco na boca.

Trazia consigo a doçura do mel. Ela arrancou a flor, brincando com ela entre os dedos.

— Existem muitas variedades de plantas venenosas. Acônito e azaléia, por exemplo. E os venenos passam para o mel feito a partir delas também.

— Estou ciente disso.

— Eu imagino que sim. — Uma família de apicultores certamente poderia esperar compreender tais coisas. E se uma toxina pudesse causar envenenamento grave em um adulto, imagine o que faria a uma criança. — Mas você não percebeu que o mel poderia conter veneno que afetava apenas crianças.

Não era uma suposição. Era um fato. Era raro, mas existiam tais toxinas, agentes que eram venenosos apenas para crianças, com seus níveis mais baixos de resistência.

— Você provou e ficou bem, então presumiu que ele também ficaria. Mas aquilo que você deu ao menino para ajudá-lo a crescer fazia exatamente o contrário, e você nunca soube disso.

E então, o filho de Ah-Duo morreu. Causa da morte desconhecida.

Luomen, pai de Maomao e médico-chefe na época, foi responsabilizado por esse enorme fracasso, além dos problemas ocorridos durante o parto. Por isso, foi banido, e ainda punido com mutilação: removeram os ossos de um de seus joelhos.

— A última coisa que você queria era que sua senhora descobrisse, que a concubina Ah-Duo soubesse. — Descobrir que Fengming era a razão pela qual o único filho que sua senhora havia tido estava morto. — Então você tentou afastar a concubina Lishu do caminho.

Durante o reinado do Imperador anterior, Lishu era aparentemente bastante próxima de Ah-Duo, e dizia-se que Ah-Duo parecia ter grande afeto por ela. Seria possível que Ah-Duo permanecesse próxima à jovem esposa na esperança de que o Imperador não consumasse o relacionamento com ela?

Uma criança separada dos pais e uma mulher adulta que nunca poderia gerar filhos: uma espécie de simbiose surgiu entre elas. Mas, de repente, a concubina Ah-Duo deixou de receber Lishu. A jovem concubina tentava visitá-la repetidamente, mas cada vez Fengming a afastava. Então o antigo Imperador morreu, e a concubina Lishu fez votos.

— A concubina Lishu contou a você, não foi? Que o mel poderia ser venenoso. — E se Lishu tivesse continuado suas visitas frequentes, talvez tivesse eventualmente deixado escapar o fato para Ah-Duo. Ah-Duo era esperta o suficiente para que isso pudesse ser tudo o que precisava para juntar as peças. Algo que Fengming estava desesperada para evitar.

Após a morte do Imperador, no entanto, com Lishu segura em um convento, Fengming pensou que nunca mais veria a menina: até que ela reapareceu no palácio interno, ainda como uma concubina de alto escalão. E agora, uma ameaça para Ah-Duo. Ainda assim, a garota quase parecia fazer questão de ir visitar Ah-Duo, como uma criança ansiosa por sua mãe. Tão protegida era Lishu. Tão cega para o mundo ao seu redor. Assim, Fengming decidiu se livrar dela.

À sua frente, não havia nenhum traço da calma da atenciosa chefe das damas de companhia. O olhar de Fengming estava frio como gelo. — O que você quer?

— Nada — respondeu Maomao, embora sentisse um formigamento na nuca. A faca que haviam usado para cortar os pãezinhos mais cedo estava na prateleira atrás dela. Era apenas uma faca simples, mas mais do que suficiente para ameaçar a pequena Maomao. Estava facilmente ao alcance de Fengming.

— Qualquer coisa — aventurou Fengming, quase docemente.

— A senhora sabe muito bem que tal oferta é inútil.

Os lábios de Fengming se curvaram de forma vazia. Não chegava a ser um sorriso educado, mas havia algo profundo naquela expressão, o que seria?

— Diga-me... Você sabe o que é mais importante para a pessoa mais importante para você? — perguntou Fengming a Maomao, com um leve esboço de sorriso ainda no rosto. — Maomao balançou a cabeça. Ela não sabia o que era mais importante: pessoas ou coisas.

— Bem, eu tirei — disse Fengming. — Roubei a criança que ela prezava mais do que uma joia. — Desde o momento em que Fengming entrou a serviço de Ah-Duo, ela sabia que não serviria a mais ninguém em sua vida. A concubina possuía uma firmeza de vontade incomum em uma mulher e podia lançar o mesmo olhar do próprio herdeiro quando falava, e Fengming a respeitava profundamente. A concubina impressionou Fengming, que passara a vida inteira fazendo exatamente o que seus pais diziam, como um raio. Ela sorriu ao contar a história.

— A senhora Ah-Duo disse algo a mim, na época. Disse que seu filho só seguiu a vontade do céu. Que não era algo com que deveríamos nos perturbar. — Era impossível saber se uma criança sobreviveria até os sete anos. A menor doença poderia matá-la aparentemente na hora. — E ainda assim eu ouvia a senhora Ah-Duo chorar todas as noites. — Fengming olhou lentamente para o chão. Um tipo de gemido escapou de seus lábios. A implacável chefe das damas de companhia havia desaparecido. Em seu lugar havia apenas uma mulher tomada pelo arrependimento.

Como ela deve ter se sentido ao servir a concubina Ah-Duo durante todos esses dezesseis anos? Dedicara-se inteiramente à sua senhora, sem pensar em um cônjuge ou parceiro? Maomao não conseguia imaginar. Nem as emoções de Fengming, nem o que seria amar outra pessoa àquele ponto. Assim, realmente não sabia o que Fengming queria.

Fengming aceitaria o que Maomao estava prestes a propor? Sem dúvida, Jinshi havia sido informado do recente interesse de Maomao nos arquivos. Ela não achava que poderia esconder nada do eunuco que praticamente comandava o palácio interno. Conseguira manter a verdade para si no caso da Princesa Fuyou, mas não achava que poderia despistá-lo desta vez.

Nem queria.

Quando Jinshi soubesse o que Maomao tinha a dizer, mandaria prender Fengming. Ela certamente não escaparia da punição máxima, independentemente do que acontecesse ou de quem apelasse em seu favor. A verdade viria à tona após dezesseis anos. As coisas já haviam sido colocadas em movimento e, mesmo que Maomao desaparecesse ali, cedo ou tarde, Fengming seria descoberta. A chefe das damas de companhia era inteligente demais para não perceber isso.

Havia apenas uma coisa que Maomao poderia fazer por ela. Fengming não podia esperar uma redução de sua punição, nem a intercessão de Ah-Duo. Mas seus dois motivos podiam ser reduzidos a um: ela poderia continuar ocultando sua motivação de Ah-Duo.

Maomao sabia o quão terrível era o que estava dizendo, que aquilo equivalia a pedir a outra mulher que morresse. Mas era a única coisa que conseguia imaginar. Era a única coisa que uma jovem sem influência ou autoridade podia oferecer.

— O resultado será o mesmo. Mas se você puder aceitar isso...

Se Fengming pudesse aceitar, ela faria como Maomao instruíra.

“Tão cansada…”

Maomao voltou para o seu quarto no Pavilhão de Jade e desabou sobre sua dura cama. Suas roupas estavam encharcadas de suor, suor que jorrara no momento de maior tensão, exalando medo. Ela queria tomar um banho.

Pensando que ao menos poderia se trocar, puxou suas vestes externas, revelando um grande pano enrolado do peito até o estômago. Ele segurava várias camadas de papel de óleo no lugar.

— Que bom que não precisei dele — disse para si mesma. Ser esfaqueada ainda teria doído.

Maomao retirou o papel de óleo e encontrou uma roupa limpa.

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Jinshi só podia contemplar o fato com espanto. Quem poderia imaginar que a tentativa de envenenamento da concubina Lishu terminaria com o suicídio da culpada?

Jinshi estava na área de estar do Pavilhão de Jade, descrevendo esse desfecho para uma reticente dama de companhia. Ele já havia informado a concubina Gyokuyou.

— E assim Fengming está morta, por sua própria mão — disse ele.

— Que sorte a nossa — respondeu a dama de companhia, sem demonstrar qualquer emoção especial.

Jinshi apoiou os cotovelos sobre a mesa. Gaoshun parecia querer protestar, mas Jinshi o ignorou. Que se dane as boas maneiras. — Tem certeza de que não sabe de nada sobre isso? — disse. Às vezes, ele tinha a sensação inescapável de que essa jovem estava tramando algo.

— Posso lhe dizer o que não sei: do que você está falando.

— Pelo que me disseram, você deixou Gaoshun bastante ocupado reunindo livros.

— Sim, tudo em vão, receio.

Ela soava tão indiferente que ele quase pensou que ela estivesse zombando dele. Por outro lado, o que mais seria novidade? Era possível que ela guardasse um certo ressentimento pelo seu trote do outro dia, ele tinha exagerado um pouco. Mas, em grande parte, aquilo parecia normal. Ela lhe lançava aquele olhar típico de quem observa algo imundo, indo além da grosseria para atingir uma pureza própria.

— O motivo, como você suspeitou, era ajudar a concubina Ah-Duo a manter seu lugar entre as quatro damas principais.

— É mesmo? — Maomao olhou para ele com total desinteresse.

— Lamento informar, mas a concubina Ah-Duo será, de fato, destituída de seu posto. Ela terá de deixar o palácio interno e viver no Palácio Sul.

— Retaliação pela tentativa de envenenamento? — perguntou Maomao. Ah, a gata finalmente começou a se interessar pelo novelo de lã.

— Não, a decisão já estava tomada. Determinação de Sua Majestade — disse Jinshi. O longo afeto do Imperador por Ah-Duo deve ter sido o que lhe permitiu permanecer em uma residência imperial, em vez de ser mandada de volta para sua família.

O súbito interesse de Maomao levou Jinshi a se empolgar. Ele se levantou e deu um passo à frente, momento em que ela se enrijeceu e recuou meio passo. Então ele estava certo; ela ainda não tinha superado suas brincadeiras. Naturalmente, Gaoshun os observava com exasperação.

Não adiantaria nada a Jinshi se Maomao ficasse demasiadamente tensa. Ele sentou-se novamente. A pequena serva baixou a cabeça e se preparou para sair, mas então parou. Um ramo de flores vermelhas em forma de trombeta decorava o cômodo.

— Hongniang as colocou aí mais cedo — informou Jinshi.

— De fato — disse Maomao. — Que explosão de flores magníficas. Ela pegou uma das flores, quebrou o caule e colocou na boca. Jinshi, perplexo, aproximou-se lentamente e fez o mesmo. 

— É doce.

— Sim. E venenosa.

Jinshi cuspiu o caule e cobriu a boca enquanto Gaoshun corria para buscar água.

— Não se preocupe — disse Maomao. — Não vai te matar.

Então a estranha garota lambeu os lábios, carregando um leve sorriso doce.


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