Volume 1

Capitulo 2: Despertar (III)

      Gal realizou a primeira investida. Tão veloz que mal consegui mostrar qualquer reação! Sempre treinamos o físico todos os dias na arena, mas nunca tinha o visto correr daquele jeito.  

      Gal se agachou ainda em movimento tentando agarrar minhas pernas, prestes a conseguir, pulei com todas as minhas forças para trás. Porém Gal não hesitou, ajeitou seu corpo e continuou correndo em linha reta. Merda! Fui ingênuo.  

      Desviar ou defender eram as únicas opções que me restavam, e minha melhor escolha... era derruba-lo!  

      Assim que meus dois pés tocaram no chão, Gal já estava relativamente próximo. Fingi uma entrada pela esquerda e ginguei meu corpo em seguida para a direita, preparando um chute de esquerda.  

      Poucos milímetros da colisão entre minha perna e Gal; ele sorriu, agachou-se novamente e em um instante, levantou minha perna para o ar. O mundo parecia girar para mim, mas de uma forma consideravelmente lenta, no entanto a queda foi dolorosa. 

      Gal pode ser rápido e forte, mas eu sou mais esperto! Sua mão esquerda estava vindo em direção a mim, um soco veloz e intimidador, eu sabia que se eu fosse acertado por aquilo... tudo estaria acabado com apenas três movimentos. 

      Seu corpo parecia uma pena em cima de mim, não sentia peso algum. Gal estava me subestimando, ele realmente acreditava que poderia me vencer com apenas um golpe! 

      Eu me sentia estranho, algo corria pelas minhas veias, eu nunca senti isso em toda a minha vida. De repente tudo o que passava pela minha visão, tocava em minha pele, entrava em meus ouvidos, era... lento. 

      Abismado com o que estava acontecendo apenas percebi quando ocorreu, Gal havia realizado seu soco, porém... não doeu nem um pouco. Observando minha reação Gal pulou para trás no mesmo instante. 

      Levantei, limpei o sangue de minha boca, e entrei em guarda mais uma vez. Ele também o fez, porém dessa vez era diferente, Gal não estava vindo para cima e ainda por cima ele parecia... feliz?  

      Lá estava ele, parado e me encarando. Se Galileu não iria atacar, eu iria! Abaixei meus braços e comecei a me aproximar sem nenhuma guarda, conseguia perceber o olhar confuso de Gaius no canto da arena, enquanto Gal não movia um musculo sequer. 

      Quando nos encontramos no alcance do chute um do outro, Gal não piscava, ele me encarava ferozmente diferente de alguns segundos atrás. Galileu golpeou com sua mão esquerda em direção a minha barriga, mas... ele era lento demais. Com a mão direita ele proferiu mais um golpe e novamente sem sucesso. 

      Conseguia desviar dos golpes de Galileu com facilidade, mas a cada desvio que eu realizava, mais eu me incomodava. Alguma coisa parecia estar invadindo meu corpo aos poucos, como um parasita.  

      Logo aquela sensação proliferou completamente, as vozes, a dor... a luz. Todos haviam voltado. Mas a sorte estava comigo. Gal socou meu abdômen da forma mais bruta que eu poderia imaginar, e aquela dor, ela foi gigante. Gigante o suficiente para me trazer lucidez de volta. 

      Mesmo que eu estivesse muito grato e aliviado, aquele soco doeu demais! Observando Gal cansado não consegui me segurar, realizei um gancho de esquerda em seu queixo.  

      Seu corpo levantou um pouco do chão e foi jogado a alguns centímetros de distância. Gal não se levantou; apenas esticou seus braços e pernas com seus olhos... esse combate não foi nada como eu esperava. Gaius se aproximou, agachou-se, pegou Gal pelos braços e se virou para mim com uma expressão de alívio. 

— Foram bons movimentos Wally, e você também Gal, vou levar ele pra descansar na ala médica, espere aqui. 

      Aquela expressão me confundiu ainda mais. Gaius saiu da arena carregando Gal pela saída no sentido contrário da entrada que usei. Por mais que eu não entenda por que ele ficaria aliviado com a derrota do próprio filho, uma pergunta mais importante martelava minha cabeça, através dos olhos amarelados de Gal eu vi meu reflexo, e meus olhos... estavam brilhando em amarelo igual nos meus sonhos.  

      Quase no mesmo momento que Gaius saiu, eu senti um arrepio estranho; virando-me, encontrei um homem muito alto, maior até que Gaius. Esse homem vinha devagar em minha direção, usando uma roupa escura com um grande capuz que cobria seu cabelo, escondendo sua face existia uma máscara escura com um grande símbolo roxo estampada nela, uma espécie de “X” em linhas paralelas dentro de um círculo fragmentado em quatro pedaços. 

— Está tudo bem Wally? — o mascarado perguntou.  

      Mesmo usando aquela máscara sua voz grossa soou pelos meus ouvidos perfeitamente. 

— Quem é você? 

— Sou Dominus, lorde da Ordem dos Caçadores. 

      Ouvi diversas histórias sobre os caçadores contadas por Gal, ele dizia que são o “escudo da humanidade”, ‘os verdadeiros defensores dos reinos', sem eles as criaturas nos afugentariam, dizimando a todos nós. 

— Ah... Posso te ajudar?  

— Wally, como você deve saber Híbridos são frequentemente enviados para os caçadores.  

— Ah, sim... eu sei sobre, o senhor...veio me buscar? 

— Sim Wally, seu caso é especial, por isso vim leva-lo a ilha pessoalmente. 

— Mas eu... 

— Não se preocupe você pode se despedir da sua família. Após isso iremos partir, não é mais seguro pra você aqui. 

— Não é mais seguro? 

— Existe uma criatura de caos no reino, sua família não será afetada, mas você tem que vir comigo hoje, vocês dois lev.... 

      Acompanhado do cessamento de fala de Dominus, um tremor estranho surgiu. Eu senti um aperto no peito seguido de uma dor gigantesca na cabeça, minhas forças pareciam estarem sendo drenadas.  

      O chão... era como se ele estivesse... pedindo socorro. Eu sentia como se um pedaço de carne estivesse se rasgando abaixo dos meus pés. Dominus perdeu sua postura completamente reta por um segundo e em seguida se virou com seus punhos completamente fechados.  

      Naquele exato momento, meus dedos começaram a se mover... mas não era eu os movendo. Escutei sussurros, diversos da mesma voz, tantos que foi impossível entender algum.  

      Dos meus dedos passou para minha mão, dela para o meu braço, eu estava perdendo o controle do meu próprio corpo! Meu punho direito se fechou aos poucos e meu braço dobrou com meu cotovelo sendo puxado para trás; era um soco!  

      Abri a boca para pedir ajuda, e ela simplesmente fechou sozinha. Enquanto firmava mais meu punho observando as costas de Dominus, senti meus lábios aos poucos abrindo um grande sorriso.  

      Que merda era essa?! O que estava acontecendo comigo?! Mas meu corpo não reage, tentava mexer minhas pernas, porém elas não se moviam, tentava gritar, mas obtinha sucesso.  

       Posteriormente a minhas tentativas fracassadas, os sussurros mudaram; se tornaram risadas. Muitas risadas em tons diferentes na minha cabeça, altas como um sino gigante, sem parar e aumentando o tom. Aos poucos meus olhos começaram a se encher de sangue.  

      Quando o sangue entupiu meus olhos, um grande brilho branco penetrou meus olhos; e então; escutei um estalar de dedos. Tudo simplesmente... parou. 

— Vocês dois acompanhem o Wally, Soltrone, não o perca de vista. 

      Meu corpo estava igual. Os olhos, meus braços, mãos e dedos estavam normais. Eu estava no controle. Não é possível, isso foi apenas um pesadelo acordado? O medo de Dominus me fez imaginar coisas pelo jeito.  

      Ao lado de Dominus surgiram dois homens vindo até mim. Um homem de olhos azuis claro e pupila preta, magro e meio alto com um rosto acabado, uma roupa mais justa sem armadura e cabelo escuro curto e ondulado. O outro é menor, possui um longo cabelo escuro, seus olhos são de cor vermelha e pupilas pretas como seu colega, pés descalços e uma calça escura, ele tem um manto branco, completamente sujo de... sangue?! Bem próximo a sua boca. Talvez seja de uma criatura... eu espero.  

      O mais baixo agarrou meu braço me levando com ele em direção a saída. Caminhando forçadamente enxerguei de relance parado na frente de Dominus, um homem baixo de pele escura com cabelos prateados. Por algum motivo, seu cabelo estava amarrado com um lenço vermelho, esse mesmo homem parece olhar para mim de canto com raiva. Será que nos conhecemos? Ele me é... familiar de alguma forma.  

      Quando menos percebi já estávamos fora dos muros do castelo. O homem mais baixo me soltou, enquanto o mais alto parecia focado em escutar alguma coisa. Não me sentia bem com isso, ir até a minha casa com esses dois por perto não me parecia uma boa ideia... eles eram mesmo caçadores?  

      Os dois não batiam muito com os contos de Gal, são meio; assustadores. Entretanto, Dominus me assusta ainda mais. Decidi então seguir o caminho pela estrada em direção a minha casa.  

      As pessoas nos encaravam muito, sem nem ao menos disfarçar um pouco, bem, minha companhia não ajudava. Um dos homens fedendo e banhado em sangue e o outro ficava cochichando com o vento, mesmo assim, o lorde dos caçadores mandou esses homens comigo. 

      Não importava para onde eu ia, um deles não me perdia de seu campo de visão, ele parecia até enfeitiçado, não desviava o olhar por um segundo se quer, esse devia ser o Soltrone. 

      Estava vendo minha casa, as janelas aparentavam fechadas, assim como a porta. Isso é estranho, ainda não escureceu em Bahamut. Eu me aproximei da porta, respirei fundo e a abri.  

      Dentro de casa não vi meus pais. De certa forma, senti um leve alívio seguido de uma tristeza. Olhei para minha direita e encontrei as lindas flores enfileiradas no balcão de pedra, tentei não recordar, mas não consegui, a imagem de minha mãe cantarolando tomou minha mente.  

      Foi quando a ficha caiu, eu provavelmente nunca mais a veria de novo. Não consegui segurar as lágrimas. Chorando, eu me virei e caminhei até Soltrone, rasguei um pedaço do seu grande manto branco na parte interna, enquanto escuto seu companheiro falando sozinho virado para a sua esquerda. Ele veio até mim, colocou uma mão em algum tipo de pequena bolsa, com um leve sorriso, estendeu a mão com um pincel pena brilhando em um tom azulado na ponta. 

— Não precisa de tinta é só escrever... leve o tempo que precisar. 

      Peguei a pena com a minha mão esquerda e enquanto Soltrone me encarava com um olhar ávido, enxuguei minhas lágrimas com meu braço direito.  

      Virei, puxei a cadeira rente a de meu pai e comecei a escrever: “mãe, pai, não irei voltar tão cedo para casa. Dominus, o Lorde dos Caçadores, se encontrou comigo na arena. Não se preocupem. Não deve existir um lugar mais seguro em Valíria do que a base dos caçadores, por favor, aguardem meu retorno. Wally”.  

      Fechei o pedaço me sentindo totalmente destruído; não conseguia encontrar palavras para uma melhor despedida. Eu o deixei no centro da mesa preso em baixo do vaso onde reside a flor favorita de minha mãe, e por uma última vez; respirei fundo seu aroma doce e aconchegante, porém, invés de me acalmar, eu chorei ainda mais. 

      Molhando a flor com minhas lágrimas salgadas. Minha vontade era de gritar, espernear sem parar, eu não queria ir embora... queria ver o sorriso dela de novo. De cabeça baixa, senti o impaciente Soltrone me puxando pelo ombro.  

      No fundo... eu sempre soube... eu não era um Genasis como meu pai. Eles tentaram esconder que minha mãe era uma Nullu; mas a sua pele mais escura e olhos negros me mostraram desde novo qual seria meu destino, cedo ou tarde, eu seria dos caçadores... e não algo grandioso como meu pai me contava. Eu fechei a porta com os olhos vermelhos e então, segui os homens de Dominus. 



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