Volume 2
Capítulo 8: boatos
“Boatos” são como o fogo alimentado por palha seca. Queimam por pouco tempo, tão breve quanto uma respiração, mas podem transformar uma floresta verdejante em cinzas.
Tudo começou com um homem, este ouviu de um amigo um ocorrido tenebroso. Uma briga em um bar próximo do cais no porto de Vento-Sul, onde houveram feridos e que um asa negra fora o responsável por isto.
Ao ouvir tamanho incidente, este homem contou ao irmão, que balançava os braços em horror e medo. “Um asa negra queimou a mão de um homem até os ossos”.
Este irmão levou a história até um comerciante, e contava-o com teor difamador. “Ele destruiu metade do bar, e machucou vários clientes.”
O comerciante, por sua vez, contou a seus colegas de caravana, outros como ele, e viajantes sem um destino em mente. “Parece que ele sequer pagou pelo que comeu.”
Em suas viagens, contaram aos humanos a história de uma coisa amedrontadora, destruidora de vidas e capaz de matar com o mero toque. Outros, no entanto, contaram aos demonios histórias de um garoto enrustido a Morpheus, que queria chamar atenção pela violência.
Palavras de medo e ódio se misturavam nessas cinzas do que havia sido a verdadeira história. O boato caminhou a terra mais rápido do que os homens eram capazes, e logo ali, na grande biblioteca da academia, um grupo de alunos discutiam este exato boato. Só não sabiam da existência de um telespectador.
Numa espécie de déjà vu amargo, Arnok sentiu-se como se tivesse quatorze anos mais uma vez, uma repetição deprimente de um ocorrido sem sentido aparente. Mas ali, naquele instante, ele faria tudo diferente.
Se virou, e caminhou para o primeiro andar da biblioteca, longe daquele grupo e de suas intrigas. Longe dos boatos e das cinzas do que havia feito de fato. As escadas rangem tanto quanto seus dentes, por razões completamente diferentes. Aquelas escadas carregaram o peso de muitas pessoas, ao longo de centenas, senão milhares, de anos. Arnok apenas tentava sanar seu próprio ódio, aliviar aquela mácula em seu âmago.
Eu não mudei nada não é… Ainda o mesmo fracote…
Passos pesados preenchiam o silêncio da biblioteca, enquanto aquela figura, enegrecida pelo enorme volume em suas costas, tentava futilmente fugir.
As estantes pareciam mais altas e ameaçadoras. As paredes, densas e lisas como rocha. Os olhares, afiados e temerosos como nunca foram. Até os livros, que lhe deram um conforto nos seus dias mais desequilibrados, pareciam pesos inúteis em sua mão.
Só podia caminhar para longe dali, daquelas pessoas, daquelas ruelas e calçadas lotadas de estudantes. Daqueles muros e torres altas que diferenciavam a academia do restante da cidade, dos cercados feitos para “proteger” as famílias nobres e seus membros.
Caminhou, até a opção de voar lhe parecer tentadora. Mas sua mente se recusava a obedecer ao corpo. Apenas seguia contra o fluxo de pessoas, que iam cada vez mais ao centro da cidade, e ia até as partes mais obscuras daquele enorme labirinto chamado de capital.
Viu seus moradores, humanos e demônios, com tão pouco que os farrapos em seus corpos eram luxo, e sentiu o cheiro de suas vielas - um odor repulsivo, mas que depois de tanto tempo passando por ali, já não o incomodava mais. Logo depois de passar por vários becos apertados onde suas asas roçavam nas paredes, estava de frente para um porta de madeira velha, cheia de ranhuras e carcomida nas pontas.
Chegou a hora… Pensou, empurrando a porta sem encostar na maçaneta. Ela se abriu em um pequeno corredor abafado e empoeirado, tinha um teto baixo que quase encostava em suas asas, e no fim dele uma escadaria que descendia numa escuridão amena.
A madeira rangia a seus pés e ratos corriam para longe conforme passava. No último degrau, teve de abaixar a cabeça para passar pelo batente de mais uma porta, esta que já estava aberta naquele momento. Teve então a rotineira visão do salão inferior.
Homens de variadas aparências estavam espalhados por ali, em seus grupos de costume ou isolados. Uns treinavam golpeando os vários sacos de pancada espalhados pelo lugar, enquanto outros conversavam sobre qualquer coisa. Várias dessas conversas paralelas se cessaram quando Arnok chegou ao meio do salão.
Ele ignorava a maioria dos presentes, de vez em quando retribuía os comprimentos daqueles que conhecia. Mas para alguns… a estes ele retribuía os olhares de ameaça.
Conhecia praticamente todos os homens naquele espaço, com as poucas exceções sendo caras novas, principiantes, que logo conheceriam o terror da arena.
Notando tudo isso, uma coisa ficou clara para Arnok. Ali estavam todas as pessoas que ele havia lutado nos últimos anos. Havia quebrado seus ossos, e eles os dele. Tinha golpeado-os até perderem a consciência mais de uma vez, e alguns ele havia marcado para sempre, com cicatrizes e queimaduras que os acompanhariam pelo resto de suas vidas.
Muitos ali o temiam, alguns o odiavam. Uns poucos, o respeitavam. Mas havia um que Arnok não conseguia dizer ao certo, e após passar pelo salão, estava de frente para sua porta, um brilho aos olhos comparado ao restante do lugar.
Uma porta envernizada, bem cuidada e com uma polida maçaneta dourada, que agarrou, girou e abriu. Num rangido alto que atravessou até o fundo da mente do asa negra, estava agora diante de um recinto completamente diferente do anterior.
Era um escritório com móveis de couro negro, o que combinava com a luz leviana que havia ali. As paredes de madeira eram escurecidas por um verniz brilhoso, que destacava a mesa no centro de todo o cômodo. Ali sentava um homem humano.
A pele de um negror quase mágico naquele ambiente, tinha o olhar focado nos vários papéis espalhados à sua frente. Lentamente ele levantou a cabeça, mostrando os olhos verdes e cristalinos para Arnok.
-E a que devo a visita do favorito da arena? - Serra começou a dizer, endireitando a postura e esperando a fala do seu associado.
- O de sempre… - Começou a dizer, enquanto se sentava em um dos sofás.
- É claro… - Serra respondeu, o sorriso de canto no seu rosto enquanto se abaixava e abria uma gaveta embutida em sua mesa. Tirou de lá um saco de couro que tilintava com o movimento. - Como eu podia ter me esquecido.
Colocou-o na mesa e esperou enquanto Arnok se levantava e olhava seu conteúdo. Ele remexeu algumas vezes, até estalar a própria língua.
- A última luta foi 60:40. - Reclamou, vendo o que ali no saco continha apenas moedas de prata.
- De fato. Mas o representante do lutador que você derrotou veio reclamar comigo pelos resultados tétricos que mostrou. - Suspirou, logo dando a Arnok um breve tratamento de silêncio.
O asa negra retribuiu com uma expressão de confusão.
- Quis uma compensação por ter matado o homem dele. - Serra salientou, seu tom ficando mais forte e irritado.
- Então esse é o problema?
- Claro que esse é o problema, Arnok. Sabe quanto dinheiro tive de dar àquele maldito? E salientei pra você, antes da luta começar, justamente isso…- abriu aspas com os dedos, enquanto dava uma olhar cansado para o asa negra a sua frente. -Não mate o lutador dessa vez.
- As apostas não compensaram? - Perguntou, como se dissesse o óbvio.
-Para sua sorte, sim. Mas independente disso, matá-lo não era lucrativo.
Um breve momento de silêncio ficou entre eles, a escuridão no cômodo salientando seus humores.
- Não vai acontecer de novo. - Disse Arnok, estalando seu dedo indicador. Serra olhou para aquilo, e apenas suspirou.
- Isto já não importa mais, já aconteceu. O que é importante é o agora. E agora Arnok, você tem uma luta. E uma muito especial diga-se de passagem.
- Infelizmente... - Arnok começou a dizer, se levantando e já saindo do cômodo. -Terei um compromisso hoje à noite, então com sua licença.
-Aposto que pode remarca-lo.
- Não, é amanhã que completa três anos da minha chegada. - Disse apressado, suas mãos já encostando na maçaneta.
- Espere… Poxa vida, como pude esquecer! - Expressou, a decepção consigo mesmo estampada em sua voz. - Mas então este é mais um motivo para ficar. Porquê não aceita como presente esta luta, neste dia de Ligo. Ela será contra um velho conhecido seu. O enfrentou a alguns meses atrás.
- Já lhe disse que não tenho temp…
- O representante de Irimum lhe deu a dádiva da revanche. - Deu uma pausa no que dizia, aproveitando o instante de hesitação que Arnok demonstrou ao ouvir aquele nome. - E desta vez, não o proíbo de matá-lo.
Dali onde Serra estava, não conseguia ver o rosto de Arnok. Mas podia sentir ao redor dele a fúria que tanto vislumbrava na arena. Tamanha pressão que fazia o arrependimento destruir o ego de qualquer inimigo diante daqueles enormes volumes negros.
- Onde está minha roupa? - Arnok perguntou, sua voz carregada de ódio tão puro quanto as chamas que queimavam em seu olhar.