Volume 2
Capítulo 17: Braço carmim
Por todas as razões plausíveis e não plausíveis, um mar inquieto, vermelho e viscoso se abria na mente de Lira. Uma areia fria e cortante a incomodava nos pés e a forçava a caminhar para dentro daquele sanguinolento e feroz, cheio de ondas altas e poderosas, adornadas num céu tempestuoso e carmim. Não existia calmaria naquele momento, apenas a fúria.
Mas fúria contra o quê? Pelo o quê?
Se tudo aquilo fosse por conta da luta contra o tal Odoro, soava um pouco injustificado. Talvez até um enorme exagero. Nem se todo o ocorrido com sua família acontecesse novamente, talvez tal mar não se inquietaria tanto.
Então por quê…
Tentava desviar os olhos de lá, mas tudo ao seu redor era vermelho. O céu, as areias, a água, seu cabelo, o sangue…
Entendia agora que sangrava, ferida em muitos lugares. Braço, rosto, pernas - a lista se tornaria ínfima se contássemos as partes ainda intactas - com uma dor imensurável tomando-lhe a mente, como se fosse uma constante lembrança.
O mar se agitava ainda mais, junto das dores de Lira e seus pensamentos confusos. Não conseguia evitar as lembranças. Sua mãe retornava, como uma moribunda de garganta partida e pulsos torcidos. Outras duas mulheres apareciam, todas transformadas em bonecas esfarrapadas e velhas, manchadas de sangue. O passo final que Lira dava para dentro do mar foi transformado em horror quando de dentro da água uma homem saiu, de barbas ruivas e ferimentos tão horrendos quanto os da primeira mulher.
Ele a abraçou e puxou-a para o fundo daquela viscosa água carmim.
Quando se deu por conta, não era capaz de respirar. Enxergava uma escuridão vermelha, que a rodeava como um manto sufocante e impenetrável. Nada poderia entrar ou sair dali.
O que tudo isso significava? Não era raiva, se fosse talvez ela teria algum controle sobre aquela situação. Alguma lógica.
Mas tudo isto faltava ali. Ainda que não pudesse respirar, sentiu um indescritível cheiro. Não… já o conhecia bem. Sentiu na pele, literalmente.
Aquele mar não estava inquieto pela raiva, nem as nostálgicas e assustadoras figuras a afogaram por mágoas ou vingança. Era mais simples, mas uma simplicidade temerosa.
— E isso te conforta? — Ouviu ressoar, naquela escuridão carmim. — Algum de vocês dois já viu algo parecido comigo? Não existe demônio capaz de se regenerar desta maneira, nem magia capaz de fazer o que eu faço.
"Vocês realmente estão se achando no controle.
"Então… você é a tal filha da historiadora?"
"Se a conforta saber o quão forte sou, entenda. Não sou um humano, nem um demônio. Sou Odoro."
O medo puro dominava aquele lugar, acima até mesmo de seus temores mais antigos. Tão denso e perigoso era esse medo, que percebê-lo lhe foi um baque, um golpe atrás da cabeça. Sufocante como um pedaço grosso de tecido, posto ao redor do seu próprio rosto. Desesperador, como estar em um quarto escuro e saber, com toda a certeza, que você não está sozinho.
Mais que temer a morte, mais que temer sua própria fraqueza, mais que temer os ocorridos daquela noite a tantos anos. Lira agora temia aquilo.
Lira temia Odoro.
Deu um grito tirado do fundo de seu interior, mas o mar silenciou-a e a água começou a afogá-la. Desesperada, sentia que seus pulmões encheram daquela água viscosa e vermelha, enquanto seu ar sumia aos poucos.
O carmim que preenchia sua visão, aos poucos, escureceu para o puro breu. Não conseguia determinar se tinha os olhos fechados, ou se apenas estava escuro demais. Mas ainda não havia parado de gritar, a água ainda entrava em seus pulmões.
Ainda ouvia a voz dele. Aquele escárnio puro e solene, com sua cicatriz viva no lugar do nariz.
O rosto da criatura ainda estava vivo em sua memória, quando abriu os olhos. Estava no meio de um grito esganiçado e se levantou num salto.
Primeiro sentiu uma dor aguda e irritante, que sequer compreendia da onde vinha. Quando se olhou, entendeu a confusão.
Seu corpo todo estava rodeado por faixas, todas limpas e, aparentemente, recém postas. Pernas, peito, cabeça. Seu braço, em especial, parecia ainda mais enfaixado que o restante. Se mover já era cansativo e doloroso, mas ele, em um caso extremo, até mover os dedos era um esforço impossível.
Mas como estava enfaixada daquela maneira?
A segunda coisa que notou, foi onde estava. Não mais estava jogada e largada do lado de fora da casa, sentindo a terra em suas feridas. Estava no sofá da casa, com os sinais de toda a luta de ontem. A breve ilusão e alívio que teve, de tudo aquilo ter sido algum tipo de pesadelo, não era mais plausível.
Mas como ela estava ali? Ela e Philip não haviam sido lançados por aquilo?
Espera, cadê o Philip?
Foi com essa dúvida que ela se virou, tentando encontrar seu mestre e descobrindo uma terceira coisa. Não estava sozinha.
Outras duas figuras, um rapaz e uma jovem, estavam ali com ela. Todos os presentes se encaravam, assustados e aturdidos, não sabendo ao certo o próximo passo.
— Quem são voc— Lira começou a dizer, mas o mero ato de falar era doloroso, e não bastasse isso, Lira tentou se levantar do sofá, suas pernas incapazes de aguentar o próprio peso e tamanhas dores. A jovem desconhecida correu para auxiliar Lira, evitando que ela caísse e a colocando de volta no sofá. Seu toque e olhares maternos eram reconfortantes, apesar de também nostalgicamente dolorosos.
— Você não pode se mover. — Ela disse, com Lira sentindo uma estranha familiaridade em seu rosto e voz. — Ainda tem que descansar.
Tentou retrucar e lutar contra aquela garota de pele pálida e cabelos - cada vez mais tinha certeza de já ter visto ela antes -, mas não tinha forças. Foi capaz apenas de trincar os dentes, abalada e fraca. Teve de respirar fundo algumas vezes antes de ser capaz de dizer algo.
— Quem… São vocês? — Foi a primeira pergunta que fez, olhando agora, com atenção para a dupla.
A garota tinha uma pele extremamente pálida, lembrando Lira dos anêmicos e doentes cuidados pela igreja na cidade. Diria que se parecia com uma boneca de porcelana, se não fosse por seu cabelo semelhante a fios de ouro e seu olhar afiado e maduro, apesar da aparência quase infantojuvenil. O rapaz ao seu lado era, por todas as definições, medíocre. Cabelos castanhos, físico de um jovem que se exercita tanto quanto come, pele morena. Nada chamaria a atenção de Lira, se não fosse pelo cabelo.
Eram visíveis como uma chama em meio a uma floresta escura, cabelos loiros e lisos. Completamente diferentes do que aparentava do castanho desbotado e meio desgrenhado.
Foi então que teve a certeza, já havia encontrado aqueles dois.
— Vocês são a dupla que esbarrei no centro. — Disse, cada palavra saindo como um sopro. — Por que estão aqui?
— Vieram aqui por minha causa… — Disse uma voz que Lira reconhecia com perfeição, vindo atrás dela. Se virou para encontrar seu mestre, parado próximo às escadas que ele não subia a tantos meses, encarando-a com certo desapego. Seu estado era talvez várias vezes pior que o de Lira, suas faixas enrolando partes inteiras do corpo - como seu peito e rosto.
No entanto ele estava de pé, firme e austero. Apesar da expressão abatida.
— Estávamos procurando seu mestre, como Philip disse… — O rapaz começou a dizer, sua voz causando uma forte presença em Lira. — E demos de cara com vocês dois no chão, noite passada. Eu e Melissa não conseguimos entender nada do que havia acontecido. A casa estava queimada em vários lugares e havia este cheiro estranho no ar… — Um simples comentário… um mero fato como aquele… um cheiro estranho fez Lira vacilar. O medo tomava-a novamente e sentia o suor frio escorrer, irritando suas queimaduras e feridas.
Sim, as feridas. Eles pareciam tão ruins e irresolutos noite passada. A morte aparentava a Lira estar tão próxima quanto o toque daquelas chamas amarelas. Talvez devesse sentir alívio por aquilo ser apenas uma dor insuportável, mas por que as faixas grossas em seu braço a inquietavam tanto? O que havia ali embaixo?
— Foi quando vi o estado de vocês dois… — A mulher pálida e de cabelos de ouro comentou, seu semblante aos poucos se abaixando e olhando para o chão. Chegou ao ponto de estar curvada em um ângulo reto, não olhando nem para Lira, nem para Philip. Mas suas palavras eram para ambos. — Queria ter feito mais, mas fui incapaz. Nunca vi nada parecido com o que vocês tinham…
Aquelas palavras foram o suficiente. Usando toda a força que tinha, ela arrancou as faixas em seu braço. A dor fazia seus dedos se fecharem, numa convulsão instintiva. Em dado momento, seu próprio consciente se recusava a olhar, mas lhe faltavam as forças até mesmo para desviar a cabeça.
A primeira coisa que notou foram as suas unhas. Lira não tinha exatamente o tempo para se importar em limpá-las, ou mantê-las podadas, mas ali… Elas faltavam. Carne viva, tão simples como soa. Seus dedos, a não mais calejada palma de sua mão, o pulso que muitas vezes se torceu por um pouso mal feito. Um braço perfeito, mas revestido na mais vermelha e grotesca carne viva, como se a própria pele se juntasse aos músculos.
Toda a extensão de seu braço estava desta forma. Uma aberração, tirada de um relato de historiadora. Adoraria dizer para si mesma que era uma piada de mal gosto, mas a casa estava queimada, haviam dois estranhos ao seu lado, Philip estava tão acabado quanto ela e nada - enfatizava para si mesma - é tão real quanto a ardida e dolorosa brisa que recaía sobre seu braço carmim.
— Eu sinto muito! — Enquanto Melissa mantinha a cabeça baixa num perdão puro por algo que não parecia ser culpa dela, a jovem discípula encarava o próprio braço em um misto de terror e realização.
Tudo seria diferente dali em diante.
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