Demon And Human Brasileira

Autor(a): The_Mask

Revisão: Hide


Volume 2

Capítulo 1: Memórias de sangue

Talvez fosse a saudade dos treinos que fazia com Philip a alguns anos, ou um desejo reprimido de se desafiar, mas Lira, naquela manhã anormalmente fria de verão, decidiu treinar na floresta. Tinha um leve sorriso no rosto enquanto sentia seus pés afundarem mata adentro. Uma sensação estranhamente familiar e nostálgica. 

Até o peso da mochila em suas costas lhe trazia lembranças, da primeira vez em que, junto de Philip, acamparam e caçaram ali. Não conseguiu evitar abrir um sorriso de canto ao perceber que já não tinha dificuldades em carregar aquele peso e apesar da manhã fria, pouco a sentia. Roupas grossas de couro cobriam seu corpo, junto às suas vestes de treino convencionais. 

Se sentia, naquele momento, estranhamente confortável. Ainda tinha a lembrança de que, da última vez, tudo estava contra ela. Porém agora, estava ali por conta própria e sem dificuldades. 

A caminhada já durava dez minutos quando encontrou a clareira. Derrubou a bolsa no chão e do lado direito, amarrada de um jeito improvisado, tinha uma bainha de couro escuro, com uma espada em seu interior. Era um florete de madeira, com pequenos pedaços de chumbo na lâmina para imitar o peso real do ferro. Philip havia presenteado Lira com aquela espada após o seu êxito em dominar algumas posturas.

A pegou, pouco após esse pensamento lhe surgir a mente, e desembainhou com um movimento longo pela direita, que logo se mesclou a uma postura à muito memorizada. Fechou os olhos, respirou fundo e soltou de uma vez. As pálpebras subiram, para revelar um olhar limpo de incertezas e sentimentos. O florete cortou o ar diversas vezes, sempre com uma força capaz de quebrar ossos. Seus pés, ágeis como o vento, mantinham-se firmes e criavam a base perfeita para golpes poderosos e precisos. Enquanto movia-se pela clareira, o silvo de sua lâmina parecia ressoar com o vento, com uma agilidade treinada e decorada era muito semelhante a um espetáculo.

Havia perdido a noção de há quanto tempo fazia aquilo. Ainda que sua respiração estivesse ofegante e o suor lhe escorresse as costas, não desacelerou em momento algum, ou sequer diminuiu sua precisão. Se houvesse alguém sobre a mira daquela espada, temeria por sua vida, ainda que ela carecesse de um gume afiado. 

Em um último movimento, realizou uma estocada de cima para baixo e parou. Por instantes não se moveu, apenas deixou que seu corpo e a espada respirassem. O próprio calor do seu corpo fazia surgir uma leve nuvem ao seu redor. 

A mente descansava, junto aos músculos tensos, e aos poucos sentia os pensamentos florescerem em seu interior mais uma vez. 

Olhou para o florete de treino em sua mão. As ranhuras na madeira a lembravam dos golpes que dirigia aos bonecos de treino no galpão. Viu os calos que sua mão tinha de tantas horas e dias de treinamento. Já não era mais a mesma menina daquele tempo. 

Muito se passou desde que chegou a clareira. O sol já banhava a cabeça de Lira, ainda arfando, e olhou para cima tentando calcular o horário naquele momento. 

Onze horas talvez… pensou, enquanto devolvia a espada para a bainha. Caminhou de volta até sua bolsa, com os músculos latejando de desconforto quando agachou para colocar o florete no lugar. Sua barriga roncou instantes depois. 

Aproveitou que já estava próxima da bolsa e procurou por um embrulho de papel. Se lembrava de ter separado algumas frutas de manhã, antes de sair da floresta. Encontrou-o no fundo da bolsa, próximo a um canivete velho e um rolo de linha de pesca. 

Olhou para aquelas 3 coisas no fundo da bolsa, e uma dúvida lhe surgiu a cabeça.

Há quanto tempo eu não pesco…? Pensou, enquanto tirava o fio de pesca e o canivete. 

Minutos depois tinha uma vara de pesca improvisada, feita de um graveto seco e retesado que encontrou, fio de pesca e uma mistura de frutas e outras coisas da terra, que serviriam de isca.

Caminhava floresta adentro, seguindo o som do afluente que desce a floresta. Um caminho que havia feito muitas vezes. Encontrou, não muito tempo depois, o pequeno lago que procurava. Um com numerosos afluentes ao redor, e regado por um afluente abaixo da terra. 

Algumas horas um tanto infrutíferas se passaram. Tinha em mãos, agora, dois peixes de rio e uma fome que lhe engolia o estômago. Armou uma pequena fogueira, ainda próxima ao rio, e enquanto as chamas ganhavam forças, usou o canivete para descamar e preparar os peixes. Os movimentos que realizava, leves e precisos, removiam as escamas com certa facilidade e riu ao pensar na dificuldade que tinha antes. Era Philip quem cuidava da preparação da comida naqueles momentos. Os anos fizeram bem para ela. Depois de tanto tempo, finalmente conseguia cozinhar alguma comida decente, mas ainda não a fazia tão bem quanto…

As mãos de Lira hesitaram. Uma tensão forte e repentina fez elas tremerem, enquanto se lembrava da pessoa que dormia no segundo andar de sua casa. 

Casa… Pensou, aos poucos voltando a tirar as escamas do peixe. Lá é minha casa agora…

O calor que sentiu de repente nas costas a tirou daqueles pensamentos. Olhou para trás e viu as chamas altas da fogueira, ardendo e tremeluzindo. Aquilo fez seu estômago se lembrar do porque estavam ali. 

Logo, tinha dois peixes sem escamas prestes a serem assados e presos a gravetos próximos à fogueira. Esperava paciente, enquanto abraçava as próprias pernas e observava o fogo. Ele a deixava inquieta.

Via nele um passado distante. Sentia aquele calor e não o relacionava ao fogo, mas sim a uma voz, cheia de ternura e de uma calma branda. Olhava aquele tremeluzir forte e rubro e via um homem alto, de barba e com cabelos grossos e avermelhados, como os seus. Abraçou os joelhos com ainda mais força quando viu o gotejar de sangue do peixe sobre o fogo. 

Os odores, o fogo, a cor e o calor. Sentia todos eles e tremia, não sabia dizer ao certo se era de medo, tristeza, ou dúvida. Aquelas sensações entravam cada vez mais fundo no seu inconsciente. Até que então a porta surgiu diante dela, no fundo de um quarto escuro e apertado. 

Um estalo forte surgiu de repente e Lira se sentiu sendo puxada de seu inconsciente para fora. Estava novamente na floresta, diante da fogueira e dos peixes, agora já assados. Sentia o calor do fogo e a fome que lhe amarrava o estômago, o couro aconchegante de suas roupas junto ao toque gélido do canivete em sua mão. 

Sentia tudo isso, e se perguntava se aquilo que havia no fundo da sua mente era tão real quanto o medo que sentia por ela. 

Tirou os peixes da fogueira antes que queimassem e finalmente almoçou, sentindo uma amarga nostalgia, sem saber ao certo o porquê.

O tempo passou, Lira tentou pescar mais alguns peixes mas não estava com tanta sorte. Treinou mais uma vez as posturas que Philip lhe ensinou, não com toda a força ou vontade que possuía mais cedo, mas ao menos lhe serviu de aquecimento. 

Sentia um cansaço enorme no corpo inteiro depois do treino. As pernas doíam e os calos em sua mão pesavam como chumbo. Pensou, então, em algum lugar que pudesse descansar. 

Estava ali apenas para um treino, e por escolha própria. Podia simplesmente voltar para sua casa e descansar por lá, e foi exatamente o que havia começado a fazer. No entanto, de pé e já com a bolsa nas costas, seus passos cessaram e Lira olhou para cima, para a copa das árvores.

Foi lá que eu dormi no primeiro dia… não foi. Seu olhar escorregou pela copa, descendo pelos galhos mais grossos e finalmente, chegando aos pés da árvore. Será que melhorei nisso também?

Tirou da bolsa a faca de osso e, hesitando, se aproximou da árvore. Engoliu em seco. Sentia os músculos relutantes em fazer aquilo, mas algo no fundo de Lira dizia a ela para continuar, que era mais do que capaz de conseguir. E foi o que fez.

Um processo lento, de usar a faca de osso como apoio e tentar manter o equilíbrio com a bolsa nas costas. Pensava estar a 20 metros de altura quando encontrou um galho grosso e seguro o suficiente para ela. Se acomodou com certa dificuldade depois disso. 

Usou a faca para pendurar a bolsa na árvore, enquanto tentava se recostar no tronco atrás dela. Se antes seus músculos já reclamavam pedindo por um descanso, agora clamavam como uma multidão em protesto. Respirou fundo várias vezes, sentindo o coração desacelerar e seu corpo, finalmente, relaxar.

Uma brisa de fim de tarde esvoaçava por entre os galhos e folhas da copa. Sentia-a mais do que nunca e, quase como um remédio natural, a cabeça começou a pesar pelo sono. Se acomodou mais uma vez no galho, prevenindo que talvez caísse dali de cima se dormisse. 

Piscava e demorava cada vez mais para abrir os olhos. Seu último vislumbre foi do laranja-carmesim no horizonte vespertino. Por de trás da pálpebra, ainda conseguia ver aquela cor sublime, mas logo ela escureceu.

Uma cor nefasta tomou conta. Um negro denso como piche e que sufocava quem estivesse lá dentro, e esse alguém era Lira. 

Não bastava a sensação arrepiante e sufocante daquele negrume, logo começou a ouvir um gotejar. Era lento e pesado. Sabia, no fundo do seu inconsciente, que aquilo não podia ser água. Era algo pior. 

O som se aproximava cada vez mais - era lento, mas chegaria em algum momento - e Lira sentiu um desespero lhe tomar conta. Tentou correr, mas suas pernas não saiam do lugar, como se uma força externa as prendesse. Aquele gotejar já estava tão próximo que já imaginava senti-lo na pele, quando se cessou. Esperou um longo e derradeiro minuto, mas nada…

Um puro silêncio… Pensou.

Sentia as roupas no corpo, a respiração dificultada por não conseguir se mover direito, graças a força externa, tentava olhar para si mesma, mas não tinha forças sequer para mover a cabeça. Um terror bestial a obrigou a se imaginar, não como a Lira que treinava há algumas horas como uma verdadeira esgrimista, que pegou a própria comida e escalou um pinheiro alto como se não fosse um grande desafio.

Se via criança, presa num lugar escuro e de puro silêncio.

Quebrando toda essa sensação uma luz surgiu diante dela, vindo de cima para baixo. Olhou para cima, com a cabeça ainda estando imóvel, e viu um filete de luz transpassando naquela imensidão negra. Ver aquilo fez seus sentidos voltarem aos poucos, quase como se Lira e aquele filete fossem um só, quanto mais seus sentidos voltavam, mais a abertura engrossava e se dispersava. 

Instantes depois, já não estava mais no lugar escuro.

Despertou daquele pesadelo e via a si mesma quase adulta, com uma bolsa presa ao seu lado. Teve de respirar fundo algumas vezes para ter certeza, mas tudo ali era real. Estava no agora,  3 anos após tudo o que havia acontecido.

Ouviu uma cigarra ao longe e quando procurou por ela por instinto, viu que já era noite e que o céu era o palco de um espetáculo. 

Eram muitos pontos brancos, vermelhos e até alguns azuis, de tantos tamanhos e até força luminosa variada. Não conseguia ver a lua de onde estava, então chutava que era por volta de meia noite. Mas ainda assim, não havia qualquer escuridão naquela imensidão noturna. E isso a apaziguou mais do que qualquer exercício, comida, ou vento de verão.

Foi então que, em meio a tantas luzes, viu distante um pequeno ponto luminoso distinto do resto. Era laranja e fraco como uma vela. A casa de Philip. 

Todas as janelas eram iluminadas pelas velas lá dentro, mas uma em específico não. Uma que não recebia a luz de uma vela há quase três anos. Sabia da pessoa que estava deitada naquele quarto e de seu estado precário e um sentimento de culpa a remoía por dentro enquanto a saudade se manifestava.

Uma terceira fonte de luz, no entanto, tirou sua atenção de casa. Viu de relance, não muito longe dali, algo que reluzia na cor laranja. Não muito depois, descobriu o que era. 

Um homem carregava uma lamparina e iluminava os arredores dele. Lira não conseguia ver seu rosto, nem entender a razão daquele homem estar ali. Ou seria melhor dizer, daqueles homens. Logo em seguida, um segundo apareceu. Carregava vários galhos secos Talvez para uma fogueira pensou. Mas uma fogueira onde?

Eles conversavam. Conseguia perceber isso graças ao silêncio da noite, mas eram apenas sussurros distantes dali. Se viraram e começaram a se mover. Lira por, apreensão e curiosidade, fez o mesmo.

Desprendeu rapidamente a bolsa da árvore e os seguiu, pulando de um galho grosso para o outro. Sempre visava as aterrissagens seguras, assim como Philip a ensinara, mas foi por conta disso que ela quase os perdeu. A luz da lamparina havia sumido de vista e já não via sinais deles. Estava para desistir, quando em meio ao silêncio daquela noite iluminada por estrelas, ouviu um pedido de silêncio, esperneando com toda a força. 

Pulou naquela direção, antes que fosse tarde. Foi então, que em meio aquela floresta iluminada apenas pelas estrelas, viu a luz de um acampamento. 



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