Volume 1
Capítulo 31: Misericórdia
Os dois se olhavam extremamente animados. Ambos ofegantes e suados, embora um sorriso de satisfação permanecesse em seus rostos.
Depois que Lira machucou Philip, eles largaram a luta com espadas e partiram para um treino corporal. O objetivo era praticamente o mesmo de antes, derrubar Philip.
Ela não progredia tão rápido quanto na esgrima. No entanto, se divertiu bem mais lutando contra ele usando as mãos nuas.
“Quer parar, Lira?” Philip perguntou. Um vapor tênue saiu de sua boca enquanto resmungava, amaldiçoando seu corpo em má forma.
“Por quê? Acha que não dá conta?” Ela perguntou ironicamente, embora estivesse suando mais que o próprio mestre.
“Não… Só quero ver como está sua mira. Pegue sua arma.” Ordenou Philip. Ela abriu um sorriso mais largo ainda.
Ambos foram em direção às suas respectivas bolsas, e enquanto Philip guardava os restos das espadas de madeiras e tirava algumas caixas menores dali de dentro, Lira sentou-se na grama fofa. Descansou enquanto esperava seu mestre.
Pegou o revólver personalizado e olhou para ele com certa nostalgia. Nem parecia que seu tempo com ele era apenas de um mero dia, parecia mais uma vida inteira.
Ainda não havia dado um nome à arma, e duvidava que o faria. No entanto, tinha certeza que aquele revólver a acompanharia pelo resto de sua vida.
“Lira, me entregue a arma.” Philip pediu, aproximando-se de sua discípula.
Ela o entregou para Philip e ele o manuseou com maestria. Prestou bastante atenção aos mínimos detalhes presentes na arma. Limpou o cabo com um pano seco e tirou a poeira ali presente.
Ele finalmente abriu o tambor da arma e a carregou com as munições, guardadas nas caixas menores de antes.
“Tome cuidado para onde aponta.” Disse, enquanto entregava a arma de volta para Lira. “Ela não tem cão, ou algum tipo de trava de segurança. Então se apertar o gatilho, verá o show de fogos acontecer.” Aquilo soou mais como um convite do que uma advertência, e Lira entendeu o que tinha de fazer.
Ela apontou para uma árvore distante dos dois e ficou na postura que pensava ser a correta. Foi corrigida no mesmo instante, e mais uma vez mirou na árvore, só que agora, devidamente pronta.
Quando disparou, sentiu todos os músculos do seu braço recuarem. Foi repentino e forte demais. A arma escapou por entre seus dedos e voou para longe. Logo em seguida, Lira sentiu uma dor aguda em sua mão.
“Aí! Meu dedo!” Reclamou, cerrando os dentes.
“Precisa segurar firme, Lira.” Philip comentou. Ele se virou para pegar a arma e tirou a sujeira que ficou nela por conta da queda. “O tranco de um revólver já é forte normalmente, o deste é ainda maior.”
“Não me diga!” Ironizou num tom irritado e incômodo. Tentava ao máximo diminuir a dor na mão e depois de um tempo, quando a dor já havia ido embora, decidiu olhar para como a árvore havia ficado depois de um disparo tão poderoso. Ela se virou e…
Não havia nenhum buraco de bala aparente.
“Deve ser um buraco pequeno!” Disse a si mesma enquanto se aproximava da árvore. Ao mesmo tempo, atrás dela, Philip tentava segurar o riso. Ela não havia acertado naquela árvore, nem a posterior.
Onde diabos aquele tiro foi parar?
Enquanto uma expressão de confusão surgia no rosto de Lira, um amplo sorriso abria-se no rosto de Philip vendo toda aquela situação.
“Vamos de novo.” Ele disse, e assim o fizeram.
Foram algumas horas disparando naquela mesma árvore, e bem devagar, Lira melhorava com sua precisão.
Sua mira aos poucos melhorou. Depois que disparou todo o tambor, acertando apenas um disparo de raspão na árvore, Philip a ensinou a como recarregá-lo.
Ela não errou mais nenhuma vez depois que se acostumou com o tranco da arma e sentiu-se extremamente orgulhosa quando enxergou a árvore toda ferida com os projéteis.
A partir daí, Philip a incentivou a disparar e recarregar cada vez mais rápido, e o tempo que ela levava para isso foi diminuindo gradualmente. A árvore já estava em um estado tão triste quanto uma manhã nublada.
“O que acha?” Ele perguntou. “Gostou do revólver?”
“Sim… Parece que ficou mais leve.” Lira comentou olhando para sua arma, descontraída.
“Isso é bom, quer dizer que se acostumou com o tranco. Mas o que acha de um desafio maior?” Ele fez Lira olhar para cima, para onde todos os pássaros voavam. “Acerte um deles.”
“Isso é fácil, tem tantos.” Ela comentou, e tinha razão. Por mais que eles estivessem fazendo todo aquele barulho há pelo menos uma hora, parecia haver até mais pássaros do que antes. “Posso matar um de olhos fechados.” Comentou cheia de arrogância. Philip apenas riu quando ela disse isso.
“Então tente.” Retrucou, com um sorriso engraçado no rosto.
Lira estranhou o comportamento de Philip, mas não se importou. Não podia ser tão difícil acertar um em meio aquele bando enorme, que tinha o tamanho de uma clareira. Ela mirou para os pássaros e apertou o gatilho.
No entanto, perante o som do estouro da pólvora, todos os pássaros se dispersaram. O aglomerado de pássaros, que juntos mais pareciam uma nuvem negra, se distanciaram uns dos outros ao mesmo tempo. O projétil passou reto e foi em direção ao céu azul e sem nuvens.
Lira ficou de boca aberta com aquilo e Philip caiu no chão de tanto dar risada.
“Adoro quando você paga pela arrogância.” Disse enxugando uma lágrima. “Se conseguir acertá-los, considere que terminamos o treinamento de hoje.”
Lira revirou os olhos para Philip e atirou mais algumas vezes para o céu, mas em todas elas, os pássaros evitavam os disparos como se fossem completamente previsíveis.
Sem ter sequer uma ideia do que fazer, Lira se deitou na grama e ficou observando aquela massa de pássaros com um fascínio quase hipnótico.
No início tudo que ela viu foi uma bagunça desenfreada. As diversas espécies de pássaros se envolviam em um emaranhado que quase podia tapar o sol acima deles.
Havia momentos em que todos os pássaros se afastavam de si e formavam uma nuvem dispersa e aberta, onde o sol passava com facilidade. Aquilo foi como um estalo em Lira.
“Existe um padrão…” Murmurou.
Ela observou aquilo por bastante tempo. Não sabia ao certo quanto. Observar aquele cenário era maçante e, por pouco, sua mente ficou dispersa diversas vezes. Mas ainda assim, ela percebeu três coisas.
“Os pássaros são como uma grande família, sempre se atraem para o centro.” Disse para si mesma, mas aquilo surpreendeu Philip.
“Como é?” Ele perguntou confuso. No entanto, quando Lira se levantou, viu um olhar impassível e capaz ao mesmo tempo. Ele ficou surpreendido com aquilo
“Mas eles não querem machucar seus semelhantes…” Ela ignorou a pergunta de Philip e continuou em seus devaneios. “Então se afastam depois de um tempo.”
Ainda hipnotizada, ela aos poucos levantou o revólver e apontou para um lugar aparentemente aleatório. Suas mãos não tremiam, ou hesitavam. A determinação que havia nas mãos de Lira era o que os melhores atiradores buscavam, e Philip viu isso.
“Mas indo contra tudo isso, eles ainda ficam em grupos enormes. Os mais rápidos ficam com os mais rápidos…” Disse movendo o revólver por alguns centímetros. “E os mais lentos com os filhotes.”
O som do gatilho sendo puxado e o estouro da pólvora foram as coisas que quebraram o devaneio de Lira. Ela olhou ao redor, um tanto confusa, até que então buscou uma explicação de Philip.
“O que aconteceu?”
“Você foi muito mais inteligente do que eu jamais imaginaria.” Philip estava boquiaberto. “Não achei que conseguiria.”
“Então eu…”
“Você acertou um.” Ele disse e apontou para o corpo de um pequeno filhote de corvo ali perto. Lira comemorou, deu alguns pulos e gritou alegre. No entanto, eles ouviram o que pareceu um lamúrio.
O pequeno corvo começou a se debater, e com dificuldades, ficou de pé tentando abrir voo. Dois pares de asas se abriram para a mísera tentativa de voar resultar em um fracasso. Uma de suas quatro asas havia sido perfurada por Lira, ele parecia estar sofrendo… e muito.
"Eu..." Philip não sabia ao certo o que dizer. Sentia-se culpado por aquele corvo. Ele grasnava de dor, e parecia estar chamando por alguém, mas ninguém vinha. "Se quiser que eu…"
Antes que ele pudesse dizer algo, Lira se afastou dali e foi correndo na direção do corvo. Ele estava extremamente arisco e se tivesse dentes, os mostraria da maneira mais ameaçadora possível.
No entanto, ele era só um filhote. Não poderia fazer grandes estragos.
Hesitante, Lira se aproximou do corvo de asas dúplices enquanto o animal demonstrava cada vez mais medo. Devagar, ela aproximou uma das suas mãos conforme tentava acalmar o pequeno corvo, com uma voz doce.
"Calma…" Disse gentil, suave e lentamente.
O corvo em momento algum deixou de mostrar agressividade, mas Lira também não desistiu. Resolveu mudar de estratégia e agarrou o corvo o mais rápido que pôde. O corvo se debateu, enquanto bicava a mão de Lira o mais forte que podia.
Ela fez uma careta de dor, mas não o largou de jeito algum. O colocou contra seu peito e, com uma voz graciosa, cantarolou a única canção que conhecia. Foi algo extremamente nostálgico para ela.
Enquanto aos poucos fazia o corvo se acalmar em seus braços, as memórias de Lira voltavam a dias mais calmos.
Uma época onde ficava deitada no colo de sua mãe em um dia muito quente, e sua voz doce e límpida tornava tudo aquilo mais suportável.
Suas mãos ficaram cheias de cortes e feridas pelas diversas bicadas do corvo, que mancharam toda a sua camisa, mas não se importou com aquilo. Aquele filhote finalmente parecia ter se acalmado.
"Tudo bem?" Philip perguntou de repente, assustando Lira.
"Tudo… são só alguns cortes…" Com uma de suas mãos estando livres, ela começou a acariciar o corvo, aquilo o assustou no começo, mas depois de um tempo começou a surtir efeito. "Não é nada demais."
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, apenas olhando para aquele pequeno corvo. Ele parecia ser menor ainda enquanto Lira o segurava contra o peito, fora a aparência extremamente frágil.
"O que vamos fazer com ele?" Lira perguntou, se sentindo culpada do que havia feito ao corvo.
“Eu… Eu não sei.” Philip suspirou. “Acha que consegue cuidar dele até que se recupere?”
“Talvez…” Ela hesitou por um momento.
O que tenho de fazer para cuidar de um filhote? Pensou. Alimentá-lo, é o óbvio, mas com o quê? E quando? E quanto? Eram tantas perguntas, tantas maneiras de falhar mas…
Tudo isso não importava. Não importava, porque naquele momento o pequeno corvo deu um longo bocejo. Toda a insegurança que Lira teve foi substituída por uma única frase.
“Eu vou cuidar dele!” Disse resoluta.
“Ótimo!” Philip bagunçou os cabelos de Lira enquanto se afastava em direção a sua bolsa. “Vamos embora então. Acho que é o suficiente por hoje.”
“Tá bom.” Devagar, ela pegou suas próprias coisas e aproximou-se de seu mestre.
O corvo em seus braços aos poucos adormeceu. No entanto, ela continuou a cantarolar. Se sentiu bem enquanto fazia aquilo, a sensação era de ter assumido uma grande responsabilidade e cantar a música de sua mãe tirava um pouco do peso dos seus ombros.
Olhou para o filhote em seus braços e não conseguiu evitar de pensar no quão frágil ele parecia ser.
"Um nome…" Murmurou então.
"Quer dar um nome a ele?" Philip perguntou surpreendido. Ela apenas acenou positivamente.
Philip ponderou por um breve instante. Olhou ao seu redor, procurando e pensando em algo que seria um bom nome para aquele corvo.
"Lira, o quanto você acha que sei sobre demônios?" Perguntou de repente.
"Muito?" Ela hesitou ao dizer aquilo. Na realidade, Lira não tinha a menor noção do quanto Philip sabia. Chutar alto era sua única opção.
"Não o suficiente, tenho de admitir, mas sim. Sei muita coisa sobre demônios, e uma delas é sua língua antiga."
Philip aproximou-se de Lira e agachou sobre os joelhos, ficando na mesma altura que sua discípula. Quando tentou fazer carinho no corvo, ele acordou rapidamente e bicou o dedo dele.
Os dois deram um breve riso.
"Que tal Plumo?" Disse então.
"O que significa?"
"Significa pena, mas se fizermos um jogo de palavras com o significado…” Ele se levantou e voltou a caminhar, com Lira ficando em seu encalço. “Significa misericórdia." Complementou com um sorriso.