Volume 1
Capítulo 23: Amadurecimento e treinamento
Seus passos pesados criavam um eco no teto alto do corredor. Olhava para frente, rangendo os dentes e com um dos seus braços enfaixados. Por causa disso, tinha de usar apenas uma mão para abrir as portas gigantescas que havia no seu caminho.
“Maldito Philip!” Ele reclamava entre dentes.
Ele parou de frente para a única porta que ele teria de puxar ao invés de empurrar. Abriu com tanta força que o impacto na parede fez ela tremer.
A porta dava para uma sala larga, tão alta quanto o corredor. No final dela, havia um trono com duas pessoas próximas, ambos olharam para Deviam com surpresa.
“Willian! Estou de volta!” Deviam falou.
“Depois conversamos...” Willian com seus cabelos e barba grisalhas dispensou o rapaz na sua frente.
Ele, um rapaz um pouco mais baixo que Willian e de feições semelhantes, caminhou até a porta com um rosto claramente decepcionado e Deviam ignorou-o enquanto passava.
“O que quer Deviam?” Willian caminhou até o trono e se acomodou, como se já estivesse acostumado a ficar ali. Olhou de cima para o Lua Negra, com uma expressão confusa e um tanto raivosa.
“Como assim? Estou de volta!...” Deviam gritou. Soando irritado, não se importando com o fato da pessoa à sua frente ser o rei de Altum. “E trago más notícias.”
“Eu estava ocupado.” Willian não soava irritado, parecia mais indignado.
“Seu filho tinha uma emergência?”
“Não...” Ele hesitou quando disse isso.
“Então isso não importava!” Deviam dispensou o assunto com um balançar de mãos e um olhar irritado. “O problema aqui é o Philip.”
“Não é você que está para ter um filho, Deviam?” Willian perguntou com um sorriso brincalhão no rosto. “Logo entenderá o amor que tenho pelo Junior.”
“O príncipe é um garoto esperto, não precisa mais de seus conselhos, meu amigo.” Os dois se entreolharam por um breve momento com uma certa nostalgia. “Mas chega disso. Temos um problema maior agora.”
“Que seria?” Willian se revirou no trono ficando numa pose mais séria, enquanto aguardava a resposta do seu amigo.
“Philip recusou o pedido.”
Quando ele ouviu isso, Willian deu um longo suspiro de decepção. Não parecia surpreso, apenas massageou as próprias têmporas e respirava num ritmo forçadamente calmo.
“Eu já devia ter esperado por isso.”
“Ele também me feriu...” Deviam abaixou a voz, envergonhado, quando disse isso.
“Isso também não me surpreende.” Willian comentou tombando a cabeça para o outro lado.
“E ele arranjou uma discípula." Falou ainda mais baixo que antes.
“Cer...” Willian respondeu por instinto, mas quando se deu conta do que Deviam disse, abriu os olhos e se levantou do trono num sobressalto. “Espera! O que?!”
“...” Deviam manteve-se em silêncio. Apenas olhou para o piso de mogno do chão.
“Lua Negra! O que foi que você disse para mim?” Willian soava irritado e um tanto incrédulo.
“Ele arranjou uma discípula!"
Os dois se olharam por algum tempo. No fim das contas, Willian caiu de volta no trono com as mãos nas suas têmporas.
“Tem certeza?”
“Ele me confirmou cara a cara, junto com o pequeno presente.” Mostrou o braço ferido e sentiu cada músculo alfinetar de dor. Philip acertará em um nervo do ombro, então a sensação era desagradável e lancinante.
Uma especialidade desagradável do Phillip. Pensou junto do sentimento de dor desagradável.
“Não consigo dizer se isso é uma boa ou má notícia.” Willian comentou.
“Também não sei, mas o que faremos agora...”
Um breve silêncio ficou entre eles. Ambos estavam pensando num plano de ação quando ouviram uma barulheira do outro lado da porta.
“Rei!” Alguém gritou no corredor. “Meu rei!”
A porta foi escancarada, seguida de uma respiração pesada. Um sujeito meio magricela e com cabelos castanhos estava ensopado de suor e arfava muito.
“Vocês planejam quebrar minha porta hoje?” Willian perguntou, se levantando e indo na direção do homem arfando. “O que aconteceu?”
“Trago...Uma...Mensagem...” Suas palavras ficaram entrecortadas pelas respirações fora de ritmo. “Do... Senhor Caim!”
“A quem devemos dar nossas vidas em campo de batalha?” Deviam perguntou, ele carregou um olhar curioso e confuso enquanto disse isso.
“Valéria a todos.” O sujeito arfando comentou, enquanto entregava um papel dobrado e meio amassado.
Deviam pegou o papel e leu ele o mais rápido que conseguiu, mas quando chegou na última palavra da carta achou que havia lido alguma coisa errada e releu o papel inteiro. Seu rosto ficou ainda mais apreensivo que na primeira vez que leu.
“Willian...” Deviam olhou para o rei. Parecia estar confuso e com medo. “Temos outro problema.”
Enquanto isso, a quilômetros de distância da capital de Altum.
Philip já havia se distanciado dos diversos soldados perto da igreja, mas os olhares que as pessoas na rua davam para os dois quase-escravos na sua carroça o irritavam por dois motivos.
O primeiro, eram os olhares de inveja, como se ele tivesse ganhado na loteria com aquela papilio.
O segundo era relacionado ao primeiro. Os comentários que eles diziam eram como brasa em palha seca. Em um gigantesco telefone sem fio, a informação de que o humanista e pacifista, Philip, havia comprado dois escravos se espalharia muito rápido.
Sorrateiramente, Philip se virou para o fauno atrás dele e fez um pedido:
“Preciso que se esconda o melhor que puder.” Falou num sussurro.
“Por que?” Trauno perguntou. Estava curioso, mas acima de tudo, desconfiado para o que aquele humano pretendia.
“Os rumores se espalham rápido.” Philip voltou seus olhos para a estrada e Trauno, relutantemente, se escondeu o melhor que pode.
Ficou deitado na parte traseira da carroça e olhou para Vitra com um sentimento de culpa. A papilio ainda estava desmaiada e seus longos cabelos castanhos passavam um sentimento de estranheza ao fauno.
“Eu sinto muito, Vitra...” Se viu murmurando para a menina na sua frente. “Devia ter sido mais rápido.”
Naquele instante, a carroça passou por cima de algo e ela inteira balançou, isso incluiu os dois escravos na traseira.
O cabelo da Vitra bagunçou no meio desse balanço e dois pequenos buracos apareceram por um breve instante na visão do Trauno. Ali era onde as antenas de um papilio deveriam estar. Duas, longas e bonitas antenas que foram arrancadas à força pelos humanos.
Trauno não pode sentir nada além de raiva. Olhou novamente para Vitra e sentiu a culpa de antes aumentar ainda mais, e então, ele mudou esse olhar para Philip.
Se esse sujeito fizer qualquer coisa... Pensou. Juro que o mato com minhas próprias mãos.
Levou um bom tempo para eles saírem da cidade. Quando o fizeram, o sol já estava no seu ápice e apesar do tempo quente, Lira não parecia se importar.
Muitas coisas passavam pela sua cabeça naquele momento, então o calor era o menor problema que tinha para se importar.
Ela olhou de relance para os dois demônios na traseira e viu que ambos dormiam, então se virou para Philip e descarregou as questões que tinha.
“Por que salvou esses demônios?” Ela perguntou num tom baixo para não acordar os dois na traseira.
“Como assim? Foi você que pediu para salvá-los." Philip retrucou. Ele parecia confuso e sua expressão parecia levemente indignada.
“Isso foi antes dela quase te matar.” Lira cruzou os braços quando disse.
“Lira, não seja hipócrita.” Ele olhou para Lira aparentemente bem irritado. “Acha que me importa o fato dela ter me usado de refém? A papilio tem seus motivos e você, mais do que ninguém, deveria ver isso.”
Ele voltou a olhar para frente e bateu as rédeas mais uma vez, acelerando o Laralto. Ficou por algum tempo em silêncio, até que finalmente deu um longo suspiro.
“Quando você disse para salvar a papilio naquele momento do leilão... pensei que havia superado o trauma com seus pais...” O tom de decepção que Philip passou com aquilo feriu profundamente Lira. “Superado a raiva...” Ele se virou, e o olhar que tinha, transmitia uma mensagem clara como o dia.
“Parece que tenho muita coisa para te ensinar ainda.”
Aquilo foi inesperado, no mínimo. Lira olhou para as próprias mãos, envergonhada, mas ao mesmo tempo confusa. Ainda não entendia direito o porquê de Philip ajudar aqueles dois.
Mas depois do que ele disse para ela, não tinha mais coragem de contrariá-lo.
“Palavras contam mais que ações, às vezes.” Lira se lembrou do que sua mãe costumava dizer nesses momentos, e essa breve memória lhe apertou o peito.
Se agarrou a arma cinzenta no seu colo e pensou duas vezes antes de olhar para Philip de novo.
Pouco tempo depois, eles já conseguiam ver a floresta próxima a fazenda.
Quando finalmente chegaram à frente da casa de Philip, a parada fez Trauno acordar. Ele se levantou rápido e parecia pronto para o pior.
“Já animado?” Philip comentou rindo em sequência.
Enquanto Trauno relaxava um pouco envergonhado com o que havia feito, Philip ajudou Lira a descer da carroça e ele foi no encalço dela.
“Acorde a papilio, a gente vai comer alguma coisa lá dentro.”
Philip começou a ir na direção da porta junto com Lira, enquanto Trauno tentava acordar Vitra.
A porta abriu num rangido mórbido e um silêncio triste e moribundo estava presente na casa. Ele fazia com que tudo parecesse cinza para Philip, sentia falta de algo e sabia do que.
“Lira...” ele disse meio choroso e suplicante. “Pode ver como a Merlin está?”
Hesitando, Lira acenou positivo e foi subir as escadas para o segundo andar, deixando seu mestre para trás.
Ele ficou parado na porta com a chave presa na maçaneta. Não se mexeu, apenas sentiu sua mente se tornar uma bagunça obscura enquanto se lembrava de tempos ainda mais sombrios.
“Droga...” Murmurou para o silêncio da casa.
Um grito vindo do lado de fora fez Philip sair daquela realidade. Ele se virou e viu Vitra esperneando, enquanto Trauno tentava ajudá-la.
“O que diabos está havendo?” Ele disfarçou os sentimentos que tinha e as lágrimas que quase caiam e caminhou em direção da carroça.
“Seu maldito!” Vitra gritou. “O que diabos fez comigo?!”
“Te dei um nocaute, simples assim. Mexa o maxilar que a dor passa rápido.” Philip deu uma curta risada e começou a voltar para dentro de casa. “Venham logo, vamos comer algo!” Ele voltou para dentro da casa, com os dois demônios logo atrás.
Enquanto isso, no segundo andar.
Lira ficou estagnada na frente do quarto de Philip. Tinha medo do que podia ver ali dentro.
Será que ela ainda vai estar dormindo? Pensava. Lógico que não... Já fazem três dias que ela está assim.
Seus pensamentos fluíam como uma enchente, sem controle, ninguém podia pará-la agora.
Ninguém além dela.
Sim... Com toda certeza...
Sentia a cabeça pesar e olhava para a maçaneta da porta como se ela fosse a esperança de todos os efêmeros do mundo.
Ela não estará no quarto... Vai estar trabalhando em algum lugar da fazenda... e só não viu a gente chegando!
Sua mão ainda ficou parada no mesmo lugar e seus olhos não se distanciaram da maçaneta.
Então por que você não se mexe, se acredita tanto nisso? Ela perguntou a si mesma.
Mas já não importava mais. Por alguma coincidência gigantesca, ou um azar vindo do próprio inferno, a porta se entreabriu com um leve rangido.
“Phillip não trancou a porta quando saímos...” Murmurou se lembrando do começo do dia e sentiu cada pelo do corpo arrepiar.
Engoliu em seco e abriu a porta por completo dessa vez. Sua primeira reação foi cair de joelhos.
O quarto estava escuro, assim como havia visto no começo do dia.
As velas para leitura em cima do criado mudo estavam novas, assim como Philip havia deixado.
Tudo estava da mesma maneira que ela e Philip haviam arrumado de manhã.
E Merlin estava incluída nisso.
Ainda dormia, com a pele tão pálida e fria quanto antes.