Volume 1
Capítulo 14: Mourrice Luz Branca
O clima no cômodo era de tensão e curiosidade. No salão dos doze Anciões, onze deles recaiam seus olhares sobre Hiotum. Ele não aparentava hesitar e seu rosto tinha uma expressão sublime que poderia ser tanto raiva, quanto desconfiança.
“Fale de uma vez, Hiotum!” Artuno gritou, impaciente. Alguns concordaram com um aceno de cabeça, outros olharam torto para ele.
“Há cerca de um dia atrás, meu discípulo foi atacado por um humano.” Disse enfim.
“Nós vamos perder nosso tempo com política de novo?” Artuno comentou.
“Cale-se e me deixe terminar!” Hiotum gritou para seu colega ancião, que mais gostava de chamar de imbecil. “Arnok conseguiu sobreviver ao matar sujeito...” Alguns Anciões arregalaram os olhos com essa informação. “O assassino era um soldado de patente relativamente alta.”
“Quão alta?” Malar perguntou, seu tom não apontava preocupação. Mas seu olhar era outra história.
“Assassino de alta patente, segunda divisão. Atacou meu discípulo sozinho e ninguém apareceu para buscá-lo, aparentemente”
“Isso não é possível.” Kalau exclamou. Ele coçava suas escamas com ansiedade, criando um barulho estranhamente rítmico. “Alguém de tão alta patente não andaria sozinho, mesmo sendo um assassino. Ele está no nosso território, é arriscado demais.”
“Foi o que eu imaginei também, Kalau... pensei que ele talvez fosse um batedor, se não fosse por ele estar procurando uma estalagem quando apareceu.”
Desse ponto em diante, Hiotum explicou nos mínimos detalhes cada coisa que havia acontecido naquela noite. Disse sobre a bagunça que o assassino causou no bar e sobre como ele foi embora tão rápido quanto veio.
Contou sobre o olhar de ódio que ele tinha contra Arnok e sobre a forma como seu discípulo o matou. Até que chegou na parte da qual mais estava preocupado.
“Como Kalau disse, duvido que ele estivesse sozinho.”
“Devem ser um bando de batedores buscando informações, Hiotum.” Kalin comentou. “Não devia se preocupar tanto.”
“Eu diria a mesma coisa que você, Kalin, se não fosse por Lilás do Sul ser uma cidade distante da fronteira. Não faz sentido um grupo de batedores estar ali.” Hiotum andou de um lado para o outro enquanto dizia isso.
Kalau se virou para o mais velho dos anciões e perguntou: “Algum nobre passou por Lilás do Sul, Malar?”
“Até onde eu sei, não passa um nobre por aquelas terras há no mínimo dois anos.” Ele ponderava, enquanto acariciava sua longa barba, a olhar para o nada.
“Posso dar minha opinião, senhores?” Hiotum perguntou para seus colegas e todos olharam para ele de imediato. “Isso me cheira a algo maior.”
“Seja menos óbvio.” Artuno falou, em um tom sarcástico.
“Quando eu digo ‘ algo maior ’, quero dizer algo realmente maior. Meus informantes disseram que o herói assassino está aqui no país.”
“Qual seu chute?” Visina perguntou, seus quatro olhos fitando Hiotum, cada um com um sentimento estampado.
“Acho que eles vão tentar entrar na capital.”
Um silêncio desconfortável invadiu a sala. Alguns olhavam para Hiotum e pareciam incrédulos de que algo assim aconteceria, enquanto outros ponderavam aquilo como uma possibilidade.
Então, um deles riu.
“Hahahahaha!” Artuno deu uma longa risada, que se não fosse o momento mais errado possível, tiraria o riso dos outros também. “Andou treinando suas piadas, Hiotum?” Ele secou uma lágrima que escorreu do seu olho. “Os humanos jamais invadiriam, não são idiotas a esse ponto.”
“Não vão invadir, acho que vão causar problemas, nos desestabilizar por dentro. Ou talvez algo mais complexo... Tenho certeza de que estão planejando algo! Malar...” Virou-se para o drakodemono de barbas e cabelos brancos com um olhar suplicante. “Temos que fazer algo sobre isso.”
“Fazer algo? Sobre o quê? Um bando de humanos?” Artuno disse, irritado e incrédulo.
“Um bando de humanos que não conseguimos vencer há mais de três mil anos.” Visina retrucou-o.
Nesse momento uma discussão acalorada começou, com Artuno tentando provar seu ponto de que “humanos eram inúteis incapazes”, enquanto os outros contradiziam seu pensamento.
Os únicos que não participavam era Hiotum e Malar, o primeiro observava o segundo pensar enquanto acariciava a barba. Até que uma veia saltou de sua testa.
“Já chega!” Malar gritou para todos os presentes. O silêncio novamente tomou o cômodo e ele suspirou aliviado. “Hiotum, concordo com você. O problema aqui é a falta de informação. Não podemos fazer nada com o pouco que temos, que não passa de rumores e suposições vagas.” Ele se virou para todos na mesa e olhou nos olhos de cada um. “Digo para ficarmos alertas, até termos algo mais concreto. Todos de acordo?”
“Sim.” Todos falaram em uníssono.
Enquanto isso, do lado de fora da sala.
Arnok batia os pés com ansiedade. Estava ali esperando Hiotum já fazia alguns minutos. Impaciência preenchendo-o.
Tornou-se aluno da universidade, algo que nem nos seus sonhos mais felizes podia imaginar. Queria explorar as novas possibilidades que tinha a seu dispor.
Não contendo mais sua ansiedade, começou a caminhar pelo corredor. Ele olhava com curiosidade cada uma das portas que tinha ali e indagou com as escrituras na frente delas.
A grande maioria eram salas particulares dos diversos professores do lugar. Em uma delas, com diversos padrões vermelhos, estava escrito “Malar Escamas de Sangue”.
Em outra, era uma porta negra como piche com os dizeres “Kalin Lua de Sangue”. Numa terceira, “Artuno Lobo Pardo”. Esse padrão prosseguia. Havia também uma com o nome de Hiotum.
Dizia “Hiotum Sombra da Lua”. Sua porta era a mais simples de todas, sem grandes adornos ou diferenças de cor.
Neste ponto, Arnok havia passado em quase todas as portas. Faltava apenas uma agora. Ela não tinha placa de identificação, muito menos adornos.
Quando aberta, a porta revelou um outro corredor longo e alto. Do lado direito existiam várias bifurcações que levavam a outros corredores e escadas.
No lado esquerdo havia várias janelas jogando luz no local. Mas nada daquilo chamou a atenção de Arnok. O que se destacou para ele foi a coisa no fundo do corredor.
Uma porta de madeira escura, tão alta quanto o teto, que lhe passava uma sensação estranha. Uma presença poderosa que causava medo e uma pressão vinda de nenhum lugar aparente.
“Você é o próximo!” Uma voz grave soou de trás de Arnok. Mas quando ele se virou, não tinha nada ali.
“O trono é seu por direito.” Outra voz, muito diferente da anterior, sussurrou em seu ouvido. Era fina e parecia ser de uma mulher.
“Quem está aí?” Arnok gritou, mas ninguém respondeu. Foi então que a pressão da porta aumentou drasticamente.
Aquela força... ele sentia já ter visto ela em algum lugar, sentia já ter estado de frente para essa mesma porta.
“Estou enlouquecendo. É oficial.” Murmurou e suspirou. Ele caminhou para a primeira encruzilhada do corredor e virou nela. Encontrou outro corredor, mais curto dessa vez, que levava a uma porta dupla sem grandes entalhes.
“Biblioteca.” Arnok murmurou enquanto lia os escritos grandes talhados na porta. Ele a abriu com certa dificuldade, por causa do peso, e já não se surpreendia mais ao ver cômodos gigantes como aquele.
Tinha talvez três andares, separados por mezaninos. Em todos eles podia-se ver estantes de cinco ou quatro metros de altura, cheias de livros, pergaminhos e outros tipos de documentos.
“Como posso ajudá-lo?” Uma voz um pouco estridente veio da sua direita. Arnok levou um susto, achando que era outra de suas alucinações, mas era apenas um senhor velho e baixinho.
“Estou apenas olhando.” Arnok respondeu, recompondo-se.
“É aluno novo?” Questionou o velho.
“Sim, sou.”
“Bem, seja bem-vindo à universidade, então...” Ele o cumprimentou com um sorriso e um apertar de mãos. “Sou Kaijum. Simiomono que cuida dessa biblioteca.”
“Sou Arnok...” Ele devolveu o cumprimentou do senhor Kaijum com a mesma intensidade. “Asa negra, como pode ver.” Apontou para suas asas com um aceno de cabeça.
“Certo. É um prazer, Arnok. Se precisar de ajuda para achar um manuscrito, estou à sua disposição.”
Kaijum se afastou a passos lentos. Seu rabo de simiomono balançava junto com suas pernas e Arnok conseguiu ver diversas falhas de pelo ali.
Ele parece mesmo alguém velho. Caminhou para longe da entrada e foi explorar a biblioteca.
Olhando para os manuscritos no primeiro andar, percebeu que eles abordavam assuntos mais gerais. Como caça, culinária, política... política? Ele puxou um livro grosso com o título escrito na página de introdução.
“Casas nobres de Gaia.” Murmurou as palavras em destaque na capa.
Dentro do livro existiam resumos e relatos históricos sobre as diversas casas nobres do país. Alguns nomes Arnok reconheceu. Como Sombra da Lua e Escamas de Sangue.
Esses eram os nomes dessas famílias nobres e o sobrenome dado aos descendentes diretos do líder, também conhecido como patriarca.
Arnok fechou o livro e o guardou de volta na estante. Era um conhecimento bom para ele, que mal sabia sobre política ou a capital, mas não tinha tempo para isso. Memorizou o lugar do livro e se afastou.
Procurou onde subir para o segundo andar, até que finalmente achou uma escada em espiral que levava para cima. Era feita completamente de ferro e bem barulhenta de se pisar.
Acho uma boa ideia ir voando na próxima. Ele pensou.
O segundo andar era bem semelhante ao primeiro. A maior diferença era que agora existiam mesas onde os alunos podiam se sentar e pesquisar. Numa delas, vários garotos e garotas de diversas raças diferentes conversavam e davam risada. Não pareciam se importar com o fato de estarem em uma biblioteca.
“Ainda acho que a Cyri devia terminar com aquele babaca.” Um dos garotos do grupo disse. Ele parecia irritado e suas longas garras de feline faziam um barulho rítmico na mesa, que soava em toda a biblioteca.
Arnok andou até ficar atrás de uma das estantes próximas daquele grupo. Não se importava com aqueles sujeitos, queria apenas explorar aquele lugar.
Tentou ficar fora da visão deles e não precisou fazer muito esforço para isso, já que não pareciam se importar com nada além deles mesmos.
“Ei, vocês ouviram que o Hiotum achou seu primeiro discípulo?” Uma das meninas no grupo comentou.
“É, eu ouvi...” Um terceiro respondeu. “Parece que é um asa negra.”
Percebendo que a conversa era sobre ele, começou a ficar desconfortável e envergonhado. Queria ir embora, mas a curiosidade foi mais forte.
“Um asa negra? Sério?” O feline do grupo pronunciou, decepcionado. “Mas que merda, tantos anos tentando para um asa negra ficar no meu lugar.”
“Olha, se isso te alegra, o Hiotum deve ter feito isso por sentimentalismo. Tem rumores que ele namorava o Morpheus.”
Todos na mesa riram.
“Isso é impossível, aquele Morpheus era um idiota incapaz de qualquer coisa.” Um deles comentou, soando aborrecido.
“Aposto que o novato do Hiotum vai ser igual.”
“Qual é, gente? Vocês nem viram ele ainda. Não se julga um livro pela capa.”
“Diz isso, mas recusou o Alen porque achava que ele não era seu tipo.”
“Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”
Nesse ponto, Arnok já estava cansado de ouvir eles falarem sobre ele pelas costas.
“Resumiu a hipocrisia.” Ele se intrometeu na conversa.
Todos na mesa olharam para ele, surpresos. Alguns pareciam envergonhados, vendo que o alvo de suas fofocas estava bem diante deles. Mas um do grupo demonstrava o completo oposto, ele abriu um sorriso desdenhoso.
“Falando no diabo, olha quem apareceu.” O feline, que estava batendo os dedos, se levantou e caminhou até ficar de frente para Arnok.
Ele era um pouco maior que o asa negra, e diferente em todos os outros aspectos. Tinha um porte físico muito maior e parecia bem mais velho.
“O que veio fazer aqui, garoto?”
“Estou apenas conhecendo a escola.” Arnok falou tentando soar natural, mas estava apreensivo, aquele feline não parecia boa coisa.
“Sério? Oras, então deixe-me te mostrar o caminho.” Ele agarrou uma das asas de Arnok e o puxou para perto da borda do mezanino.
Arnok ficou se debatendo, ser agarrado daquele jeito o surpreendeu e a dor vindo dali era agoniante. O tempo todo ele gemia de dor, esperneando e tentando se soltar.
“Você não devia ter vindo aqui...” Botou Arnok contra a parede do mezanino, o forçando a cair. Arnok lutava contra isso o tempo inteiro. “Roubou a chance de muita gente, incluindo a minha. Se for embora agora, não vai se machucar tanto.”
“Magni, o que tá fazendo?!” A garota que falou sobre julgar o livro pela capa gritou.
“Ensinando o lugar desse novato, Velin!”
“Solte-o!” Uma voz meio distante falou, ela passava uma presença forte.
“E quem é voc...” Magni cortou no meio suas palavras quando viu quem era. Afrouxou a pegada na asa e Arnok se afastou no mesmo instante, caindo no chão.
Ele se virou para ver quem era seu benfeitor e não conhecia aquele sujeito.
“Sabe muito bem quem eu sou, Magni.” Um homalupo de pelo extremamente branco estava com uma mão na cintura olhando irritado para Magni.
“Mourrice...”
“Eu mesmo, então por que não deixa o asa negra em paz?”
“Não se ache só porque derrotou nosso representante.” Magni tentava soar confiante, mas suas pernas tremiam do mesmo jeito. “Não é grande coisa diante de todos nós.”
Magni apontou para seu grupo de amigos na mesa, mas nenhum deles pareceu ter o mesmo ânimo que ele.
“Bem, acho que seus ‘ amigos ’ são mais espertos que você... Então vão embora antes que eu mostre como seu represente perdeu.” Com um balançar de mãos e um sorriso nada receptivo, Mourrice dispensou todos os alunos naquela mesa. Eles se afastaram, e Magni estava com um olhar cheio de ódio.
Arnok ainda estava no chão, olhando estupefato para o homalupo na sua frente. Ele emanava liderança e poder.
“Está tudo bem?” Mourrice estendeu uma mão para Arnok.
“Acho que sim.” O garoto aceitou a ajuda e se levantou. “Mourrice, não?”
“Sim, Mourrice Luz Branca. Um prazer.”
“Arnok, o prazer é todo meu.”
“Então você é o discípulo do Hiotum, hein?” Parecia um pouco decepcionado, mas disfarçou logo em seguida. “Arranjou problemas bem cedo.”
“Parece que sim.” Disse o jovem de cabelos pretos, parecendo um tanto descrente. “Obrigado pela ajuda.”
“Não foi por nada, mas saiba que essa não vai ser a primeira vez...” Mourrice colocou uma mão no ombro do garoto e o olhou nos olhos. “Muitos pensam como Magni, acham que você roubou deles uma gigantesca oportunidade.”
“Por quê?”
“Hiotum nunca teve um discípulo, então muitos treinavam para ter ele como mestre. Os boatos são como brasa em palha seca, então tome cuidado.” Ele começou a se afastar depois de ter se despedido com um aceno de cabeça.
“Obrigado.” Arnok respondeu, tentando disfarçar a preocupação na voz.
“Por nada... Uma última coisa.” Mourrice Luz Branca virou-se para Arnok e, com um sorriso, despediu-se dele. “Mande um oi para o meu irmão por mim, ele vai estar na mesma turma que você.”
Arnok nada disse. Apenas viu aquele sujeito ir embora lentamente, e foi então que percebeu que já estava há tempo demais ali e voltou correndo para Hiotum.