Volume 1
Capítulo 20 – Revelações
Tudo ao redor estava preto, do chão ao céu e até horizonte. Clara clamava por ajuda, mas a voz não saia. Começou a suar e o desespero tomou seu corpo. Coçou a garganta e tentou tossir mas nada acontecia. Nenhum som sequer.
— Por que você me matou?
Clara se virou em um repente, a voz era de Bruno, pálido e coberto pelo sangue que escorria de sua boca. O susto a fez cair para trás com a boca trêmula e com os olhos prontos para chover. A respiração dela ficava cada vez mais rápida, como se o coração quisesse saltar pela boca.
— Por que, Clara?
A garota tentou se afastar ainda no chão, sem conseguir desviar o olhar enquanto ele se aproximava cada vez mais e começou a mudar de forma. Inchado, com barba rala e com uma camiseta branca com cheiro de bebida.
Era o pai dela.
— Por que?
Clara acordou ofegante na cama de Marcos, e assim como ele, o sol ainda despertou. Ela se direcionou ao banheiro e encarou o espelho. O reflexo a lembrou de uma frase: “Você é um monstro.” Abaixou a cabeça e engoliu seco, mas não com tristeza.
Com raiva.
Mais tarde, Marcos acordou e foi direto para a cozinha, sendo guiado pelo cheiro de torradas e café quente. Clara estava dispersa, olhando pela janela com uma xícara na mão e com fones de ouvido.
— Bom dia — disse Marcos.
Clara voltou a si e o respondeu com um sorriso, um beijo e um longo abraço.
Ambos se sentaram para comer, mas Marcos sabia que tinha algo de errado sem precisar perguntar nada: sabia que Clara estava distante, ainda que tentasse disfarçar.
— Dormiu bem? — ele perguntou.
Ela a encarou em silêncio, por alguns segundos longos demais e respondeu afirmando com a cabeça, com um sorriso montado que ele reconhecia de longe.
— Me fala…
Ela desviou o olhar, colocou a xícara diante dele e forçou um sorriso que se quebrou antes de nascer.
— Eu não consigo parar de pensar no que aconteceu — Clara confessou, a voz baixa. — E se alguém descobrir? E se me levarem?
Marcos tomou um gole do café e falou com a calma que parecia irritantemente inabalável:
— Não vão atrás de você. Se alguém for caçado, vai ser eu.
— Mas... por quê?
— Porque com certeza tinha meu DNA nas mãos daquele cara ou no chão. Além de que alguma câmera pode ter me filmado indo até lá — Ele deu de ombros como quem fala de algo banal.
Clara sentiu o peito apertar. Apertou as próprias mãos, encarava a xícara como se fosse um espelho turvo.— Como você pode estar tão bem com isso?
Marcos inclinou-se para frente, e um leve sorriso cruzou seu rosto — não de alívio, mas de quem já aceitara o peso das escolhas.— Eu vou ficar bem... Eu tenho um plano.
Clara o olhou com medo, mas também com a estranha segurança que só ele parecia trazer.
Houve um silêncio antes de ela soltar a pergunta que martelava sua mente desde a noite anterior:— E... o que aconteceu com aqueles garotos? Eles caíram... e depois simplesmente se levantaram, como se nada tivesse acontecido e foram embora, todos estranhos como se tivessem sido hipnotizados.
Marcos suspirou fundo, coçou a cabeça, e por um instante pareceu mais humano, mais vulnerável. Seu olhar se desviou da janela para os olhos dela, carregado de uma verdade que talvez ainda não pudesse ser revelada por completo.
— Clara... — suspirou fundo — eu preciso que você escute tudo com atenção…
Ela franziu as sobrancelhas e se ajeitou na cadeira para escutar a explicação.
— Um dia... andando pela praça, eu encontrei um caderno estranho...
Clara apenas o encarava em dúvida. A expressão estava travada e séria enquanto Marcos continuava.
— …No caderno dizia que se eu escrevesse o nome de alguém, pensando no rosto... essa pessoa morreria — Marcos respirou fundo. — Eu tava cansado de escutar seu pai gritando e batendo na sua mãe… e principalmente, te fazendo chorar...
— Um caderno? — Clara pergunta incrédula.
Ele acenou com a cabeça, sabendo que a história ficaria mais ridícula do que já era se fosse contada dessa forma.
— Marcos... — Ela soltou o ar pela boca e balançou a cabeça, sem saber o que dizer.
Se levantou e foi até a mochila, que usava para ir ao trabalho. Tirou de lá o Death Note, e o ergueu para ela. Clara observou o caderno na mão dele com desconfiança. Esticou os dedos para tocar no objeto, mas ele o puxou de volta.
— Não precisa se assustar, ok? — Marcos disse antes de estender o caderno novamente. — Ele não vai fazer nada com você.
— O caderno?
Clara pegou o Death Note com as duas mãos e observava os detalhes. A capa parecia de couro preto desgastado, como um grimório antigo. O cheiro era de um livro velho, esquecido por anos.
Mas então, pela visão periférica, ela viu algo atrás de Marcos.
Ela empalideceu, os olhos arregalaram e as mãos tremiam tanto que o caderno caiu de suas mãos. Clara, sentada e com as pernas bambas, segurou o apoio de costas da cadeira como se estivesse pronta para correr, mas simplesmente não conseguia nem respirar.
O esqueleto flutuante de um olho só, ria da garota dando um singelo “oi” com a mão, movendo somente os dedos, lentamente.
— Esse é o Reigan — Marcos calmamente tomou um gole do café. — Um deus da morte. O dono original do caderno.
Clara continuava paralisada pela a criatura.
Marcos viu que não daria para continuar assim e se virou para o Shinigami: — Pode ir pro meu quarto? Agora sim você pode pegar os tomates.
— Você sabe que eu continuar escutando pela parede? — Reigan zombou — Amor, café e confissões de assassinato... Esse é o melhor episódio até agora.
O Shinigami pegou seus tomates e se retirou.
— Ele... ele vai matar a gente? — Clara perguntou, com a voz trêmula.
— Segundo ele, não.
— Como você pode estar tão calmo? Esse bicho é enorme.
— Depois de alguns dias acordando com ele te observando dormir... você se acostuma. E ele é até legal de conversar.
— Legal? Você tá conversando normalmente com um fantasma cheio de tentáculos, e acha “legal”? A quanto tempo isso?
Ele deu um riso nasalado, vendo o desespero da garota a cada pergunta.
Clara encarou Marcos em silêncio por alguns segundos, digerindo as informações e a falta delas. Abriu o caderno e havia vários nomes, em várias línguas, datas e causas. Folheou até o início, e encontrou o nome completo de seu pai.
Está lá, com a causa da morte, igual ao que ocorreu. Ela passou os dedos em cima do nome, como um carinho de despedida.
— Então você realmente é... Kira?
— Atualmente, sim.
— Atualmente?
— Pelo que entendi, “Kira” foi um garoto japonês que recebeu o caderno e matou várias pessoas. Mas, desde então, qualquer um que herda um desses cadernos acaba sendo chamado de Kira. Eu... só sou mais um.
— E… por que não me contou?
— Como eu ia contar? “Oi, Clara, eu tenho um caderno que mata pessoas e eu matei seu pai”... Não é algo fácil de dizer.
— Mas eu entenderia você...
— Clara, eu matei seu pai.
— Eu já entendi. Por que tá repetindo?
— Achei que você… ia me odiar. Ou surtar.
— Eu... eu acho que deveria… mas… não sei. — Ela continua a acariciar o nome de seu pai. — Eu nunca iria te odiar. Sei que você fez isso por mim... Só que... é estranho. Eu não sei o que sentir em relação ao meu pai agora. Eu tô confusa, mas…
O corpo de Clara amoleceu ao olhar para o rosto dele novamente. Ela fechou o caderno e sua voz saiu mais suave, quase exausta:
— Eu sei que não é certo, mas obrigado. Eu acho... — Suspirou. — Mas por que aquele horário? Por que aquela causa da morte?
— O horário era um teste. E a causa... foi pra te poupar. Eu não queria que você se sentisse envolvida.
— Não queria me envolver?
— O caderno me permite controlar a causa da morte, a hora dela e as ações da pessoa. Me passou pela cabeça usar a arma do seu pai. Ele se dar um tiro ou sua mãe atirar nele, mas não queria te dar um trauma por assistir isso.
O sorriso dela nasce fraco, tímido. Os olhos brilham entre emoção e confusão.
— E você fez tudo isso por mim? Você fez tudo isso pra me poupar?
Ele segurou as mãos dela e trocaram olhares profundos.
— Você é a pessoa mais importante pra mim, Clara. Você é a única coisa que eu protegeria se o mundo fosse explodir amanhã. Eu sempre vou ficar com você, acima de tudo.
Os olhos da menina brilharam com a declaração. Ela apertou as mãos dele enquanto o coração batia forte, como se fosse sair pela boca
— Você… promete?
— Você ainda pergunta?
Marcos se levantou e guardou o caderno na mochila novamente, enquanto ela enxugava as lágrimas, que não eram de tristeza, e ela nem sabia o motivo de estarem caindo.
— Eu preciso saber... você tá bem? Isso não tá te consumindo? Matar pessoas assim… Eu não quero que isso destrua você, Marcos.
— Destruir? — Ele encara o céu através da janela, contemplava o azul infinito. — Eu tenho o poder de um deus nas mãos.
— E o que você vai fazer?
— Eu vou tornar o mundo um lugar melhor, Clara. Um mundo com a minha visão de Kira… Meu próprio jardim do Éden. Puro, colorido.
— Marcos... eu entendo que você quer fazer o que acha certo. Eu sei o quanto você já sofreu... Mas... eu não quero um mundo “melhor” se isso significar te perder.
— Você não vai me perder. Só estou fazendo justiça por quem não pode lutar. Eu tô salvando e punindo quem merece.
— Você não tem medo de ser pego? Ou desse poder subir a cabeça?
— Eu estaria mentindo se dissesse que não tenho medo, mas não me importo. Sei que estou fazendo o certo — Marcos respirou fundo. — E eu só mato pessoas que realmente fizeram algo de errado… do resto da humanidade quero só o medo e cabeças abaixadas.
— Mas... e o tal “detetive L”?
— Por isso eu queria te contar. Eles vão tentar me pegar... Mas não vão conseguir.
— Eu sei que você acredita nisso... Mas... — Ela sorri triste. — Por favor...
A voz quase não sai. Os olhos brilham. Ela não sabe o que pensar.
Marcos se senta e apoia os braços sobre a mesa, encarando-a.
— Você tem duas escolhas agora.
Ela se assusta. O corpo endurece.
— Duas escolhas...? Como assim?
— Pode se juntar a mim... ou abdicar das memórias sobre o caderno, e eu vou embora. A escolha é sua.
— Eu não quero escolher. Só quero estar com você. Preciso de você.
Ela fecha os olhos, depois o encara de novo.
— Por favor. Não me abandona.
— A única coisa que tô abandonando... é o resto da minha humanidade.
— Sua humanidade?
— Já disse, Clara. Por você, eu queimaria o mundo. Não vou deixar nada acontecer com você de novo.
Marcos se aproximou e tocou o queixo dela.
— E sim. Eu amo você.
Os olhos de Clara brilharam como faróis, o mundo ficou colorido e o som do coração vira uma canção. Ela apertou o tecido da camisa contra peito e disse baixinho:
— Eu te amo... muito...
Ela o abraçou, com um sorriso inocente e longo. Um abraço doce, enquanto pequenas lágrimas escorrem de felicidade.
— Então... você aceita? — Marcos pergunta enquanto acaricia a cabeça dela.
— Ser sua namorada? Sim.
Marcos suspira.
— Clara...
— Se eu disser que não quero ajudar nas mortes... posso continuar com você?
O braço dela enfraquece.
— Você sabe que sim.
Ele acaricia os cabelos dela.
— Pode me dar um tempo?
— Você sabe que odeio esperar...
— Por favor...
Ela o aperta de novo.
— Um dia.
— Obrigada.
— Mas você vai dormir aqui hoje, depois da faculdade. Que por sinal você tá mais do que atrasada.
— Tudo bem.— Ela voltou a abraçar Marcos, com um sorriso doce no rosto, por estar com seu “príncipe”, mesmo que o trono fosse feito de cadáveres.
Clara se afastou e se sentou novamente a mesa.
— Posso te perguntar umas coisas?
— Claro — Ele responde tomando o café que agora está gelado.
— Usar esse caderno... não te torna igual a eles?
Ele para e pensa um pouco em silêncio e responde:
— Eu penso que só estou corrigindo a falha da seleção natural. Escolhendo o que tem de melhor na humanidade e passando para as próximas gerações.
Ela engoliu em seco.
— E se eu te pedisse pra parar?
Marcos abaixou os olhos em silêncio. A pergunta ficou suspensa como um caco de vidro entre os dois. Finalmente ele ergue o rosto com tristeza nos olhos. Mas também firmeza.
— Eu diria que existem muitos coveiros por aí precisando pagar as contas.
Clara mordeu o lábio inferior.
— Me promete só uma coisa? — ela pediu, com a voz abafada.
— Qualquer coisa.
— Você pode continuar sendo... você? E não só o Kira?
Marcos fechou os olhos. O nome o acertava como uma coroa de espinhos. Pesada. Mas real.
— Eu prometo. Mas só se você ficar por perto pra me lembrar disso.
Ela assentiu, foi até ele e leva os braços se fechando ao redor dele.
Reigan, do corredor, soltou um suspiro irônico.
— Vocês são ridículos.
Clara se assustou com Reigan e se escondeu no peito de Marcos. Ele riu com a reação inesperada. A garota o olhou e também começou a rir junto, com nervosismo, mesmo com os olhos ainda marejados. Por um breve segundo, entre a sombra de um deus e o sangue das páginas, havia ali um tipo de paz. Instável. Improvável. Mas deles. E nesse instante, é o bastante.
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