Volume 1 – Arco 2
Capítulo 84: Sem chão
[ — Mãe... desculpa. Desculpa... Mas eu não aguento... Não aguento... MAAAAIISS!!
Vul-Vrrrruuumm! Vul!
Um jovem adulto estava de pé, em cima da mureta de proteção de uma passarela, enquanto abaixo, uma torrente de carros e caminhões cortava a noite com luzes e sons indistintos.
Seu rosto... uma ruína de lágrimas.
Nem mesmo havia passado em casa.
Nem mesmo havia tirado a mochila da sua faculdade de engenharia.
Nem mesmo havia tentado lutar contra o pensamento que o levou até ali.
— Eu não aguento mais... eu não aguento mais... — soluçava em murmúrios rasgados.
Não existia mais chão em sua vida. Não existia mais uma razão para viver. Não existia mais motivação para terminar sua faculdade. Não existia mais garra para mudar a realidade da sua vida. Só existia o vazio. Um vazio que não sabia como o preencheria.
Um vazio que doía...
Um vazio que tomou conta da sua alma... há um pouco mais de um mês atrás...
[[ 7 de Dezembro de 2020.
— Hum-hum-húúmmm...-hunhunhun-hummhummmm...!
Em uma cozinha relativamente simples, uma mulher negra com o cabelo crespo bem volumoso e hidratado cantarolava o ritmo de uma música inventada enquanto arrumava uma marmita para levar para o seu trabalho, a realização do início do seu sonho: seu próprio salão de cabeleireiro especializado em cabelos afro.
Vestida de maneira chamativa, cores transbordando sua alegria e ritmo de viver, a mulher acabava de colocar sua comida em um pote de sorvete branco com a tampa vermelha.
Plucuc!
Fechando-a, o leve estalo foi ouvido, e ao olhar para a porta do banheiro, viu seu filho chegando com o rosto inchado de sono, a roupa toda amassada e o cabelo — alto, crespo, bem parecido com o da mãe — amassado de um lado.
O jovem caminhava quase como um sonâmbulo até a cozinha, onde ela o observava sorrindo.
— Não foi pro trabalho hoje? — perguntou ela, enquanto conferia a sacola.
— Nãão... — resmungou ele, Rrnk! puxando uma cadeira para sentar. — Hoje é minha folga...
— Hum... E a faculdade? Vai entrar em férias, ou algo assim?
— Vai entrar hoje... e pra comemorar...! — seu rosto se abriu num sorriso — vou levar a Nicoly pra jantar naquele restaurante de comida do mar lá. Bampu, algo assim. Consegui uma reserva pra hoje à noite.
— Que chique! Precisa de dinheiro? — a mão já procurando a bolsa em reflexo.
— Não, não, não! — exclamou ele, um pouco afobado, lançando suas mãos em negação, tendo de resposta sua mãe cancelando o que ia fazer. — Não precisa! Juntei um dinheirinho... Não é possível que 500 reais não seja suficiente pra ir até lá, comer e voltar.
— Ah... Tudo bem. "Essa menina... Juízo, meu filho." pensou melancolicamente, mas não verbalizou, pois sabia que seu filho se estressava quando a mesma dizia que a namorada dele não era um bom partido.
Segurando a bolsa, Schcsr... enrolou uma sacola em volta da marmita, para ter certeza que não vazaria, e a colocou dentro. Erguendo uma sacola ecológica cheia das toalhas brancas do salão que levou para casa, para que pudesse lavar, foi saindo em direção à porta, dizendo:
— Tchau, filho! Mamãe tá atrasada. Tem arroz, feijão, carne moída e angu no fogão... — disse ao se afastar. Após um leve silêncio, se lembrou de mais um item e comentou: — Ah! Comprei a farofa que você gosta, e o molho de alho tá no armário, tá? Tchau!
Riu da própria desorganização e se apressou. Se virou novamente e chegava na porta.
— Tchau, mãe — meio preguiçoso, respondeu e se ergueu, indo preparar seu café da manhã, pois ainda eram 9h, e como sua mãe ia na igreja dias de terça, quarta, sexta e domingo de manhã... Dias como estes, que ficava em casa, sempre via a mesma cena apressada... e mais uma vez... — Haha... esqueceu a chave do carro de novo.
Olhando no lugar que a bolsa de sua mãe repousou anteriormente, viu a chave do carro com o chaveiro sendo uma foto dela antiga, segurando-o no colo, em frente a uma mata, de pé, em uma rua de terra que lhe trazia muitas memórias... mistas.
Pegou o item e foi até a rua, onde viu sua mãe na mesma típica cena: desesperada, revirando a bolsa pela chave, e o jovem então andou até ela e, Trilcl! balançou o objeto, fazendo barulho e fazendo-a olhá-lo com um pouco de vergonha.
— Obrigada...
Pegou a chave e abriu o carro, guardando as coisas para sair. Mas antes... trocaram um último sorriso.
— Tchau, mãe.
— Tchau, Douglas... Já que tá em casa, lava o banheiro...!
— Aaaaahhrrr! — resmungou, contorcendo o corpo numa cena quase cartunesca... e sua mãe apenas deu um risinho, antes de sair com o carro, olhando pelo retrovisor o filho voltando todo molenga para dentro de casa.
O jovem entrou, voltando até a cozinha... mas, no caminho, puxou o celular do bolso, abrindo a conversa com a namorada, onde a mesma se encontrava online, mas não havia respondido o seu "bom dia, amor" enviado há mais de 20 minutos atrás.
— Está online ainda... Nem visualizou... Dormiu com isso aberto? — resmungou para si, apoiando o celular sobre a mesa e começando a preparar algo para comer.
Sobre a bancada, havia pães de sal, e sem perder tempo, pegou margarina, cortou dois pães, Bilblubl... e encheu um copão de café, se alimentando na frente da televisão, assistindo a um pequeno programa mais descontraído e voltado a fofocas, antes de iniciar o jornal, das 11:50.
Mas... sua sensação e ansiedade eram ruins. Olhava quase que a todo momento se sua namorada já havia respondido ou ao menos visualizado... e nada. Só continuava online, até que o online sumiu, e a resposta continuou inexistente.
— Deve ter acordado agora... já já responde... — murmurou para si mesmo, tentando se convencer... mesmo que já houvesse passado três horas desde então.
O programa chegava ao fim, e o jovem, com uma péssima noite de sono, ansioso pelo encontro, receoso do dinheiro que suou para juntar não dar conta do passeio, se encontrava sonolento.
O peso e a felicidade de conseguir levá-la a um lugar mais refinado, o peso daquilo não ser o seu normal, a felicidade de dar a ela o que sempre colocou na cabeça que ela merecia. O gosto que a mesma tinha pelo luxo e coisas caras... O dinheiro que não tinha, mas gastava, para agradá-la.
As palavras dos apresentadores foram ficando cada vez mais abafadas. Seus olhos iam perdendo força. Seu corpo só aceitava o conforto do assento abraçando-o cada vez mais, puxando-o para o interior, para um conforto onde não sentia dor, ansiedade ou receio... e então... o menino... dormiu.
Vrr, Vrr...
— Uuuuhm...
Vrr, Vrr...
— AmnOOA!
Com um alto bocejo, pegou seu celular vibrando freneticamente de uma ligação ao seu lado no sofá. Seu rosto cansado, mas bem mais relaxado da soneca. O número era desconhecido, nunca havia visto aquilo. Mas, ainda grogue, não se perguntou, não achou que seria alguma operadora, nada.
Atendeu e colocou no ouvido:
— Alô?
Do outro lado da linha, uma voz receosa e hesitante respondeu:
— Boa tarde, falo com Douglas Rodrigues?
— Isso... Quem é?
O homem... fardado de socorrista do SAMU... exausto e com o olhar pesado, sem querer entrar em um assunto descontraído, ou coisas menos importantes que sua notícia, respondeu do hospital, com uma feição nada agradável, sendo levemente insensível e direto demais:
— Douglas... sua mãe faleceu em um acidente de carro poucas horas atrás.
As palavras do homem destruíram o jovem, que não teve reação inicial. Apenas assumiu um sorriso nervoso, de negação, balançando a cabeça e tentando responder, embora palavra nenhuma saísse do seu gaguejo... dois segundos depois, respondeu:
— É-é brincadeira, né? Quem é você? Haha, muito hilário... É aquelas pegadinhas de TV?
Um silêncio desconfortável se instalou por quatro segundos.
— Douglas... desculpe, mas não há pegadinha. Sua mãe sofreu um acidente grave, as coisas estão sendo analisadas, mas ela bateu muito forte na traseira de um caminhão e, infelizmente, não chegou com vida ao hospital. Fizemos de tudo... mas não foi o suficiente.
O homem abaixou a cabeça, visivelmente cansado da luta que teve para tentar vencer a morte de mais uma pessoa dentro daquela ambulância. Mesmo que acontecesse muitas vezes. Mesmo sabendo que não era possível salvar todas as pessoas... doía, e era visível em seu rosto a dor que sentia de ligar para mais uma família para comunicar notícias tão tristes.
— Eu... eu te liguei pra avisar e... bem... pra vocês fazerem o funeral. Prepararem as coisas para quando o corpo voltar do IML. Peço desculpas se fui insensível, peço desculpas se fui rude. Mas, eu-eu, eu não poderia lhe ligar rindo, falando normalmente diante de uma tragédia assim. Meus pêsames pela sua mãe... e... desculpa mais uma vez. Entrarão em contato com você, ainda hoje ou amanhã com a liberação para o enterro. Desculpa mais uma vez, e... fique bem...
Pip.
O som frio da ligação encerrada ecoou no ouvido do menino como o último prego em seu caixão emocional.
O jovem continuava em choque.
Não retirava o aparelho do ouvido.
Uma lágrima, fria e solitária, escorreu do seu olho esquerdo até o queixo, queimando sua pele como ácido. Sua respiração foi se alterando, ficando cada vez mais rápida. Cada respirada exigia uma nova, mais rápida e forte. O ar não entrava. A falta de ar o engolia.
Douglas não sabia o que fazer.
Pah...
Caiu deitado no chão, a mão no peito, o lacrimejo sem controle junto da sua crise, sem avisos... Seus olhos tremiam e tremiam como vibrações de um mar agitado. Seu corpo bambeava, seus braços ficando fracos. Sua mão esquerda tentando erguer o celular... não tinha forças...
O celular virou um retângulo de puro chumbo, e a única coisa que restava era sua motivação para conseguir forçar e erguer aquilo... puxar aquilo para perto de si, mesmo destruído, mesmo quase desmaiando sem ar... Douglas queria... Douglas precisava ligar... precisava ligar para sua mãe.
Seus olhos se fechavam, seu corpo reagia à falta de ar.
As vistas ficavam cada vez mais cinzas e fracas, quando o seu dedo conseguiu tocar no símbolo de telefone, no contato de sua mãe...
Pii... Piiii... Piii...
Cada apito da ligação afundava mais o espírito do menino no caos...
Até que...
— Alô?
A chamada foi atendida.
Uma voz feminina ressoou do aparelho... mas não era sua mãe.
— Mãe! Mãe!
O menino conseguiu respirar e evitar o desmaio... Mas, quando o oxigênio entrou no seu cérebro, ele notou que não era ela... a voz era muito jovem. Era de uma estagiária no Instituto Médico Legal (IML), aprendendo sobre sua futura profissão.
Quando a jovem escutou a voz desesperada de Douglas... ficou sem reação, e não conseguiu responder. Olhou para o lado, na sala quase inteiramente em inox, e lá via o corpo aberto da mãe do rapaz.
A menina se sentiu muito mal, mas sua responsável não se encontrava no local naquele momento.
"Acho que eu não podia ter atendido..." Ficou receosa de procurá-la para entregar o celular. "Falar que foi sem querer não vai colar... o que eu f..." Enquanto procurava uma saída sem precisar dizer o que aconteceu para o jovem...
O silêncio...
O vazio.
Douglas mesmo desligou o aparelho.
Com a cabeça apoiada no chão, o corpo sem forças para levantar... apenas lamentava e chorava sem parar. Sem saber o que fazer, o que falar... Em meio às lágrimas, abriu os olhos, e mesmo com a tela do seu celular toda molhada, notou que o "visto azul" surgiu na sua mensagem enviada para sua namorada.
O jovem se sentou no chão, esfregando a tela na sua blusa, secando-a rapidamente, depois que se lembrou do encontro que tinha naquele dia. Quando o fez, abriu a conversa e ainda chorando, ligou para ela... mas... a ligação foi recusada em tempo recorde.
Olhou para o celular e clicou novamente em ligar, mas, mais uma vez, a ligação foi recusada. Só que, diferentemente da primeira, foi acompanhada com uma mensagem, que o mesmo leu baixinho:
— "Para de ligar! Não tem dedo, não? Escreve."
A forma grosseira e sem educação era invisível... Mas ele não notou como foi tratado, fez o que lhe foi pedido e, tremendo, digitou:
— "Minha mãe sofreu um acidente de carro e morreu..."
A sobreposição de digitação surgiu.
Douglas se sentiu sufocado, sem ar, esperando a resposta, e a mensagem da moça logo veio:
— "Chamei a Duda pra ir no restaurante, tá? Não esquece o cartão. Você que vai pagar, viu, amor?"
O menino ficou levemente sem reação... e ainda com o corpo tremendo violentamente, sem o seu controle, digitou:
— "N-não posso ir. E-e... E eu só reservei dois lugares... Não consigo ir. Tô sentado no chão... chorando... desculpa..." — Embora em suas mensagens o mesmo não gaguejasse, enquanto escrevia, murmurava em lágrimas cada palavra.
...Foram mais de dez segundos de silêncio... sem resposta. Dez segundos agoniantes... sem chão, até que a menina respondeu:
— "Ah."
Aquele "Ah" soou de forma cruel, destruindo-o ainda mais, por se sentir insuficiente naquele momento. Ficou paralisado, olhando o aparelho, sem saber o que responder depois daquilo. Como continuar, como tentar alegrá-la... a única coisa que tentava fazer todos os dias.
Mas... não tinha forças para fazer brincadeiras, palhaçadas... Queria apoio. Um gesto. Um abraço.
— "Acho... acho que você não leu. Minha mãe morreu. Tô acabado... Pode vir aqui hoje...? Ficar um pouco comigo?"
Sua mensagem foi enviada... e longos três minutos se passaram sem resposta e nem mesmo uma visualização da mensagem... Douglas continuava com o aparelho na mão, seus olhos focados no "online" abaixo da foto da menina branca de cabelos castanhos.
Em uma piscada de olhos melancólica, notou a visualização azul, e logo o "digitando", uma alegria completamente inútil perante o seu desamparo foi levemente sentida. Uma leve sensação de companhia cresceu... mas em seguida foi destruída.
— "Tava no telefone com a Duda. Você disse que comprou duas entradas, né? Já que você não vai... me passa as entradas aí, e eu vou com ela. Pra não ser em vão a reserva, sabe? Posso passar na sua casa pra pegar o seu cartão?"
...
...
O silêncio...
Por um longo momento... o silêncio reinou.
O menino continuava olhando para o celular.
Sem lágrimas.
Sem força.
Sem palavras.
Com expressão inalterada, ergueu seus dedos e digitou...
— "Sim."
Quase como um "Ctrl+C, Ctrl+V", a resposta chegou:
— "Ok, te amo, meu amor!"
...E mais uma vez... só o silêncio do ambiente sendo cortado pela televisão baixa foi ouvido, enquanto, roboticamente, seu semblante continuava, e seus dedos se moviam em uma resposta, no tempo que a mesma também digitava:
— "...Também te amo."
Quando mandou, a dela também surgiu:
— "Me passa aí, que já vou mandar pra ela o dela."
O menino abriu o comprovante do registro como uma ordem que não podia ser recusada e nem atrasada na conclusão, e enviou os dois... logo em seguida, digitou com uma esperança no peito, tentando conseguir a sua migalha do dia:
— "Vem mais cedo, pra ficar um pouco... Queria te ver."
...A resposta... bem... nunca chegou. Nem mesmo seu pedido foi visualizado.
O dia foi passando, e o menino não conseguia comer, andar, reagir, pensar... Apenas continuava sentado, olhando para a conversa no celular, fritando os seus olhos na medida que escurecia, e a luz do aparelho se intensificava na escuridão.
Um farol fúnebre para um náufrago sem salvação.
De repente, uma notificação, que parou por um momento o seu coração: "Resta 20% da carga da bateria."... Algo... fútil. Ainda mais em um momento como este, mas, pensar em não ter bateria para responder à namorada sobressaiu por um momento os seus pensamentos, e o menino correu até o quarto para pôr no carregador.
Tah, tah, tah...
Três fortes batidas ecoaram da direção do seu portão.
— É ela!
Acreditando ser ela, saiu correndo até lá, e o abriu, tentando pôr um sorriso no rosto para recebê-la, mas era difícil, embora tentasse muito. Quando abriu, a viu toda arrumada, um vestido preto, curto e justo, com um decote razoavelmente generoso.
Quase babou vendo sua namorada e, mais ao fundo, um carro novo, bonito, de cor prata. Havia um cara mais velho que ele, no volante, forte, sem tatuagens, mas visivelmente bem arrumado, como se estivesse indo a algum lugar que exigisse uma roupa mais social e discreta.
Atrás, Douglas viu Duda, conversando com esse homem. Mas seu olhar logo se voltou para sua namorada, olhando-o levemente de baixo. Suas alturas quase a mesma.
— Vo...
— Cadê o cartão? — cortou-o friamente... e foi possível escutar uma leve gargalhada compartilhada pelos dois dentro do carro, escutando a conversa do casal.
Douglas fingiu não ter escutado. Queria acreditar que era apenas coincidência.
— T-tá no meu quarto... — balbuciou sem jeito.
— Pega lá.
— ...Tá.
Sem questionar, virou-se e foi. Pegou o cartão. Voltou ao portão... e estendeu-o para ela. A moça já ia se virar, quando o jovem tentou novamente conseguir uma migalha, um último suspiro de dignidade:
— Não vai ficar um pouco...?
A menina olhou rapidamente.
— Aaah, a reserva é pra daqui a 20 minutos. Tenho que ir lá.
— Mas eu disse pra vir mais cedo...
— Disse? — Nicoly abriu o celular, olhando a mensagem, respondendo com um tom quase ensaiado: — Nossa... não vi. Tava muito ocupada. Depois ficamos juntos um pouco, tá?
O rapaz olhava de tempos em tempos para o carro.
— Quem é aquele cara?
A menina se virou rapidamente para o carro, olhando, antes de voltar os olhos para ele, com certa impaciência.
— É o cara que veio quando a Duda chamou um motorista.
— Ah... Por que a porta do passageiro na frente tá aberta?
A menina olhou de novo, vendo a alça da própria bolsa pendurada para fora do banco, a porta entreaberta, revelando um descuido perigoso. Percebendo o seu erro, se virou rapidamente com uma abordagem mais agressiva:
— Por que tá perguntando tanto? Quer dizer o quê com isso?
— Nnn-nada... só perguntei... — respondeu ele, recuando como um cachorro que apanhava sem saber o motivo.
— Rum! Vou ir lá, se não vou me atrasar. Tem quanto no cartão?
— ...500 reais.
— Só? Sério?
O tom de deboche foi como mais uma punhalada.
Douglas assentiu, a voz encolhida dentro da própria garganta.
— É só vocês duas, deve dar pro jantar — murmurou.
— Arfh... Tão tá, tchau.
Nicoly se virou, irritada de propósito, mas Douglas, que ainda tentava segurar os cacos do coração, não viu o sorriso zombeteiro que ela trocou com a amiga dentro do carro, olhando-a tratá-lo daquela forma.
— Me manda mensagem avisando que chegou em casa bem, tá?
Não o respondeu...
Pahf!
A batida da porta respondeu por ela, e logo sumiram pela rua, seguindo até a avenida.
O jovem permaneceu ali parado alguns segundos, encarando a rua deserta, até o som do motor sumir na avenida. Então, trôpego, voltou para dentro de casa. Indo de volta para o quarto... Vrr, Vrr... onde viu o celular vibrando no carregador.
O segurou e atendeu, seu coração pesado, em pedaços:
— Alô?
— Douglas Rodrigues?
— Sim...
— O socorrista que lhe ligou mais cedo deixou o seu número comigo, para lhe ligar e lhe dar mais informações sobre o que aconteceu. Bem... Pegamos o celular da sua mãe para analisá-lo, e também testemunhas oculares do acidente, e descobrimos o que aconteceu para que sua mãe se acidentasse. Posso... eeeh... quer que eu diga ou prefere ficar sem saber?
Douglas demorou alguns segundos para responder.
— Pode dizer... — sua voz saiu fria, não sem sentimento, fria de não sentir seu corpo mais vivo.
— Sua mãe se distraiu mexendo no celular. Houve um engarrafamento na avenida em questão. Um caminhão que transportava laranjas tombou, e muitos veículos tiveram que parar para esperar. O que acontece é que sua mãe, olhando para o aparelho, não viu quando o caminhão na frente dela começou a frear, e o pior aconteceu.
— Snrrriiif...
O som de uma fungada com o nariz entupido foi escutado pela moça que passava as informações para Douglas, mas a mulher continuou dizendo, mesmo notando o desamparo e o choro que se iniciava do outro lado da ligação:
— Acontece que, olhando o celular, quando o mesmo foi achado, as testemunhas disseram que estava aberto no aplicativo do banco. Quando fomos analisar, tinha uma transferência segundos antes do acidente. Sua mãe estava pagando a conta da sua faculdade.
Os olhos do jovem se abriram, com o peso ficando ainda maior.
— Olhando os e-mails, vimos que as parcelas estavam atrasadas. E todo o dinheiro que ela tinha no banco, no dia de hoje, foi usado para pagar todos esses meses. Olha... e...
Todas as palavras seguintes da moça ficaram mutadas... Na mente do jovem, a única coisa que era escutada era que a culpa era dele. A culpa era dele de não ajudar financeiramente a mãe com as contas, ou ao menos com a faculdade que o mesmo fazia.
"Ela não disse que tava sem dinheiro... não disse que precisava..."
Sua cabeça começou a girar.
Nunca foram ricos, nunca tiveram muito, mas frases simples voltavam como socos que o mesmo nunca havia notado, ou ao menos fingia não notar. Um dia que faltou leite, e mesmo sabendo que sua mãe preferia beber café com leite, aceitou a bebida quando a mesma disse que não ligava de tomar sem.
O dia em que ela "esqueceu" de trazer carne, e fez o restinho de carne moída só para ele.
O dia que deixou de comer um bolinho de chocolate que ganhou de uma cliente, dizendo que não queria comer doce, dando-o para o filho, que nunca deixaria de aceitar uma guloseima.
Sinais ocultos, dificuldades... escondidas.
Quando seus ouvidos voltaram a funcionar, escutava o encerramento das falas da moça:
— ...Devido a isso, pode ligar para uma funerária. O corpo da sua mãe será liberado amanhã de madrugada, então pode marcar o enterro para o horário que quiser amanhã. Dependendo da escolha da sua família.
— Não tenho família... — A voz dele saiu como um sussurro fraco... quase um pedido de socorro.
— O-oi? — A atendente não ouviu, o sussurro foi quase um sopro, e o tom dela vacilou.
— Só é eu e ela...
O silêncio cortou a linha com grosseria.
Demorou alguns segundos até a mulher conseguir responder, com a voz baixa, tímida:
— ...A-ah... Entendi... Desculpe. Mas... você conhece alguma funerária?
Douglas permaneceu mudo por alguns segundos antes de responder:
— ...Não.
— Vou enviar um número de uma que trabalha conosco, caso queira, e você pode pedir tranquilamente o horário e todas as informações que quiser, que os atendentes irão lhe tratar super bem, e explicar tudinho, tá bom?
— Tudo bem... obrigado...
O jovem desligou a ligação, e pouco tempo depois recebeu por mensagem o número no qual deveria ligar. Sem perder muito tempo, respirou profundamente, seu nariz escorrendo um pouco, e ligou para a funerária... que não demorou muito para atender:
— Boa noite! Funerária Bela Esperança, em que posso ajudá-lo?! — A voz do outro lado da linha era animada, para cima... o que não corroborou com o clima.
Douglas, vendo o abismo de diferença de espírito dele para com a pessoa que lhe atendeu — sua tristeza, desamparo e desespero, em comparação com a alegria e animação da pessoa — começou a... chorar.
Um choro que foi possível de se escutar do outro lado da linha... deixando a atendente constrangida e com um forte sentimento de culpa. Era algo normal: atender ligações, reservar funerais... tudo normal. Mas acabou se esquecendo que, do outro lado, há um humano, uma pessoa que pode estar no pior momento da sua vida.
A ligação se seguiu em silêncio por um momento, mas a moça foi tentando se desculpar aos poucos, sua voz doce como mel, conseguindo guiar a conversa até que marcaram para o dia seguinte. E Douglas ficou menos mentalmente fragilizado.
Ficou conversando por um bom tempo, a moça tentando ajudá-lo da forma que podia, aconselhando, dando uma visão de futuro...
Mas tudo foi em vão... No segundo que a ligação acabou e o menino se sentou no chão do quarto, com as costas apoiadas na cama, olhando para a tela do celular, na conversa da namorada, enquanto o aparelho carregava e iluminava o rosto do jovem durante a noite toda... tudo havia sido em vão.
O jovem ficou lá, sem conseguir dormir, passando mais da metade do dia sem comer... esperando sua namorada responder que chegou em casa bem... Isso não veio, mas um vídeo — um vídeo publicado no status da menina — ele viu.
Sua namorada filmando a Duda, beijando de língua, em uma balada, o mesmo cara que tava dirigindo o carro.
Foi um leve choque.
— Não disse que ia sair depois do jantar... Esse cara? Esse cara era aquele? — sussurrou para o vazio.
Um pouco confuso, abriu o aplicativo do banco, e viu: sua fatura estava em R$ 1.200. Seus olhos se arregalaram, olhando os itens comprados. Vendo que seu dinheiro estava sendo usado em um bar, drinks e mais drinks, sem aviso prévio.
Abriu a conversa e ligou para a menina... que desligou na cara dele.
O desespero.
A dor.
O medo.
Tudo gritava em sua mente ao mesmo tempo.
Então, digitou:
— "Eu não tenho esse dinheiro! Para de gastar tanto!"
No mesmo instante... uma notificação apitou: "Compra no débito negada. Compra de R$ 237,98 em BAR LACARTE negada por falta de saldo. Quinta-feira, 01:03." Mas, quando correu para bloquear o cartão... era tarde.
A menina passou no crédito, e naquele momento, o jovem se via endividado com mais uma noite cara da sua namorada.
Mais um mês inteiro de trabalho com horas extras, caso desse para faltar ou chegar mais tarde em sua faculdade no período da tarde/noturno.
A mensagem?
Não foi respondida.
O jovem?
Ficou olhando a conversa durante a madrugada inteira, vendo que diversos status eram adicionados — Duda beijando um... beijando outro... Nicoly rindo, filmando de perto, quase entrando com o celular no meio das línguas e amassos... mas uma resposta, ou qualquer sinal de afeto, nada lhe era enviado.
Seu rosto acabado, seu corpo sem forças para nada.
— "Me acompanha no enterro da minha mãe amanhã, às 9 horas?" — mandou ele... cheio de esperança... mas... inutilmente.
A manhã chegou, e o pacote funerário que escolheu tinha incluso o garoto ser pego em casa de carro, e levado até onde aconteceria o enterro. O jovem, que havia virado a noite olhando a maldita tela do celular, se arrumou como conseguiu: uma calça jeans velha, uma camisa social amassada, um tênis gasto.
No espelho, não viu um jovem — viu apenas o reflexo de alguém quebrado.
Quando o carro da funerária chegou, entrou em silêncio.
O motorista respeitou o luto, sem palavras, deixando apenas o rádio tocando baixinho uma música melancólica.
No caminho, olhou para o celular, e viu que sua mensagem foi visualizada às 5h da manhã. Sendo 8h... a resposta não chegaria.
Seus dedos tremeram levemente.
Seu coração... também.
O enterro foi... frio... solitário.
Não havia ninguém, além dele.
Não tinha amigos, era zombado por usar um colar de girassóis, e nem sabia o motivo de ninguém conversar ou apenas o tratar normalmente. Devido a isso, deixou de usá-lo fora de casa.
Saía usando-o para o trabalho — empacotador de compras em um supermercado — e, fora de casa, o tirava por vergonha. Ia para a faculdade, e quando tinha certeza de que sua mãe não o via mais, retirava-o.
Além de ser muito sozinho, não convidou ou pensou em conseguir comunicar alguém que trabalhava com sua mãe, amiga ou cliente. Era só ele e ela, assim como sempre foi. Era apenas Douglas, de frente para o caixão aberto de sua mãe, deitada em flores baratas, aguardando o momento de ser levada para sua nova casa... o solo.
O rosto dela ainda parecia gentil.
Parecia que ia acordar, brigar com ele por esquecer de lavar a louça, ou sorrir dizendo que tinha deixado café pronto na garrafa.
Ele sorriu.
Um sorriso que doía mais do que qualquer soco.
— Você está linda... mãe.
Suas palavras... seus elogios... sua força, para aguentar e não chorar... Douglas tentava. Tentava com a alma não desabar perante ao caixão, mas foi inevitável. O menino se ajoelhou, caiu lentamente, apoiando os braços, não conseguindo olhá-la e aceitar que aquilo de fato aconteceu.
Tudo... acabou. O mundo acabou, a cor, a beleza, tudo sumiu.
Um tempinho se passou.
Sua mãe foi selada, o caixão foi fechado.
O caixão foi abaixado...
O chão foi coberto... o corpo foi enterrado.
A vida seguia para todos — menos para ele.
Sua alma, seu semblante ainda destruídos.
O carro da funerária o levou de volta. Mas, ainda no caminho, Brr... seu celular vibrou, e quando o olhou, era sua namorada. Seus olhos se iluminaram com algo que ainda ousava chamar de amor.
Mas ao abrir a mensagem...
— "Fui na sua casa e você não tava. Eu ia com você, poxa! Por que não me esperou?"
Antes mesmo de responder à mensagem da garota, a mesma mandou outra:
— "Ah... eu taquei o seu cartão pelo muro."
Era claro, uma mentira descarada.
Sua intenção era só devolver o objeto sem mais utilidade alguma. Mas a sua fala, dizendo que queria ir, falou mais alto do que a verdade das mensagens. Douglas respondeu imediatamente:
— "Mandei mensagem e você não me respondeu. Achei que não queria..."
A visualização foi imediata, o que o deixou levemente feliz, já que geralmente demorava minutos para responder. O "digitando" surgiu, e logo as mensagens chegaram:
— "Você deveria ter imaginado, né? Cacete. Óbvio que eu ia. Nossa! Isso me estressa, parece que não me conhece! Saco."
A culpa foi jogada como uma âncora no peito já afogado do garoto.
Sem reação e se sentindo pressionado, respondeu rapidamente:
— "Desculpa, eu devia ter esperado!"
Mas o que a menina queria veio logo em seguida do seu jogo.
— "Eu queria ficar com você aí hoje, mas já que não quer, não vou. Tô chateada. Me arrumei à toa por sua culpa."
O "online" sumiu, e Douglas começou a digitar muito rápido.
— "Desculpa!"
— "Desculpa!"
— "Desculpa!"
Mensagens e mais mensagens em seguida... mas chegou uma hora que nem mais eram enviadas e, ainda no carro, voltando para casa, se viu em lágrimas mais uma vez, com o mental destruído, e seu coração... estilhaçado. ]]
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