Volume 1

Capítulo 4.1: Peso da Responsabilidade

A imagem do garoto carbonizado foi gravada em minha mente como uma cicatriz ardente. Ainda podia sentir o calor mortal irradiando das pontas dos meus dedos, aquele mesmo calor que roubara a vida daqueles olhos assustados.

Um soluço agonizante escapou de minha garganta. Ergui os olhos marejados para o corpo inerte à minha frente. Sua pele enegrecida e os resquícios de agonia gravados em suas feições eram um testemunho vivo de meu erro fatal. Como pude ser tão idiota? Salvar alguém quando mal entendia como funcionava os poderes que tinha era estupido.

Meus olhos se recusavam a se desviar do corpo sem vida à minha frente, agora transformado em uma silhueta sombria contrastando com o branco ao redor. E agora, o que fazer com ele?

O vento voltou a uivar implacável, fazendo a neve dançar a nosso redor. Se eu não agisse, não demoraria até que o corpo do garoto ficasse coberto, desaparecendo sob o branco infinito. A ideia de abandoná-lo àquela sepultura gélida, sem nome ou honras, roçou minha mente, mas era perturbadora demais.

Respirei fundo, buscando focar minha mente atormentada. Havia energia suficiente em mim para lhe dar um destino diferente. Ainda abalado emocionalmente, envolvi seu corpo em um casulo liso de gelo azulado. Assim ele estaria protegido por tempo suficiente para não apodrecer.

Então, ergui-me, segurando a extremidade da estrutura congelada. Passo a passo, iniciei a descida pela montanha, determinado a, pelo menos, conceder-lhe um repouso digno em outro local. Era tudo o que eu ainda poderia fazer por ele.

A descida se desdobrava em um lento e doloroso processo. A cada passo, meus pés afundavam na neve fofa até os joelhos, transformando o caminho em um percurso árduo. O vento cortante se infiltrava a cada inspiração, transformando o ar em agulhas dolorosas que perfuravam meus pulmões.

No entanto, nem todos esses obstáculos tangíveis eram comparáveis à tortura que assolava minha mente. A visão do garoto carbonizado permanecia impregnada em meus pensamentos, uma imagem perturbadora que parecia ter sido gravada com fogo em minhas retinas.

Meus olhos estavam fixos no bloco de gelo que eu arrastava enquanto seguia o declive íngreme. Dentro daquela câmara congelada, o corpo do menino jazia, preservado e protegido do inexorável avanço do tempo. Contudo, nada poderia salvá-lo das consequências do meu ato.

Cada metro que eu percorria se tornava uma pequena expiação pela minha imprudência. Embora eu fosse impotente para reverter o dano, havia uma oportunidade de honrar aquele inocente por meio de um último ato de compaixão.

E assim, continuei minha jornada solitária. A culpa dentro de mim ardia mais que ficar em um vulcão em erupção. A simples ideia de proporcionar um fim digno àquele garoto mantinha minha determinação inabalável.

Enquanto descia a montanha, o vento gradualmente arrefecia até se transformar em uma brisa suave. No horizonte, os contornos de estruturas começaram a emergir, anunciando a proximidade de uma vila adiante. Essa é a primeira civilização que encontro, o que me deixa feliz por tela encontrado, mas o fator que acabou por me levar a ela não me deixa feliz.

Foi sorte tela encontrado, foi azar ter encontrado o garoto e feito o que fiz.

Passo após passo dolorosamente conquistado, desci pela encosta alva. Vergonha, nervosismo e ansiedade se misturavam e se confundiam no meu interior. Há muito tempo não sentia minha barriga se remexer tanto quanto da vez em que bebi lava como se fosse água.

A montanha íngreme me fez escorregar uma e outra vez na descida, não tinha talento para andar em montanhas de neve. O caixão de gelo do garoto quase foi ladeira abaixo umas duas vezes se não fosse minha telecinese, uma rachadura apareceu na lateral, quase estourei o corpo da criança junto do gelo.

Nunca tinha praticado a telecinese depois que consegui dominar o básico dela, o que foi provado pela falta de delicadeza da técnica. Talvez eu deva começar a treinar depois que recuperar o livro. Sim, vou fazer isso. Vou revisar todos os conteúdos!

Finalmente a neve diminuiu e a terra marrom escura com o verde das plantas começou a aparecer. Aos poucos, fui passando entre a mata que rodeava o lugar abaixo da montanha, folhas e galhos se prenderam ao meu redor e a nave já havia começado a derreter.

Esbarrar em pedras, ficar preso a galhos, começar a derreter; os problemas com o caixão de gelo começaram a se acumular, tive que fazer algo a respeito. Usei minha aura de gelo para manter o caixão de gelo que congelava tudo ao meu redor. Um rastro branco se formou por onde passei.

As casinhas de madeira começaram a aparecer. A estrutura mal acabada das casas, uma cerca com estacas de madeira e pessoas com roupa de peles e penas davam um ar rustico ao local. Esse era o nível de tecnologia de todo o planeta ou era um estilo de vida?

Aproximei-me com passos vacilantes, puxando o bloco gelado atrás de mim. Um homem em cima de uma torre de vigia gritou algo enquanto apontava para mim, as poucas pessoas do lado de fora correram para dentro da vila. Será que sou muito feio?

Dei a volta para chegar ao portão onde eles tinham usado para entrar, porém, o homem apontou um arco em minha direção e atirou. A flecha atingiu meu olho e a ponta de pedra afiada se quebrou no impacto. Larguei o garoto no chão e passei a mão no meu olho, mesmo que não doesse ainda entrava sujeira no olho.

— Cara, isso não foi legal. Poderia ter perdido um olho.

Assustado que sua flecha não teve efeito, ele gritou algo para o pessoal abaixo dele. Não liguei muito e fui até a porta. Acho que seria falta de educação entrar sem bater. Mas antes que eu pudesse bater no portão de madeira, dois homens jogaram um líquido em mim. Essa água soltava fumaça e tinha calor. Água fervente?

“Isso até… que foi relaxante.”

A sensação foi confortável. Esse foi meu primeiro banho digno desde que tomei banho no planeta de gelo. As águas de lá eram quase todas congeladas. Meu devaneio passou e recobrei meu juízo. Tenho que devolver o corpo do menino.

Dei três batidas no portão, a reposta foram gritos de pavor.

— O que eu fiz? Não. Devo considerar a diferença de cultura…

Comecei a murmurar meus pensamentos, mas os sussurros do outro lado se transformaram em um grito de guerra, logo a porta foi aberta com uma multidão enfurecida de adultos com porretes de madeira e lanças com pontas de pedra. Seus gritos eram palavras ininteligíveis. Surpreendeu-me por um segundo, só que percebi que nenhum deles avançou além do portão.

Todos naquela multidão tremiam, mas não de raiva. Não era por causa da minha habilidade, já havia desligado ela desde que fui atingido no olho. Observei melhor e percebi algo. Eles estão com medo? Por quê?

“Eu não sou alguém estranho… Só estou com um pano na cintura, mas não é pra tanto.”

Com as mãos ao alto, em sinal de paz, dei dois passos para trás. Não adiantou muito. Aos poucos as vozes dos que gritavam ficavam roucas e algumas tosses surgiram na multidão. Isso é muito desconfortável.

Soltei um suspiro, exausto mentalmente com toda a gritaria. Com a telecinese puxei o bloco de gelo a frente do grupo. Todos se assustaram com a ação repentina do objeto. Não é todo dia que um bloco de gelo voa a sua frente.

Foi então que uma mulher saiu do grupo, aproximando-se do bloco de gelo que contém o garoto. Seu rosto se contorceu em uma expressão de puro sofrimento e ela caiu de joelhos, derramando lágrimas silenciosas. A vila toda ficou em silêncio. Aquela reação dizia tudo.

“Acho que meu trabalho terminou.”

Em respeito à dor dela, afastei-me em silêncio e deixei que a vila fizesse seu luto. Eu havia cumprido meu propósito ali.

O sol caia cada vez mais, passando da linha do horizonte. Estava quase de noite naquele mundo. Poderia voltar mais rápido voando, mas só poderia procurar por alguns minutos antes de ficar escuro. Não fazia diferença em apressar-me.

Deixei-me cair exausto sob a sombra acolhedora de uma árvore. Os raios de luz amarelo junto do ambiente verde emergiam memórias do fundo da mente. “Casa”, pensei assimilando o sentimento.

Cada vez que tentava lembrar sobre minha vida passada, um borrão preenchia toda a memória. Pessoas e lugares eram as mais borradas, mas objetos podiam ser lembrados isoladamente — lembrava de ter um telefone, uma mochila, roupas, livros e mais alguns itens do cotidiano.

Fechei os olhos, imaginando minha antiga vida. Fui uma boa pessoa? Se eu soubesse quem era, sentiria saúdes? Tem alguém que sente minha falta? Todas essas perguntas foram recebidas pelo som do vento da noite.

Após tanto remoer meu passado, comecei com o presente. A culpa pela morte do menino ainda persistia, não seria tão simples quanto entregar o corpo e pronto. Talvez essa culpa nunca me deixe em paz. Assim se arrastou a noite até o raiar do dia, num ciclo infinito de culpa.

“Acho que já está na hora de ir…”

Antes que levantasse, passos na grama chamaram minha atenção. Uma garotinha de pele morena se aproximava. A jovem estava vestida com pele de animais e trazia uma bolsa nas costas. O cabelo dela era longo e castanho. A bolsa da garota estava quase transbordando de algo amarelo claro.

“Por que está vindo pra cá?”

No instante em que meus olhos se encontraram com os do vigia da torre, sua postura ficou mais alerta. A madeira do arco brilhava sob os primeiros raios de sol, a corda esticada e flecha apontada. O que está acontecendo?

Ela parou com determinação à minha frente, abaixando a bolsa das costas e depositando-a no solo com um movimento suave. Enquanto ela retirava o que quer que fosse do saco, um sussurro sutil e característico de folhas secas roçando umas nas outras se fez presente. A jovem então se virou na minha direção, revelando o conteúdo amarelo que segurava.

As fibras secas, semelhantes a capim ou palha, eram visivelmente amareladas, destacando-se em contraste com o cenário ao redor. O aroma leve e delicado de capim seco ou palha flutuou com a brisa em minha direção.

— Isso é para mim?

O gesto involuntário respondeu à minha pergunta. As mãos que seguravam o punhado tremiam com uma intensidade visualmente perceptível. Era como observar as folhas de uma árvore agitadas pelo vento, um movimento rítmico e instável.

“O quê? O que eu fiz?”

— Ei, criança, o que você…

O som suave das lágrimas caindo ecoava no ambiente, quase como um murmúrio de tristeza. Seu corpo tremia em consonância com a intensidade da cena, como se estivesse imerso em um turbilhão de sentimentos.

Supostamente, não deveria ser eu que estivesse chorando de medo? Tem um arco apontado para mim! Mesmo que não me afete. 

“Essas situações difíceis com certeza não são meu forte.”

“Vamos, faça algo! Não deixe uma menina chorando na sua frente”, gritei internamente. Levantei-me de forma decisiva e me aproximei rapidamente. O movimento repentino a fez estremecer, e ela ergueu a cabeça com uma expressão temerosa. Tomei suavemente aquela palha verde das mãos da garota, observando o leve tremor em seus dedos.

— Feliz agora?

Minha pergunta parecia trazer certo alívio à garota, mas assim que percebeu minha mão descendo com a palha, seu olhar se encheu de apreensão. O que estaria passando pela sua mente? Lentamente, elevei minha mão acima da cintura, e seus olhos a seguiram, enquanto sua expressão se tornava mais suave. Decifrei o que ela desejava através de movimentos simples. Quando estava muito baixa, sua tristeza transparecia; quando alta demais, sua confusão se acentuava. Finalmente, encontrei a altura certa.

“Ela... deseja que eu coma isso?” Testei minha teoria aproximando aquilo do meu rosto. A criança tinha os olhos brilhando em resposta, confirmando minha suposição. “Se isso a fizer sair daqui... eu faço”, pensei, determinado. Abri minha boca relutantemente e devorei a palha, mastigando-a devagar. Seu gosto terroso invadia minha boca.

Um calor suave preencheu o ambiente quando a garota sorriu, como se seu contentamento irradiasse uma sensação reconfortante. “Que é isso? É tão bom…”, pensei ao quase chorar de emoção.

Com um sorriso amigável, ela estendeu o saco na minha direção. Aceitei-o com um suspiro suave, consciente de que recusar poderia criar um som de tristeza no ambiente, algo que desejava evitar.

Tento alcançar a bolsa, mas antes que meus dedos o toquem, a jovem agarra minha mão com firmeza. Seus leves puxões e seu olhar firme enquanto falava, sugeria algo como 'me siga'. E a segui, curioso com o que ela queria comigo.

“É, acho que não deveria ter ido…”

Um minuto depois de concordar em acompanhá-la, a jovem tentava persuadir os mais velhos a me permitir entrar na vila. A situação se tornou caótica quando fomos barrados no portão pelos guardas e mais pessoas se aproximaram, aumentando as brigas e gritarias dirigidas à garota. Eu não conseguia compreender suas palavras e não tinha interesse em entrar naquela vila, então não havia motivo para interferir.

Por fim, um ancião de cabelos brancos e barba longa se aproximou, auxiliado por outro homem. A jovem demonstrou mais calma com a chegada deles. Ela e o velho trocaram palavras e o ancião proferiu algo que fez as pessoas baixarem a cabeça em silêncio. A garota pulou de alegria, mas logo se conteve.

“Ótimo, uma decisão foi tomada e parece que foi favorável para a garota.”



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