Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume I

Capítulo 1: De ex-modelo a ex-príncipe (parte I)

Há séculos, filósofos da Terra quebram a cabeça pensando na brevidade da vida e no quão insignificante a humanidade é no universo. Peppe, por outro lado, nunca deu bola pra isso. 

Ele não lia Filosofia. 

O ex-modelo preferia aproveitar cada segundo da fama que tinha. Mulheres bonitas, champanhes caríssimos, festas que duravam até o amanhecer. Só que, agora, estava ali: em coma, largado numa cama king size de um hospital de luxo.

Mesmo inconsciente, algumas palavras escapavam do burburinho dos médicos.

— Doutor Hermes; Doutor Carlos, acho que já podemos desligar os aparelhos. O que acham?

— Hm... Ele ainda não teve morte encefálica, mas, como não tem família, ninguém vai reclamar.

— Pois é, também concordo. Vamos acabar com o sofrimento dele. Enfermeira, pode desligar — disse o outro médico, dando o veredito final.

Se pudesse, Peppe teria gritado com todas as forças que lhe restavam.

Com o raciocínio lento e sem a menor capacidade de revoltar-se, contudo, viu a consciência ir embora, enquanto as máquinas daquele hospital de elite bebiam cada gota de oxigênio de seu corpo debilitado.  

Memórias embaralhadas começaram a rodar em sua mente. Ele se lembrou de estar na rua, conferindo o cabelo no reflexo de uma vitrine, quando uma sombra o engoliu. Uma dor absurda atravessou suas costas. E, bem... fim. Era só isso.

Peppe não se odiava. Também não se arrependia. Fez o que quis, viveu como quis. Sua vida talvez não tivesse sido feliz, mas também estava longe de ser triste. Amigos eram poucos, inimigos menos ainda — com exceção dos médicos. 

Como era órfão, ninguém ficaria realmente abalado com sua partida. Talvez saísse uma notinha na TV. Talvez.

***

— Disgraça! Morri pra porra de um piano!

O rapaz estava puto. Acidente de carro, briga de bar... Todas estes seriam fins horríveis, só que melhores do que um piano. O maldito despencou do alto de um prédio enquanto ele ajustava o cabelo na vitrine de uma loja. 

Era tão patético que beirava o cômico. Só que, para ele, não havia humor algum naquilo. Só frustração.

— Que caralho... Onde diabos eu tô?

A pergunta ecoou pelo quarto enquanto ele piscava, tentando ajustar a visão ao ambiente escuro. 

As frestas da janela deixavam passar um fiapo de luz, insuficiente para iluminar o quarto por completo. Com esforço, ele começou a perceber os detalhes: paredes de pedra bruta, um chão frio e uma cama dura coberta apenas por uma fina camada de palha.

Era um quarto de pedras. 

Seu braço encostou na parede, arrancando-lhe um arrepio. O lugar não era apenas sombrio; era gelado, como um mausoléu.

Peppe passou a mão pelos próprios braços, tentando esquentar-se, mas a sensação de frio parecia vir de dentro, como se seu próprio corpo estivesse rejeitando o ambiente.

Ao se levantar, foi tomado por uma tontura súbita. A mente girava e girava. Náuseas vertiginosas o espetavam no estômago. Ele queria vomitar, e assim o fez, numa jarra com um líquido transparente que encontrou perto da cama. 

Aquilo o aliviou um pouco, dando espaço para que respirasse e se recuperasse um pouco da vertigem. 

Olhando bem, era um quarto bem simples. A porta era de madeira; os armários e a pequena mesa ao lado da cama, também. Todo o restante era de pedra, incluindo o leito em que dormira, que era mal forrada com palha. Havia também um candelabro lateral, que reparou por ser “piegas”.

Tentou se levantar, só para ser derrubado novamente por uma forte tontura. Alguns minutos se passaram até que enfim conseguiu ficar de pé. 

Ele estranhou as roupas que o vestiam. Jamais usaria algo tão brega.

Ainda se sentindo fraco, Peppe conseguiu se levantar e cambaleou até um pequeno espelho preso na porta do armário. O reflexo que o encarou quase o fez tropeçar para trás.

— Que porra...? — sussurrou, levando a mão ao próprio rosto.

Não era ele. Ou, pelo menos, não o "ele" que conhecia. No lugar do loiro praiano cuidadosamente estilizado, havia cabelos de um castanho escuro como a noite, caindo em longos fios lisos até os ombros. 

A pele era pálida, quase translúcida, como se nunca tivesse sentido o toque do sol. E os olhos... Eram de um azul intenso, cintilantes, como lagos cristalinos sob a luz do amanhecer.

Peppe analisou o novo corpo com cuidado, virando o rosto de um lado para o outro.

— Nada mal... — murmurou, tocando os lábios finos e rosados. Mas, ao olhar mais abaixo, torceu o nariz. — Tá precisando por um shape em, pae... Minha nossa! Esse anêmico filho de uma puta tá mais magro que um mendigo venezuelano. 

Talvez fosse uma forma de retribuição divina pelo comentário maldoso, pois, como se o universo o punisse pela zombaria, uma dor de cabeça avassaladora o atacou. 

E era tão, tão forte que ele saiu rolando no chão frio. 

Peppe caiu de joelhos. Perdeu a noção de tempo, quando a dor começou a diminuir, e um punhado de memórias estranhas começaram a surgir. Memórias que não eram suas. Coisas que não compreendia, até então. 

Cavaleiros, feitiços, serviçais e palácios gigantescos. 

Mas não era só isso. Ele começou a ser empurrado por uma marcha feroz de conhecimentos que até então não tinha. Símbolos estranhos... Eram letras? Números, talvez... Línguas e dialetos de vários tipos. Sistema monetário. Política. Geografia. Cartografia. Instrumentos musicais com formatos estranhos, os quais desconhecia. Relações complexas de parentesco. 

E então veio a verdade. 

O corpo que habitava não era seu. Era de um príncipe herdeiro — um jovem nerd que parecia mais preocupado com livros do que com a própria vida. 

Peppe lembrou de uma festa, uma cerimônia onde nobres falavam sobre "sucessão legítima". Naquela noite, o jovem príncipe bebeu da água trazida por uma empregada e, sem saber, havia assinado sua sentença de morte.

— Puta que pariu... Eu transmigrei? — balbuciou Peppe, olhando ao redor com incredulidade. — Logo pra um nerd príncipe falido? Que merda é essa?

Aquele era um mundo novo, e imenso. 

Para a infelicidade de Peppe, o rapaz cujas memórias se originaram era um homem culto e instruído. O azar é que este nerd era o príncipe herdeiro de um reino sem rei. 

E, reparando bem, aquele quartinho estava repleto de livros. Na realidade tudo que não fosse trapos ou móveis estava coberto por papeis.

Antes que pudesse refletir mais, ouviu passos ecoando do lado de fora. Toc! Toc!

— Alteza, estás vivo?

Peppe não conseguiu conter a resposta ácida.

— Não... Já morri, sua vadia enxerida. Fofoqueira.

A porta se abriu de repente, revelando uma mulher de meia-idade, com um olhar preocupado. Ela deu um passo em direção a ele, para checar. 

Esse foi o último erro de sua vida. 

Pah! O tinido estridente do metal com o crânio da mulher chegou até a alma de Peppe. O rapaz segurava o candelabro com firmeza, mas suas mãos estavam trêmulas. 

Ele encarou a empregada caída no chão e reparou que ainda estava viva, tremendo e tentando gritar, mas Peppe não deu chance. 

Pegou um travesseiro e pressionou contra o rosto dela, abafando qualquer som. A mulher se debateu, lutando por ar, mas a força dela começou a diminuir. Sangue escorria pelo chão de pedra.

Ele a envolveu, impedindo que o som escapasse dos lábios.

O fluído vermelho o fez acabar escorregando em cima dela, fazendo-a cair, ainda com o travesseiro na face. Com força, continuou pressionando-o.

A falta de oxigenação causada pela oclusão das vias aéreas fez a mulher se debater muito. Só que ela já tinha perdido muito sangue, e mais vermelho ainda vazava, à medida que a falta de oxigênio fazia com que as forças que ainda tinha vazassem em grandes quantidades. 

A pobre empregada era, naquele momento, um passarinho nas garras de um gavião, apenas esperando a hora do inevitável. E a hora chegou.

Peppe largou o corpo, suas mãos tremendo. O quarto parecia mais frio, mais sombrio. 

Ele olhou para a poça de sangue se espalhando e sentiu um misto de pavor e exaustão. 

— Puta merda... — murmurou, sem saber como sair daquela situação. 

Ele sabia que o barulho atraiu atenção. Era apenas uma questão de tempo até que os guardas chegassem. E ele ainda não conseguia mover as pernas.

O desespero o dominava. Contudo não tinha escolha: precisava sobreviver.



Comentários