Volume 1 – Arco 4
Capítulo 48: Juno, a ladra mágica
No dia seguinte retornei para falar com a Alta-Sacerdotisa e sua bem-humorada ajudante — que depois descobri se chamar Neptune —, mas ainda sem sucesso algum. Tentei escolher um bom horário para uma conversa mais calma e menos carregada, mas foi em vão. A impressão que tive é que a própria Alta-Sacerdotisa não sabia de nada mesmo, ou não queria me dizer.
Após três dias tentando, desisti de tentar obter respostas com ela — antes que Neptune me obrigasse a sair de ||GARDENMOON V||, algo que cogitava desde o nosso primeiro encontro — e resolvi tentar algo... diferente.
Ler... sim, eu iria procurar minhas respostas lendo. Iria a uma biblioteca para pesquisar, mas não qualquer biblioteca — e certamente, não em qualquer cidade.
Lá, na grande cidade da magia, conhecida no continente inteiro, entre muitos depósitos de arquivos e bibliotecas, duas se destacavam. A ||BIBLIOTECA DE GARDENMOON|| e o ||CONVENTO DE KIN’ODESSA||, que por sinal ficava ao lado do grande templo que coroava a cabeça da estátua colossal da deusa que o povo daquela cidade venerava.
Naquele convento existia vários arquivos que datavam das primeiras cidades que antecederam a atual ||GARDENMOON V|| e foram escritas e reescritas por várias monges e sábias ao passar das eras. Por mais que eu estivesse curiosa, a biblioteca me parecia um lugar melhor para começar — até porque, ela tinha bem mais opções que a segunda alternativa e eu não podia me demorar muito para descobrir alguma coisa.
Juntei toda a coragem que consegui e desci aquela ladeira interminável até voltar para a cidade. A ||BIBLIOTECA DE GARDENMOON|| era um prédio erguido com gigantescas pedras montadas impecavelmente, paralelepípedo sobre paralelepípedo, tão gigante que se destacava sobre os prédios menores como um bolo inchado de três andares em meio à uma ceia.
Podia ser tão grande quanto o ||TEMPLO DE KIN’ODESSA||, imaginei. O sol projetava uma sombra larga que tomava quase toda a avenida principal, engolindo mais dois quarteirões além dali. Grandes pilares se erguiam majestosos na entrada, com estátuas e gravuras que remetiam a acontecimentos e heróis do imaginário dos Gardenmoonianos; de fato, o mais fascinante é que qualquer parte daquela cidade sempre tinha alguma história para contar.
O lado de dentro era tão grande quanto parecia ser a visão por fora; um grande hall de escada dupla se mostrava para nós, revelando um corredor ao topo que conduzia para o segundo andar. Entre as duas escadarias, um balcão largo de madeira com algumas Demis fêmeas de prontidão se apresentava limpo e organizado, alguns quadros pintados com aquarela e tintas exóticas enfeitando a parede atrás delas.
A do meio, uma que tinha um par de chifres na cabeça e algumas escamas sarapintando sua pele do rosto até a base do pescoço, fitou seus olhos em mim como se já esperasse que eu fosse falar com ela.
— Bom dia, visitante. O que procura? — perguntou ela com um sorriso brilhante e uma voz enérgica.
Pensei um pouco a respeito, imaginando em qual livro ou catálogo ou pergaminho teria as informações que eu buscava.
A ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||... não passa de uma lenda, Aminarosiana..., as palavras da Alta-Sacerdotisa se faziam claras; história... não passava de uma maldita história. Suspirei.
— Existe algum catálogo ou livro com histórias e lendas da região?
Estrelas refulgiram em seus olhos roxos quando ela apontou para cima e disse: — Seção 2-A, estante 3 e 4 — indicou, categórica. — Se quiser algo mais... científico, recomendo a Seção 2-C, estante 1. Qualquer dúvida, toque este sino. — Ela me entregou o pequeno objeto.
O sino era bem pequeno e com alguns enfeites encrustados nas bordas. Ela me entregou e eu subi para o segundo andar, para onde ela indicara. Eu já não aguentava mais subir e descer escadas! Alguém me salve, por favor...
O segundo andar seguia um percurso retangular que percorria toda a extensão do enorme prédio, cercando um pátio central mais abaixo, ladeado por mais fileiras e fileiras de estantes e corredores abarrotados de todos os tipos de livros que você imaginar; livros de culinária até pergaminhos antigos que ensinavam magias proibidas. Tinha de tudo ali e era só um dos muitos motivos pelos quais as bibliotecas de ||GARDENMOON V|| eram tão famosas.
Andei e andei, observando pessoas com roupões e outras que deviam ser viajantes passarem, algumas seções reunindo grupos que organizavam discursões ou pesquisas em conjunto. Havia espaços entre algumas galerias e outras que tinha cadeiras macias e grandes mesões retangulares que reuniam várias pessoas conversando aos sussurros ou estudando. Um verdadeiro paraíso para alguém que gostava de ler.
Cheguei até a Seção 2-A como a Demi atendente me indicara, percorrendo um quase interminável corredor até alcançar as estantes 3 e 4 — e essas ficavam apenas no meio. Haviam 5 a 6 corredores cada seção, cada corredor com cinco estantes! — onde uma série de livros organizados por cor e data se encontravam. Muitos dos arquivos eram bem velhos; livros de miolo desbotado, páginas amareladas que eu podiam muito bem se desmanchar se segurasse da forma errada, com cheiro de mofo e capas de poeira.
Procurei e procurei, dedilhando cada livro, tirando alguns do lugar, movendo uma caixa que possuía pergaminhos e mais folhas rasgadas e descoloridas — cartas de peregrinos consideradas registros históricos — folheando cuidadosamente cada uma.
O tempo mal corria ali dentro. Durante minha procura, passei o que poderiam ser dois minutos ou duas horas, eu não sabia dizer. E o ambiente era encantado magicamente para que as pessoas não tivessem que se preocupar com clima ou ambiente ou iluminação. Um lugar perfeitamente pensado e projetado para um único objetivo: afundar a cara nos livros.
— Ainda não...
Continuei para a próxima estante e para a próxima. De prateleira em prateleira eu retirava e recolocava livros, folheava e traçava referências, procurando e procurando... qualquer coisa, qualquer pista que me levasse para a tal ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||.
E como imaginei, muitas informações desencontradas... muitas coisas não batiam ou não se relacionavam com nada. Devia ter pedido permissão à Thays para trazer o Dr. Librarus comigo. Aquele maníaco com certeza teria tido mais facilidade com isso que eu...
Suspirei e balancei o pescoço. Não era hora para desanimar. Pela Thays... por ||AMINAROSSA||, eu tinha que continuar tentando. Caso minhas buscas continuassem infrutíferas ali, eu ainda tinha o convento.
E procurar por informações sobre essa biblioteca mística era quase como procurar agulhas em um palheiro. Nossa, passei uma eternidade lá dentro e tudo que encontrei foram menções e referências sobre vários outros lugares que, aparentemente, não tinha conexão alguma.
Hunf! Que coisa difícil...
Houve um momento que os ombros pesaram e eu me esparramei sobre uma cadeira, olhando para o teto de gesso branco com os olhos ardendo. Minhas costas, minhas pernas e nuca estavam sentindo o peso de cada minuto que passei debruçada sobre montanhas de livros antigos e empoeirados.
— Acho que eu deveria parar por hoje e continuar amanhã — disse a mim mesma, querendo me convencer desesperadamente de que seria uma ideia melhor sair de lá que continuar.
Dinheiro não era problema para mim. O montante que Thays me deu me permitiria passar pelo menos um mês ali se assim eu quisesse — e ainda sobraria para a viagem de volta. No entanto, eu... nós não tínhamos tanto tempo. Cada dia sem respostas ou sem direções era um dia perdido, onde o inimigo saía na frente.
E a [ARQUEIRA INVERNAL] não podia se dar ao luxo de falhar com sua superior.
Arrumei tudo que pude e devolvi o sino para a Demi, que agradeceu com um aceno de cabeça cortês. Já devia ter passado do meio dia quando saí da biblioteca, observando o fluxo de pessoas e vassouras no céu diminuir com o horário. As pessoas estavam se recolhendo para a pausa dos trabalhos, o almoço...
E com o ronco que soou com o som de um trovão em meu estômago, confirmei esse fato. Hora de voltar para a hospedaria.
— O que? Onde... quando? — Minha bolsa... ela sumiu?!
E uma sombra veloz passou por cima de mim, rodopiando no ar; era uma menina, mais ou menos da minha idade, de calças largas e regata justa de colarinho alto. Ela tinha a pele branca e sardenta, de olhos grandes de cor caramelo que zombavam de mim enquanto mostrava sua língua, dançando em lábios finos e divertidos.
E essa maldita estava com a minha bolsa!
— Ei! Me devolva isso, agora! — gritei.
Ela saltou por cima de mim, em acrobacias com sua vassoura que girava, ia e vinha, deslizando debaixo de seus pés como se fosse uma extensão de seu corpo. Pelo visto, ela era bem habilidosa em voar com uma vassoura.
— Vacilou, perdeu, baixinha! — disse ela enquanto ria.
— Bai... xinha?! — Grave erro, colega. Grave erro.
— E o que vai fazer, naniquinha? Vai empilhar caixotes pra tentar me pegar? — zombou ela enquanto ria.
Senti uma veia querendo estourar perto da têmpora.
— Você vai descer agora ou... — Invoquei meu arco glacial, o ambiente se tornando bem mais frio do que já era. Aquela ladrazinha ordinária quase caiu da vassoura com a surpresa.
— Eita! Tô caindo fora! — Ela começou a surfar na vassoura para fugir.
Se fosse uma pessoa comum, apenas correndo, por mais rápida que essa pessoa fosse, não conseguiria pegar uma vassoura mágica que voa bem rápido. No entanto, eu tinha outros meios mais... interessantes de correr atrás dela.
Não correr..., mas deslizar.
Comecei a correr e uma plataforma de gelo maciço surgiu debaixo de mim, deslizando pelos paralelepípedos de mármore e granito no chão da praça da biblioteca. Mais à frente, atirei uma flecha que criou uma grande rampa de gelo que serviu de propulsor para mim.
Poucos instante depois, eu estava voando pelos céus gelados da cidade enquanto me equilibrava em uma prancha de gelo para aumentar ainda mais a velocidade. Para continuar me movendo, eu disparava mais e mais esquifes de gelo pelos prédios e construções abaixo que serviam de “pistas” ou “rampas” para eu continuar me movendo.
Com isso, eu estava conseguindo acompanhar bem aquela desgraçada. Se ela achava que iria escapar de mim, ela estava terrivelmente enganada.
— Me devolva minha bolsa, agora! — Atirei duas flechas rápidas de gelo na direção dela.
Uma ela desviou com uma manobra na vassoura e a outra pegou de raspão em seu braço, arrancando um grunhido seco de dor dela. Ela olhou para trás rapidamente e franziu o rosto, aumentando a velocidade.
— Tchauzinho, sua baixinha maluca! — urrou a ladra, disparando na frente.
Merda! Que porcaria de vassoura mais rápida! Mesmo com minha prancha de gelo, se ela continuasse naquela velocidade, eu não conseguiria mais pegá-la! Eu tinha que acertar uma flechada nela ou na vassoura agora, enquanto eu ainda tinha alcance.
Atirei a flecha em uma torre mais alta que encontrei e fiz uma rampa que me levaria a saltar mais alto nos céus com minha prancha. Estava bastante alto, o suficiente para cobrir a distância que ela já havia aberto entre nós com um disparo potente.
Concentrei uma única flecha de gelo, antes que eu a perdesse de vista. Mais fina, mais rápida, mais mortal... uma que com certeza não erraria dessa vez.
Se eu acertasse nela, eu poderia até mesmo matá-la com aquele disparo. Mas agora era ela ou eu. Era eu atirar ou ficar sem nenhum dinheiro, nem mesmo para conseguir sair da cidade.
Eu disparei, sem pensar mais um segundo.
A flecha gélida perfurou o vento e as nuvens, descrevendo uma trajetória em arco para o Norte; para onde aquela ordinária voara. Rápida e precisa, ela disparou a uma distância surpreendente, já com o alvo travado. E eu nunca... nunca erro meu alvo.
E então ela chegou a seu destino marcado..., mas não as costas da ladra. Atingiu sua preciosa vassoura. Sua única forma de fugir de mim.
— Mas que raios...?!
Estava um pouco longe, mas consegui ver a flecha explodir em lascas de gelo que tomaram todas as cerdas e atingiram os calcanhares dela, fazendo-a se desequilibrar e o objeto voador, começar a tombar dos céus.
Com a altura de onde ela caiu, eu não ia precisar nem mesmo continuar com aquela perseguição inútil. Poderia ir andando até lá despreocupadamente e assim o fiz.
Caminhei pelas avenidas principais enquanto me guiava pelos burburinhos do povo que corriam aos ventos glaciais, dizendo que uma jovem caiu de sua vassoura e se machucou. Contanto que não morresse e minha bolsa estivesse inteira, poderia quebrar quantos ossos quisesse.
E quando cheguei a vassoura estava partida, com uma das metades congelada. Virei a cabeça para os lados, procurando ela pela multidão, mas não a via em canto algum.
— Para onde foi a mulher que caiu com a vassoura? — perguntei para ninguém em especial. Esperava eu que ninguém estivesse tentando acobertá-la ou eu teria que transformar todos ali em esculturas de gelo parecidas com a estátua de sua deusa.
Um homem indicou uma viela entre duas lojas que conduzia para as ruas paralelas à avenida. Meio receosa, eu agradeci e segui a direção que ele apontara, aproveitando meu momento fora da multidão para convocar meu arco de novo.
Costurando uma rua e outra, atravessando lugares apertados que eu só conseguiria passar por ser de... menor estatura — eu não me chamaria de baixinha, nunca! —, cheguei até um terreno onde a encontrei, cambaleando enquanto se escorava nas cercas que delimitavam o ambiente.
Quase tive dó dela... quase. Me aproximei e a agarrei pela nunca sem ter o cuidado de ser gentil em nenhum aspecto e a joguei no chão, perto da cerca. A minha bolsa ainda estava com ela, apesar de toda amassada e suja de terra e neve.
— Yaah! — Ela gemeu, mas por conta dos machucados da queda do que pela minha truculência.
— E então? Vai continuar fugindo? — Apontei meu arco de gelo para ela, a flecha cristalina reluzindo na ponta de meus dedos, ansiando para perfurar carne de ladrão.
Seus olhos se esbugalharam encarando a ponta daquela flecha, preparada para encontrar sua cabeça.
— Espera, espera! Por favor, baixinha, vamo conversar...
— Você não tá se ajudando em nada! — Empurrei o arco contra ela, ameaçando-a. — Por que não tenta de novo?
— Tá bom, tá bom, me desculpa, me desculpa! — Ela pegou a bolsa com dificuldades e me entregou. — T-t-toma! Agora... por favor, não me mata — suplicou enquanto se encolhia no pequeno espaço entre ela e a cerca.
— Eu não vou te matar — tomei a bolsa das mãos trêmulas e sujas dela. — Agora que seja a última vez que você rouba as coisas dos outros. — Passei a alça transversal pelo dorso, sem desviar os olhos dela. — Podia ter morrido várias vezes de várias formas diferentes, sua louca.
Os olhos dela brilhavam com lágrimas enquanto eu sumia com o arco de gelo. Se eram fingidas ou de dor real, eu não sabia. Pelo tamanho do tombo que ela levou, apostaria na segunda opção.
Vendo que seu corpo estava todo sujo e arranhado, além de que seu pé estava torcido em um ângulo errado, estendi a mão para ajudá-la a se levantar.
— Aqui. Segure a minha mão. — Ela passou o peito da mão no rosto e seu braço se moveu com dificuldade. — Qual o seu nome?
— J-Juno... — arquejou ela, gemendo muito enquanto eu a puxava para se levantar.
— Que nome bonito. Parece o nome de uma deusa. — Juno corou com meu comentário e virou o corpo, voltando a se apoiar na cerca.
— E... o seu?
— Letícia — respondi, apenas. — Sou uma... viajante. Estou de passagem pela cidade.
— Percebi. — Ela ficou de costas contra a cerca, soltando grunhidos entrecortados com cada movimento, por menor que fosse. — Sua... aparência...
— O que tem minha aparência?
— Nada, nada não — Juno balançou as mãos e então emendou: — É que... sua pele e seus cabelos... não são de alguém que é daqui. Você é de onde?
Estreitei os olhos, alisando o queixo enquanto pensava que, apesar da gentileza, ela ainda era uma ladra e eu tinha que tomar cuidado.
— Uma resposta por uma informação — interpelei. — Me fale de você que eu respondo sua pergunta.
— Hã?! Quem foi que definiu essas regras? — protestou Juno.
— Eu. Anda logo, desembucha!
Juno torceu os lábios finos e suspirou pausadamente, antes de falar: — O que quer eu diga? Você já não está vendo que eu sou só uma ladra mágica?
— Ladra mágica? — repeti, curiosa.
— É... uma ladra mágica. Você realmente não é daqui, se não sabe o que é isso — Juno empertigou-se quando ousou se mexer para ir embora de novo. Parece que ela não conseguiria mais se mover um metro que fosse sem ajuda. — Argh! Porra!
— Você é uma ladra mágica, mas queria roubar dinheiro e pertences de mim. Que curioso isso... — alfinetei, ironia pingando da minha voz.
Juno fez uma careta pra mim.
— E eu ia adivinhar, por acaso? Ainda não consegui roubar uma bola de cristal, sabia? — ela rebateu com o mesmo tom enquanto tentava se mover de novo e de novo. E sem sucesso. — Merda!
— Quer ajuda?
— Não precisa! Eu posso andar... Urgh! — Ao endireitar as costas, ela soltou um urro de dor e caiu no chão de novo. — Porra, porra!
— Tome cuidado. — A ajudei a levantar de novo, apesar de ela mostrar alguma resistência. Era compreensível, já que estava recebendo ajuda da pessoa que a derrubou. — Você está severamente machucada por causa da queda. Sua lombar ainda não se recuperou...
— Eu consigo. Consigo andar perfeitamente, muito obrigada! — retrucou, a voz incrivelmente áspera.
— Tá bom. — Então a soltei e ela caiu como uma tábua no chão lamacento do terreno, contorcendo-se de dor, e saí andando. — Boa sorte, Juno.
Não andei nem dez passos direito quando ouvi ela gritar: — Espera! — Suspirei.
— O que foi? — Me virei com minha face exalando puro tédio. Aprendi essa cara com a Alta-Sarcedotisa.
Ela fungou e rastejou um pouco no chão aquoso como um verme, seus olhos apertados tentando segurar o choro.
— Você... pode me ajudar, Letícia?
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Naquela noite, na hospedaria...
— Está confortável? — perguntei quando saí do banheiro, enxugando meus cachos molhados.
Juno estava deitada na minha cama, já banhada e vestindo apenas uma camisola de seda branco com alguns babados de varinha ridículos que a própria hospedaria me presenteou — até porque se eu não recebesse nada pagando 10 meses de hospedagem adiantados, eu poderia mandar toda aquele lugar pelos ares.
Ela disse que sim, movendo a cabeça.
Uma bandeja com uma tigela de arroz, uma de vegetais e um prato com sopa e carnes havia sido colocado para ela, que não poderia se levantar para comer no refeitório da hospedaria e nem se mexer direito ainda. Também pedi para que alguém enfeitiçasse a carne para ajudar na recuperação de Juno — e para dar um quê a mais no sabor, é claro — e foi o que fizeram.
Comi ao lado dela, em uma poltrona perto de uma estante vazia onde coloquei minhas roupas, meu casaco e a bolsa molhada e suja de terra, enquanto Juno devorava sua refeição como se fosse morrer amanhã. Chegava a ser engraçado como era esfomeada.
Ela pareceu notar que eu observava a comida em sua bandeja desaparecer mais rápido do que ela podia mastigar e se conteve. Segurei uma risada e continuei comendo quando ela disse:
— O que foi? Tá muito gostoso isso aqui.
— Tá mesmo. Coma tudo, tá?
Com as duas bochechas parecendo as bochechas de um esquilo e com a tigela de arroz na mão, respondeu: — Nem precisa dizer isso!
Depois da refeição, Juno deixou seu corpo cair na cama enquanto fiquei sentada na poltrona, o olhar fixo na janela, na noite que caia.
— Ei, Letícia — ela me chamou.
— Hm? O que foi?
— Muito obrigado... por me dar essa força — ela agradeceu, a voz um pouco retraída.
— Não precisa agradecer. Qualquer um teria feito o mesmo.
— Mesmo sabendo que eu te roubei? — perguntou. Eu já tinha quase esquecido disso e trinquei os dentes. Não por ela ter me roubado, mas por ela ter me chamado de baixinha e naniquinha no processo.
BAIXINHA E NANIQUINHA! Todos que me zoavam disso mereciam ser sentenciados com a morte! Morte lenta e dolorosa! Isso era inadmissível, imperdoável! Tudo menos isso.
Deixei essas recordações ruins passarem e me foquei em Juno de novo, com um brilho de gratidão sincero nos olhos. Respirei fundo e respondi: —Só vamos esquecer isso, tá bom? — Ela pareceu concordar com um aceno silencioso.
— Mas você ainda não me disse de onde veio. — Juno retomou a conversa de mais cedo, sua voz agora se suavizando mais.
— Eu sou do Leste e é tudo que precisa saber — respondi, seca.
— Do Leste, né? O que veio fazer aqui pra vir de tão longe? — Eu já estava começando a me irritar com perguntas demais, mas a raiva não chegou ao rosto. — Com essas roupas, duvido que seja uma viajante comum ou uma turista.
Bem observado. Ela era uma ladra, afinal de contas. Uma ladra mágica.
— Eu, na verdade, sou uma pesquisadora — disse com convicção.
Juno levantou uma sobrancelha questionadora. — Pesquisadora? Pesquisadora que faz um arco de gelo aparecer e solta flechas de gelo?
— E você é uma ladra mágica que rouba coisas que não são mágicas, ué — retruquei com um meio sorriso torto.
Juno virou a cabeça, seus lábios se arqueando em um sorriso farto.
— Acho que nós duas somos uma farsa, então. — Ela riu.
— Com certeza, somos — concordei a acompanhando na risada. Então retomei a postura séria e resolvi perguntar: — Eu estou procurando por um lugar chamado ||BIBLIOTECA DAS ALMAS|| há muito tempo, mas ainda não encontrei nada que pudesse me ajudar. Você saberia de alguma coisa? — Não custava nada tentar.
Juno pendeu a cabeça para os lados, pensativa.
— Não... nunca ouvi falar desse bagulho antes. — Já era esperado. Não sei o porquê ainda criei esperanças. — Foi mal não poder te ajudar, Letícia.
— Tudo bem. Acho que amanhã vou voltar pra biblioteca e continuar procurando...
— Mas acho que sei onde você pode arrumar informações sobre esse treco aí. — Meu interesse se reacendeu de novo como um pequeno chumaço de palha se incendiando. — Tem um lugar, não muito longe de ||GARDENMOON V||, que é cercado por lendas e mistérios. É bem famoso, mas ninguém tem coragem de ir até lá.
E lá vamos nós com as lendas e mistérios de novo. Eu já deveria esperar por isso, já que estou caçando um lugar que aparentemente só existe nas lendas.
— Que lugar é esse?
— Os gardenmoonianos conhecem o lugar apenas por ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| — revelou Juno, uma ponta de animação escapando em sua voz ao falar do lugar. — Eu já estou de olho nessa torre a um bom tempo já. Dizem que ela existe lá desde a fundação da primeira Gardenmoon e que está lá até hoje, envolta por uma capa de neblina e sombras e...
— Tá, tá, mas o que tem lá dentro que pode me ajudar, afinal? — Essa espertinha estava querendo era me levar na conversa para eu ajudá-la a saquear alguma tumba ou templo abandonado, isso sim.
— Segundo as lendas, a torre é repleta de tesouros e cheia de conhecimento antigo, guardado desde os tempos da Era Dourada. Um conhecimento que não existe em nenhum outro lugar no continente. — Juno estava quase saltando da cama enquanto narrava aquilo. Ela queria muito saquear essa tal torre. — Se não está conseguindo achar pistas dessa biblioteca aí em nenhum lugar, você provavelmente irá encontrar o que procura na torre. É o único lugar onde você poderia encontrar esse tipo de informação.
— Entendi..., mas se é um lugar tão famoso e tem realmente tudo isso, como não virou um lugar conhecido e explorado? — Não pude deixar de perguntar. Tanto a desconfiança quanto a curiosidade me obrigaram.
— É porque a torre é infestada de armadilhas e perigos desconhecidos. Quem tentou saquear os tesouros da ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| nunca mais foi visto. — E por que ela não parecia nem um pouco preocupada com esse fato crucial? — Isso quer dizer que ela está até hoje intocada, esperando por nós!
— Por nós?
— Isso mesmo... Agrh! — Ela se levantou em um solavanco da cama, gemendo de dor e se torcendo ao dizer: — Eu... vou contigo, Letícia.
— Não sei se isso é uma boa ideia.
— E por que não seria?
— Por que eu não sei de nada sobre esse lugar e vou com uma pessoa que sei menos ainda. Quem me garante que você não está tentando me enrolar ou me levar para alguma cilada com essa sua historinha? — Minha voz, assim como meus olhos, estavam bem mais severos do que eu gostaria.
Mas realmente eu não tinha certeza se podia ou não confiar em uma ladra mágica, principalmente se tratando de um lugar repleto de artefatos e livros antigos que deveriam ser mesmo que um banquete celestial para Juno. Era claro como a água a sua animação enquanto falava de lá, provavelmente pensando que todos aqueles tesouros escondidos na torre estariam lá apenas esperando para que fossem reivindicados por ela.
Juno se conteve e seu rosto murchou com minhas palavras duras, talvez agora caindo no mundo real de novo. Percebendo sua situação.
— Sim... você tá certa. — Ela se deitou na cama de novo e se virou com alguma dificuldade para a parede. — Eu... acho que posso estar sendo egoísta. Afinal... nós acabamos de nos conhecer, não é? Como você confiaria em uma pessoa que tentou te roubar? Como que qualquer pessoa confiaria em uma simples ladra como eu? — Ela fez uma pausa, inspirando e expirando profundamente, por vezes sua respiração falhando. — É que eu... queria tanto ir lá. Queria... provar pra todo mundo que eu... que eu consigo... que eu posso alguma coisa bem e... e...
Ela ficou falando sozinha e adormeceu. Fiquei encarando-a um bom tempo, imaginando quanta verdade teriam aquelas palavras.
E acho que isso pode ter me tirado o sono também.