Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 45: A Arqueira Invernal

 

O que fazer quando você se vê envolta de uma cadeia a qual você não pode escapar?

Como grilhões que te prendem? Que pesam em você? Te limitam? Te definem?

O que fazer para superar seus demônios?

Demônios...

Demo...

...

 

 

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||FLORESTA DO GEHENNA||, às margens do ||RIO DAS SEREIAS||, área central de ||REN DO SUL||.

PLAYER: [Letícia]

Você é a única em que confio para executar essa missão, Letícia. Vá e descubra mais sobre a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS|| pra mim. Não pensei em ninguém mais qualificado para a tarefa.

 

Claro que não pensou né, Thays? — disse para mim mesma, como se respondesse a meus pensamentos enquanto flechava um... um...

Mano... eu nem sei como chamar essas coisas. Nunca vi nada igual na minha vida!

Coisas bizarras, sem forma ou cor; sem qualquer semelhança com algum monstro ou arvore ou animal existente. Um emaranhado de muita coisa e que não era nada ao mesmo tempo — bem difíceis de abater por sinal, mesmo quando levavam várias e várias flechas.

 Agora... um grupo delas estava atrás de mim enquanto eu seguia o rio até a cidade de ||ABSTERGO||. Merda.

— Vocês são chatos, hein! — Coloquei meu arco preso à um suporte em meu //GIBÃO DE COURO +7// e estiquei o braço direito e curvei o esquerdo como se ainda o empunhasse. Esses desgraçados teriam uma surpresinha agora: — |FLECHA LAPIS|!

No lugar do meu velho arco de madeira, um novo surgiu, feito totalmente de gelo esculpido e talhado com escrituras e runas antigas. Uma flecha de gelo afiadíssima e tão cintilante quanto uma pérola também foi moldada junto com o arco.

Uma não... eram 10 flechas, armadas e preparadas para alvejar aquelas... coisas asquerosas.

Lancei os projéteis de gelo em direção aos monstros, acertando todas as cinco criaturas que me perseguiam pela margem do ||RIO DAS SEREIAS||. As flechas gélidas explodiram em lascas de gelo que os retardou e os feriu gravemente.

GRUHHHNYUHNYHNYUHHH!! — Até os sons que aquelas bestas saídas do inferno soltavam eram desconfortáveis as ouvidos, como ruídos insuportáveis de uma ponta fina arranhando o vidro.

O primeiro, que era como um peixe com cerca de seis pares de asas em cada lado, uma cauda que lembrava de um escorpião e chifres saindo das laterais da cabeça chata, caiu rolando alguns metros até ser congelado enquanto liberava sons guturais e medonhos.

KAKAKAKAKOKOKOKAKOKAOKO!!!

O segundo se parecia um cavalo, mas tinha mãos que lembravam mãos de Troll e seu tronco me recordava um carvalho retorcido cheio de bocas que liberavam sons escrotos e um vapor que eu não tinha a mínima intenção de saber que cheiro tinha. Esse levou uma flechada bem no meio do peito — acho que era o peito dele — e congelou ali mesmo até cair duro no chão.

HIIN IN IN IN OOOON! — Bem… esse pelo menos lembrava o relincho de um cavalo.

O terceiro era parecido com um tigre, porém era enorme com uma casa e ainda por cima tinha vários braços em toda a extensão do corpo. E esse, infelizmente não caiu e continuou avançando, servindo de escudo de corpo para os outros dois mais atrás.

Desviei da pegada de seus membros, que esticaram, mirando meus braços e tronco — sim, não basta ter milhões de braços podres e deformados em todo o corpo... ELES ESTICAM AINDA! —, mas consegui ser mais rápida e saí com três piruetas para trás, tomando distância.

A terceira manobra quase me fez cair no rio quando um pedaço de terra se desprendeu da margem. A água escura, e que liberava uma espécie de névoa por toda a sua extensão como uma cortina, não me parecia ser muito... confiável.

Decidi que não queria dar um mergulho hoje.

— Você não vai me deixar ir embora tão fácil, né? — Suspirei.

O bicho veio correndo de forma desajeitada, como um [TROLL DAS MONTANHAS] ensandecido, derrubando fileira após fileira de arvores de tronco seco, levantando poeira pelo caminho. Seus olhos, como os de uma mosca varejeira, miraram em mim. Forcei as rações que tinha comido no último acampamento a ficarem da garganta pra dentro.

— Pois muito bem. — Fiz menção a empunhar o arco, e a arma gélida surgiu em minhas mãos novamente.

O solo irregular aparentou querer me derrubar conforme tremia aos passos das pisadas da criatura.

Uma fina capa de gelo cobria minhas mãos como uma segunda e delicada pele e se espalhava pelos braços, tomando uma parte do meu rosto. Minha respiração se condensava à minha frente e as pontas de minhas mechas se tornavam fios cristalinos. Gelo... torna-me uma com o gelo, sempre. Torna-me como o gelo, ser como o gelo...

Para esse ataque, não me importava mirar em pontos vitais ou procurar — nesse caso, adivinhar — o seu coração. Enquanto concentrava meu ataque, imaginei novamente as palavras da Thays, como se sua voz e respiração sussurrassem ao meu ouvido. Soltei um risinho involuntário.

— Acho que entendi o que você quis dizer agora, Thays...

GHROOOOOOOOOW!!

|ESQUIFE DE GELO|! — Urrei ao atirar aquela flecha de gelo no chão, a besta estando a poucos metros de mim.

WHOOOOOOOOSH!

Quatro blocos de gelo se ergueram no solo à frente, atingindo em cheio os monstros e os congelando tão rápido quanto qualquer coisa no raio de alcance da habilidade. Sequer deu tempo de entenderem o que tinha acontecido, ou mesmo de grunhir ou lutar ou se debater...

Suas vidas tinham sido congeladas completamente.

   

 

 

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Várias horas depois, quase nos portões da cidade de ||ABSTERGO||.

 

Já conseguia ver a cidade de longe. Muros altos de pedra branca e brilhante que contrastavam com os edifícios de modelo antigo da Era Dourada; casas pequenas, no máximo de dois andares, com telhados pontudos lembrando os chapéus dos mágicos e feiticeiros de ||GARDENMOON V||, paredes em tons acinzentados e frios, tão antigas quanto a história da própria cidade.

Era surpreendente o quanto a atmosfera do ambiente mudava após alguns quilômetros; O ambiente da ||FLORESTA DO GEHENNA|| era um lugar pesado, tão desconfortável que não importa onde você estivesse, você nunca se sentiria seguro ou sozinho lá. A terra parecia drenar a vida de quem pisava ali como uma sanguessuga, o ar era difícil de respirar e as arvores eram secas e recurvadas, formando rostos terríveis que zombavam e se alimentavam do seu medo.

No lugar onde o ||RIO DAS SEREIAS|| desaguava, a tênue fronteira entre uma região e outra, era perfeitamente visível a mudança no clima. Enquanto dentro daquela floresta amaldiçoada que era o Gehenna o ambiente era seco e desértico, ares puros e gélidos que vinham das correntes frias de ||REN DO SUL|| refrescavam os poros de todos aqueles que conseguissem cruzar a floresta — inteiros, pelo menos. —, formando uma faixa de clima discrepante.

As arvores se tornavam mais normais e nevadas, e o solo e o ambiente voltavam a ser amigáveis, guardando apenas a vida selvagem da região — sem monstros deformados querendo nos devorar, diga-se de passagem.

Me certifiquei de que não estava mais sendo perseguida — por olhares curiosos ou bichos bizarros — e caminhei tranquilamente até ||ABSTERGO||. Após alguns minutos cruzando uma estrada de terra ladeada por cercas de estacas de madeira, já conseguia ver algumas carroças e viajantes entrando e saindo da cidade.

Os portões estavam abertos, sem sinal de guardas a vista, o que significava dizer que era uma cidade sem qualquer poderio militar. Pelo visto, aqueles selvagens dos Andros não conseguiram chegar até lá ainda como a Thays tinha previsto.

Entrei sendo recebido por alguns bardos de sorriso gentil na entrada da cidade, tocando alaúdes enquanto recebiam alguns trocados de viajantes e mercadores locais. Mais para frente, seguindo a avenida principal, um pequeno espaço público com uma estátua de um mago esculpida em pedra preta no centro aguardava, rodeada por um piso de paralelepípedos feitos de minerais com várias cores, formando um arco-íris natural na praça quando o sol atingia seu pino.

Pessoas e demis e animais se reuniam e passavam com rostos despreocupados, seguindo suas vidas e seus cursos. Nem mesmo pareciam saber que existia alguma guerra. Ignorância, sem dúvidas, era uma benção.

Tenho que dizer que apesar das características exóticas de uma cidade antiga, não impressionei tanto. Já era o esperado de uma cidade com séculos nas costas e um histórico de receber viajantes, ora inteiros, ora pela... metade.

Assim que cheguei lá, senti os músculos das pernas tremerem e as juntas estralando como pedrinhas de calçamento ao serem pisadas.

E percebi que não tinha conseguido parar para descansar sequer uma vez desde que atravessei a ||FLORESTA DO GEHENNA||. Sentei na bancada de pedra que separava a estátua do resto da rua, cada fibra muscular da perna reclamando e se retraindo dolorosamente.

— Urgh! Merda — arquejei, a respiração saindo pausada.

Não tinha jeito. Levaria mais três ou quatro dias para chegar a ||GARDENMOON V||. Se eu arriscasse seguir viagem naquele estado, estaria me arriscando a ficar pelo caminho e falhar...

Tudo, até mesmo a morte, menos falhar. Falhar nunca. Ainda mais com a Thays.

— Tsc... Vou ter que arrumar um lugar pra ficar. Que saco...

O lugar escolhido foi um modesto albergue próximo da saída oeste da cidade. Praticidade e localização — dinheiro não era problema para mim, mas o quanto mais próximo do meu destino final eu estivesse, melhor.

Mesmo que fosse alguns centímetros mais próximo, não importava.

Paguei e passei a noite, me sentindo desconfortável em um lugar tão... apertado? Não, acho que a palavra melhor era um “quarto simples”, já que meus aposentos na ||FORTALEZA SUSERANO|| eram do tamanho de um salão inteiro com móveis tão lustrados que pareciam espelhos. Acho que a Thays me fez esquecer...

Esquecer da sensação de frio.

Esquecer da sensação de necessidade, da “falta”.

Esquecer de como é procurar buracos apertados para escapar de predadores.

— Já faz tanto tempo... — resmungava em meias palavras, olhando para o teto escuro.

E eu não conseguia dormir também. Minha cabeça estava à mil direto. Pensamento ia e vinha, mesclando-se a um tufão de sentimentos que oscilavam como montanhas — ora bons, ora ruins...

Eu era uma caçadora. Estava acostumada à dormir em alojamentos em postos fronteiriços, lugares ermos esperando que a primeira corça passasse e assim fui criada desde minhas primeiras memórias.

Mas a Thays... ela me mostrou o que é viver bem, o que é a vida dos verdadeiramente poderosos em um mundo de injustiças. Posso me sentir culpada por isso? Não, pois já pertenci a ambos os lados desse extenso muro.

Tudo foi um fruto de nossas ações... altruístas e egoístas...

E agora estava pensando em coisas inúteis enquanto caminhava por uma cidade adormecida. Tinha deixado o albergue com a desculpa de sair para uma caminhada, mas eu não sabia ao certo se voltaria. O ar gelado da noite — eu acho que devia estar a 10°C naquela noite — se traduzia em brisas ora suaves, ora agitadas que ameaçavam levar os telhados mais antigos embora e serviu para desafogar uma mente conturbada como a minha.

Acho que eu encontraria algum outro lugar em um estábulo para passar a noite, ou continuaria andando por aí sem rumo até que o dia amanhecesse e eu seguisse minha viagem.

— Você... não é daqui, não é mocinha? — Uma voz arranhada de uma velha surgiu atrás de mim.

— Como é, senhora? —Me virei devagar, mais frustrada do que qualquer coisa. Não era para todos estarem dormindo? — O que faz sentada na rua a essa hora da noite?

— Posso perguntar o mesmo de você — replicou levantando a sobrancelha quase pelada, as rugas do rosto se repuxando em um sorriso receptivo. No entanto, algo estava estranho nela.

De primeira vista, era só mais uma velhinha sentada em uma cadeira de madeira tão velha quanto, as mãos sobrepostas sobre as pernas. Mas seus olhos... estavam terrivelmente fundos. Cansados. Quebradiços.

Suspirei e respondi com uma voz indiferente: — Hunf... eu estou sem sono e não queria voltar para o albergue, então saí pra dar uma volta.

A senhora com um dos olhos mais baixo que o outro riu, talvez se identificando com a situação. — Entendo o que quer dizer. Também não consigo dormir. Pesadelos atormentam você?

— Não me leve a mal, mas não vejo como isso pode ser da sua conta, senhora.

— Ah sim, sim. Faz muito tempo que muitos de nós aqui de ||ABSTERGO|| não sabemos o que é ter uma noite de sono, mocinha. O que está fazendo não é tão incomum quanto pensa. — Ela deu de ombros.

E não demorou para que eu começasse a reparar nas casas, nas silhuetas dançando nas janelas à luz do fogo das velas, de uns e outros passeando pela cidade banhada pela luz da lua, ou fazendo outras coisas. Acordados... todos estavam despertos! Ou pelo menos, a maioria.

— Costume por aqui?

— Se sentir tanto medo todos as noites que fica incapaz de conseguir deitar a cabeça no travesseiro para sonhar se chamar costume, sim. É um costume nosso. — A velha estreitou os olhos, o esquerdo sempre olhando para a direção oposta do direito.

— Entendi..., mas... o que está acontecendo então? — Talvez eu possa ter me arrependido de perguntar.

A velha senhora se ajeitou em sua pequena cadeira recostada no casebre que devia ser sua moradia, o vestido farfalhando com uma rajada de vento que soprou um quilo de poeira entre nós.

— Ao cair da noite, quando a lua alcança seu ápice, uma bela canção é ouvida por todos da cidade. — Ela fez um gesto, espalmando a mão atrás dos ouvidos enrugados. — Uma canção tão bela que parece vim de muito longe e, ao mesmo tempo, parece que quem está cantando se encontra à sua frente...

— Poderia pular a parte do misticismo e ir direto ao ponto, minha senhora? — disse, sem cabeça para interpretar jogos de palavras e lendas. Eu já sai para caminhar porque queria clarear as ideias e não afoga-las mais ainda.

A velha sorriu gentilmente que quase fez eu me sentir uma otária por falar com ela de uma forma tão indiferente.

— Uma entidade... da ||FLORESTA DO GEHENNA||. Todas as noites ela começa a cantar e aqueles que se encontram dormindo no momento em que sua música chega à nossa cidade desaparece.

E quando conversávamos, um choro pôde ser escutado em uma casa mais ao longe da rua. Vinha de alguma casa indefinida e quem quer que fosse, estava desesperado. A velha reagiu com tanta naturalidade que era como se já estivesse acostumada com as lamentações de fundo, mas eu com certeza me assustei... um pouco.

— Está ouvindo, mocinha? — ela perguntou.

— Esse choro?

— É um choro de um pai que acabou de perder sua querida filha que adormeceu. — Os sons pioravam. O homem chorava e gritava e o som de móveis sendo revirados acompanhou os prantos.

Um nó se formou em minha garganta quando mais um grito pôde ser escutado em alguma outra rua ao longe, vindo de outra casa. Depois outro e mais outro e mais outro.

— Em todos esses lugares... — Ela fez outra pausa agoniante para que me permitisse escutar o sofrimento de uma cidade inteira. — Há pelo menos uma pessoa que se rendeu ao sono e foi levada por ela.

— “Ela” quem? E eu não estou conseguindo ouvir nada. — Talvez fosse melhor escutar essa tal doce melodia do que um coro sufocante de choro e gritos fantasmas.

— Uma mulher de cabelos púrpuros que cintilam como um céu salpicado de estrelas e que vaga pela ||FLORESTA DO GEHENNA|| — revelou a senhorinha enquanto tapeou o rosto algumas vezes, a cabeça parecendo pesar sobre os ombros. E então, acrescentou: — Perdão... quase dormi. Onde eu estava...?

Sem esperar que ela continuasse falando eu me virei e segui a estrada principal, caminhando até a saída da cidade. Eu já não estava conseguindo dormir mesmo e não era por causa de nenhuma lenda local ou coisa parecida.

Meus demônios eram bem mais terríveis do que uma cantora fantasma vagueante que levava dorminhocos embora.

— Ei, mocinha. Para onde... está indo? — Suas palavras se demoravam, o corpo a todo momento querendo apagar. Somente sua vontade — ou seu medo — a mantinham acordada ainda.

— Está frio aqui fora. Volte para dentro e arrume a cama, vovozinha.

— E.E.Espera... n-não está me dizendo que...!

Sem ter o trabalho de me virar ou explicar, apenas respondi:

— Fica de boa aí, senhorinha. Só estou indo calar a boca de uma cantora ali e já volto.

 



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