Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 18: Conluio

 

Em algum lugar bem alto e desconhecido, escondido nas sombras do esquecimento...

PLAYER: [???]

 

*TREEEEEENC... TREEEEEENC...*

*passos abafados*

“....”

*som de roldanas e ruídos metálicos*

“Gira... gira... gira... gira... gira... gira... gira... outra... volta... mais uma vez...”

“.....”

*NHEEEEC*

“Quantas voltas... já foram? Com essa... são... 47.567.342.555.324 voltas... e ainda... não parou...”

*tiques*

“Papai... ainda... estou... sendo uma boa... menina?”

O lugar era escuro e as correntes de ar que penetravam o lugar eram escassas. Várias carcaças de ferro enferrujado, amassado e chamuscado, bem como porcas, tubos, componentes eletrônicos, válvulas, motores e peças mecânicas de todos os tipos estavam espalhados pelo chão.

No meio disso, uma garotinha jazia de cócoras abraçando suas perninhas pequenas, olhando fixamente para duas engrenagens girando em uma tabuleta de metal com hastes de madeira.

A única luz vinha de uma espécie de drone orbital que sobrevoava o lugar.

“Ah... ainda... está... girando. Que... coisa... de... maluco...”

“.....”

“Parou...”

As engrenagens param de rodar.

“Parou... porque... parou?”

A pequena peça havia entortado de uma forma que não conseguia mais continuar seu repetitivo movimento.

“Não... para...”

Ela continua parada.

“Não... para...”

Nada acontece. Ela mexe um pouco, mas as engrenagens continuavam paradas. Ela mexe mais com os dedos.

Nada.

“Porque... parou...?”

“Se... o... papai... estivesse... aqui... ele... faria... girar...”

“Girar... girar...”

De repente seus olhos brilham intensamente como grandes faróis e ela se levanta subitamente, fazendo toda a sala estremecer e brilhar em um grande clarão branco.

GIRAR! GIRAR! GIRAR! GIRAR! GIRAR! GIRAR! GIRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAR!”

 

 

 

_____________________________________________________________

||CIDADE DOS COMERCIANTES||, enquanto isso...

PLAYER: [Juniorai]

 

||TORRE DO MAQUINÁRIO||?!”

Eu encolhi minha cabeça uns 5 cm pra dentro do meu corpo. A reação de Justine foi um pouco inesperada pra mim – para não dizer exagerada.

“S-sim... foi isso que ele nos entregou.”, joguei os papéis em cima da mesa.

Ela os folheou com uma expressão pálida – e eu também de negro já estava quase branco de tão pálido e apreensivo que estava – e Arthur engoliu em seco várias vezes. Um clima de suspense se instaurou no ambiente e eu já quase podia ouvir uma musiquinha de terror tocando ao fundo.

Espera... não que estava tocando mesmo? Ou talvez fosse coisa da minha cabeça?

“Ei, ei, ei... isso não é brincadeira. Esse lugar é muito perigoso! Por que Bazz7 mandaria vocês, com um nível tão baixo, para um lugar desses?!”, questiona Justine suando frio.

Nós ficamos calados por um tempo, sem saber como reagir diante daquela reação – react de um react, mas sem react. Foi uma reação desesperadoramente inesperada para nós, mas também o que me fez parar para raciocinar um pouco do porquê daquilo.

“Justine. Como é essa ||TORRE DO MAQUINÁRIO||?”

Ela fez uma pausa, refletindo na pergunta.

“Eu não sei muito dela, mas é uma grande torre que fica no litoral de ||BLYK DO SUL||. A única coisa que eu sei sobre esse lugar foi o que eu ouvi em histórias de caravana e alguns grupos de aventureiros...”

 


“(...) é uma torre isolada do resto do continente e esquecida por todos. Os poucos que se lembram de sua existência são apagados desse mundo e esquecidos juntamente com ela.”


 

“Além disso, lá onde todos os entusiastas e lunáticos dizem existir uma fonte de energia misteriosa que envolve toda a torre.”

Entendi... era algum tipo de lenda urbana por acaso? Tipo loira do banheiro, perna cabeluda ou o chupa-cabra? Bom, nenhuma daquelas informações serviu de muita coisa além de aumentar todo o misticismo que envolve o lugar – além de aumentar também a nossa ansiedade.

“Espera... você disse, fonte de energia?”, perguntei novamente.

Arthur levantou uma sobrancelha.

“O que está pensando, Juniorai? Por acaso sabe de alguma coisa?”, pergunta Ludwig, notando minha súbita mudança de expressão.

Laimonas deu de ombros. Stuz com sua mente travada parecendo minha internet depois de um temporal, não estava conseguindo acompanhar todo o raciocínio.  

“Ele deve ter passado por lá em mais uma de suas bravas aventuras como um bravo aventureiro.”, diz o aventureiro careca.

“Ele realmente tem cara de caipira, então imagino que tenha vindo de alguma região isolada perto de lá para saber de algo assim.”, sussurrou Lucy baixinho para Laimonas, mas eu conseguia ouvir tudo claramente.

Essa mergulhadora de aquário não tinha tanta propriedade para falar – mal tinha aparecido nessa história até agora –, então acabei somente por ignorá-la . Meu foco estava naquele único trecho “fonte de energia”, o qual acendeu um pequeno candeeiro na minha mente bugada.

“Sim. Lá há uma energia misteriosa que dizem ser o que dá vida aos monstros da torre.”, responde Justine, não muito convicta.

Entretanto, aquilo foi tudo que eu precisei para conectar os fragmentos na minha cabeça e ligar os pontinhos. Quando finalmente me toquei do que se tratava, minha garganta secou.

“Não pode ser... não há dúvidas disso...”

“O que foi, Junior?”, perguntou Arthur, percebendo minha inquietação.

“||TORRE DO MAQUINÁRIO||... a primeira raid do jo...”, rapidamente tapei minha boca ao perceber que eu não podia falar assim.

Todos na sala me olharam com aquela cara de paisagem, pensando “o que esse cara está falando”? Tomara que eu não tenho feito mais nenhuma merda no script do jogo só por falar algo que não devia.

“O que é raid, Juniorai?”, perguntou Justine, tanto curiosa quanto preocupada.

“N-nada!”, interpelei, abanando as mãos. “Eu só pensei um pouco alto! Estava pensando em coisas nada a ver.”

Justine torceu os lábios e me fuzilou com seus olhos estreitos e espertos. Confesso que ela ficava bem sexy com aquele olhar de quem queria me matar, mas logo eu lembrava que aquilo era um Sprite animado e o encanto passava.

“Você está de brincadeira comigo, por acaso?! Sabe a gravidade da situação em que se encontra?!”, ela já estava puxando minha orelha, mas pelo menos esqueceu da minha quase menção ao metagame. Um ponto pra mim!

“D-desculpa! Desculpa! Agora estou prestando atenção!”, respondi, fingindo lerdeza – no meu caso, eu nem precisava fingir muito.

“É bom mesmo se quiser ficar vivo, seu cabeça de vento!”, ela se levantou pra gritar comigo, mas depois voltou a sentar-se. “Bazz7 é um canalha tão seboso quanto esperto! Ele pensou direitinho em cada ponto e caímos de novo onde ele queria.”

“Nós fizemos como você disse! Fizemos uma aposta a qual ele não podia trapacear para ganhar.”, irrompeu Arthur, a voz tremula e descompassada.

“E ainda assim ele conseguiu conduzi-los a um beco sem saída de novo, como ele queria. Mesmo que não tivesse como ele trapacear dessa vez, ele pensou em algo tão impossível que a maré da sorte novamente o favorece. Ele está no controle da situação! Ele que dá as cartas...”

“Mas o que está dizendo? É só nos irmos lá e completarmos essa missão!”, Arthur objetou.

“Por acaso seu ouvido está tampado de fuligem? Eu acabei de dizer que é praticamente impossível vocês voltarem vivos dessa torre! Ninguém que foi até lá voltou vivo!

Arthur engoliu em seco.

“E o que eles vão fazer, senhorita Justine? YUP!”, pergunta Stuz, a voz e o rosto murchos.

Ela esfregou a testa, soltando um suspiro demorado.

“Não tem jeito... não vamos conseguir nada com Bazz7, nem mesmo um único apoio para investigações. Esse maldito vai ficar nos enrolando com essas apostas imbecis somente para fazermos sempre o que ele quer. Vocês vão ter que desistir dessa aposta idiota e aceitarem que perderam.”

O QUE?”, eu e Arthur já estávamos ficando bons em falar as coisas ao mesmo tempo.

“Sim. É isso mesmo que ouviram. Mesmo que seja aventureiros de valor e já tenham me provado esse valor antes, ir até essa ||TORRE DO MAQUINÁRIO|| é suicídio! Não posso deixar que joguem suas vidas no lixo desse jeito.”

“Mas... se nós desistirmos de ir, vamos perder a aposta... e nossa liberdade!”, gritou Arthur, socando a mesa.

“A liberdade de vocês...?”, repetiu Lucy, confusa.

“Melhor perderem a liberdade de vocês do que perderem a vida. E vocês trabalharão para ele como mercenários. Talvez suas vidas não sejam tão ruins daqui para frente...”

Nós vamos!”, eu disse, cortando suas palavras.

“Como?!”

Os quatro detrás dela fizeram uma careta de tipo: “acho que alguém perdeu o juízo!” Mas eu tinha que falar aquilo. Tinha que meter esse louco ou senão as coisas não iriam tomar um rumo muito bom. Era isso o que os meus indicadores mentais estavam apontando; uma nova rota de jogo iria se formar e o que poderia atrasar ainda mais nossa saída de dentro daquele mundo.

“Olha... eu sei que parece loucura, mas confia em mim só mais essa vez. Eu sei como voltar vivo desse lugar.”

Todos permaneceram em silêncio, boquiabertos com a minha afirmação. Os olhos de Arthur estavam quase saindo das orbitas.

“Como você pode saber de algo assim?! Você já esteve lá?”

E eu travei na hora de responder. O que eu poderia dizer? Sim? Não? Talvez? Fui eu quem criei a torre? Que era uma raid para iniciantes com ótimos coletáveis do chefe – que eu não fazia ideia de como era porque foi Arthur quem projetou – e monstros com atributos e força niveladas aos do jogador ou da party que iria explora-la?

Bom, eu já tinha lançado a merda e agora eu devia explicações sobre ela, então vasculhei em cada canto da minha cabeça alguma coisa para falar que fosse plausível sem revelar que eu era na verdade uma espécie de deus ex machina.

E quem sabe que efeitos colaterais poderiam resultar disso? Talvez os tais “Buracos Negros” que Arthur mencionou antes e que saiam pedaços de código de dentro?

“Então... eu já estive lá uma vez.”

Pela cara de desaprovação de Arthur, ele rapidamente se tocou que eu mentia, mas ficou na dele. Acho que assim como eu, ele percebeu que era um mal necessário.

“Sério?!”, Se Justine ainda não tinha se surpreendido com o que tinha acontecido até então, agora ela realmente estava de queixo caído.

“Não acredito!”, Ludwig curvou as sobrancelhas, assombrado com a declaração.

“Não acredito! Nunca esperei tamanha bravura de um aventureiro antes!”, Laimonas comenta também.

Já Stuz vocês já sabem né? Ele não falava; só soluçava.

“É isso mesmo! Eu já fui para lá, mas não cheguei a encontrar essa fonte de energia que todos dizem que existe.”, continuei com a pose de herói de Shounen, me achando por contar uma mentira tão cabeluda daquelas. “Certo que posso ter dado sorte da última vez, mas eu sei exatamente como superar os desafios daquela torre!”

Lucy alisou o queixo, intrigada.

“Não acredito no que estou ouvindo... como alguém com um nível tão baixo como você pode ter saído de lá vivo?”, disse Justine, quase como se lançasse uma faca contra meu peito. Que palavras cruéis para se dizer a um aspirante de protagonista!

“Sim, sim. Não consigo imaginar um incompetente como ele escapando de um lugar tão perigoso como todos dizem.”, disse Lucy. Segunda facada desferida!

“Concordo. Acho que ele está mentindo muito na cara dura!”, até Arthur estava indo na onda!

E mais uma facada para mim!

“Querem parar com isso?! É sério! Acredite em mim, porra!”

Justine se levantou, arrodeou a mesa e foi até mim, parando a minha frente. Ela estava bem perto, seus olhos caramelizados me sondando. Ela já não estava mais com aquela expressão dura e séria de antes; agora sua face estava mais leve e me encarava não com rispidez ou com desprezo, como era na maioria dos casos, mas com uma cara embaraçosa de preocupação e tristeza – a famosa cara de “cachorrinho que caiu da mudança”.

Seus olhos brilhavam, seus lábios se fechavam em um biquinho e seu rosto estava corado. Eu não conseguia encara-la diretamente sem pensar coisas erradas.

“Realmente... é sério o que está dizendo?”

Eu assenti com um gesto de cabeça.

“Você sabe como eu me senti daquela vez? Quando você lutou contra o líder dos cultistas para me resgatar? Aquela sensação de impotência... de medo de quase perde-lo para sempre...”, meu coração acelerou.

Eu não esperava ouvir outro sermão, um puxão de orelha e até mesmo chantagem, mas nada como aquilo. Porque ela estava dizendo essas coisas? Será que mais um evento, dessa vez ao estilo de um DATE RPG, havia começado?

“O que você está querendo dizer com isso, Justine?”, perguntei, a voz quase não querendo sair.

“Não quero arriscar perder vocês de novo. Não quero...”, ela socou meu peito, fazendo eu recuar uns dois passos. “Isso seria demais para mim...”

Mesmo não sendo expert em Inteligência Artificial ou sobre todo o segredo e filosofia por trás dos comportamentos da máquina, eu podia afirmar com total certeza de que eram palavras sinceras – tão ou mais sinceras até que as dos humanos. Como eu responderia à altura de uma declaração tão profunda quanto aquela? Como qualquer protagonista responderia?

Então eu só repousei minha mão sobre o seu ombro, a encarei intensamente e com um tom de voz determinado, eu disse:

 

“Vai dar certo, minha fia! Só confia no pai!”

 

....?

*silêncio*

Os três aventureiros e Lucy me encaram agora com um olhar confuso. Como se dissessem: “que merda que você acabou de falar?”.

....

“Que...”

“É... então... é isso...”

E lá se foi toda a minha pose de protagonista de Isekai! Que beleza!

O rosto corado e fofinho de preocupação dela deu espaço para uma bela cara de paisagem, sem entender o porquê de eu ter dito uma frase tão broxante como aquela. Mas não deu muito tempo e então logo veio um misto de confusão e depois uma vontade de rir que tomou conta dela.

Consegui fazer uma menina bipolar com ela rir... pontos para mim!

“Justine...”, eu rapidamente quis tirar o foco da minha frase ridícula e retomar o assunto. “O que eu quis dizer é pra você não se preocupar! Eu e Arthur vamos dar um jeito de voltar inteiros, certo? Foi isso que quis dizer... eu acho.”

Seguindo o script e o diálogo, Justine assentiu com a cabeça e sorriu, mesmo que ainda receosa da minha decisão de ir.

“Bom, mesmo que eu diga qualquer coisa, você não vai mudar de ideia, não é?”, retrucou ela, terminando sua risada e passando sua mão de leve nos olhos.

“Está começando a pegar o espírito da coisa!”

“Entendo. Então só me restar focar nos meus assuntos e orar aos deuses para que o mantenha em segurança.”, ela voltou para seu lugar na mesa, cruzando os dedos e as pernas.

“E como estão as investigações?”, perguntei aproveitando o gancho deixado por ela e tirando o foco do meu momento de passar vergonha.

“Não progredimos muito, mas descobrimos algo bem... peculiar.”, era incrível o quão rápido ela se recompôs. Era quase como se tivesse um botão de ligar e desligar suas emoções, transfigurando-se automaticamente de uma menina meiga e fofa para uma ríspida e mal-humorada líder que comanda seu grupo com uma vontade inabalável e uma mão de ferro – muito poético, não é? “Em meio às investigações, descobrimos estranhos relatos de desaparecimentos pela ||CIDADE DOS COMERCIANTES|| e seus arredores.

“Desaparecimentos?”, repetiu Arthur, parecendo temeroso.

“Sim.”

“E o que é que tem? Pessoas desaparecem todos os dias, não é?”, questionei.

“Sim, mas há um padrão um pouco estranho nesses acontecimentos. Todas as vítimas eram Fauneses e grande maioria em tenra idade. Além disso, todos desapareceram por volta do mesmo horário e sempre nos arredores dessa cidade.”

“E quem faria isso? Por que?”

“Se eu soubesse, não estaríamos tendo essa conversa.”, eu podia ter dormido sem essa.

“Mas foram realmente só Fauneses? E só os mais jovens?”, indaga Arthur novamente.

“Pelos relatos e informações que colhemos, sim.”, confirma Justine. “Claro que nosso foco agora é outro, mas mesmo assim é algo que não dava simplesmente para deixar passar.”

E depois o silêncio. Todos refletiam em possibilidades, explicações e provavelmente mais um Chefe de fase pé no saco para me surrar no final desse arco.

“Justine. Quando você foi sequestrada... você se lembra de como eram aqueles cultistas?”, perguntei, quebrando o silêncio.

.....? Como assim? É claro que eu me lembro! Me lembro... como se fosse ontem.”

“E como eram?”

“Eles eram como zumbis. Não tinham reações e a cara deles era estática. Morta. Como se estivessem... hipnotizados.”

“Entendo. Será que não foi isso que houve com eles?”, era apenas uma suposição. Nem mesmo eu, o criador daquela bagaça toda, sabia de tudo e menos ainda o porquê de tudo. Estava lá dentro à mercê de todos os acontecimentos assim como qualquer NPC.

“Está querendo dizer que pode ter sido o tal Culto Manju o responsável pelos desaparecimentos?!”, Justine fez a pergunta chave da questão.

“É uma possibilidade.”, respondo.

“Então aqueles cultistas que vimos no templo poderiam ser pessoas raptadas de outros lugares do continente também?”, Arthur adiciona outro ponto importante.

“Certo. Mas isso ainda não explica porque só Fauneses desapareceram daqui.”, Justine já começara a ficar impaciente de novo.

“Verdade. Não temos como provar nada.”, assenti com um suspiro.

“Na verdade, talvez possamos.”, Ludwig levantou a voz.

“Grandão? O que foi? Pensou em algo?”, pergunta Arthur.

“Senhorita Justine. Lembra-se de quando estávamos investigando pequenos grupos ligados aos [REGENTES DO NORTE], nos dias de Empório da Comerca?”, relembra o aventureiro parrudo.

A Lidooberry alisou o queixo, pensativa. Mais outro evento que eu presenciava apenas como um espectador retardado que não entendia nenhum acontecimento ou da lore do jogo – a parte do roteiro não era comigo.

“Sim. O que é que tem, Lud?”, e ela já o chamava de “LUD”? Que raios de intimidade era essa?!

“Conseguimos descobrir que eles mantinham laços estreitos com outra guilda de ||REN DO SUL||, mas especificamente de armamentos e encantamentos mágicos especiais para ajudar os Andralinos na guerra.”

“Sim, mas... o que isso tem a ver?”, perguntei se entender ainda a relação de uma coisa com a outra.

“Nossa. Como você consegue ser tão lerdo?”, alfinetou Justine. E eis que a senhorita bipolar que todos nós conhecemos voltou mesmo, para a nossa alegria, só que não! “Encantamentos que o Lud está se referindo são //RUNAS// e //ARMAS// do tipo [RÚNICO]. Essas coisas só podem ser criadas por [ALQUIMISTAS] de alto nível e...”, ela fez uma pausa, esbugalhando os olhos como quem acaba de ter uma epifania. “... com uma grande quantidade de mana!

“Isso mesmo. Fauneses e Demis são seres mágicos, abençoados pelos deuses e dotados de grandes quantidades de mana, principalmente os mais jovens.”, completou Ludwig.

Desde quando ele ficou esperto desse jeito? Pegou todos os pontos que conseguiu upando e colocou tudo em algum atributo chamado cérebro? O cara praticamente deduziu tudo aquilo a partir de alguns pequenos fatos soltos e que não tinham nada a ver com que estavam investigando a princípio.

Sherlock Holmes estaria orgulhoso desse NPC!

“Então podemos presumir que mesmo que não sejam os culpados, essa guilda mercante está de conluio com os responsáveis pelos desaparecimentos, não é?”, recapitulou Arthur que até agora estava apenas ouvindo.

“É nosso melhor palpite.”, responde Ludwig. “O que podemos garantir é que há um esquema ilegal de fabricação de equipamentos rúnicos poderosíssimos rolando por debaixo dos panos. Se conseguirmos provar que isso tem ligação com o desaparecimento dos Fauneses, só vai ser mais lenha para uma grande fogueira que está para pegar fogo dentro da Comerca.”

Justine baixou a cabeça por um momento, provavelmente para pensar em tudo o que estava sendo dito. No entreolhamos mais alguns momentos no silêncio e depois continuei:

“E que guilda seria essa?”

“Uma guilda que se afiliou recentemente à ACC, chamada de [GUILDA DO GROU ABSINTO].”, responde Laimonas fazendo uma pequena colinha de alguns papeis que tinha em mãos.

“Mas eu não descarto a possibilidade desse tal Culto Manju também estar envolvido de alguma forma. Tudo isso está muito estranho.”, ponderou Justine, ainda de cabeça baixa. “ESTÁ DECIDIDO!”

Ela bateu as duas mãos na mesa e se levantou de uma vez, de súbito. Algo bem clichê em uma cena de autodeterminação – se tinha alguma cena clichê na jogada, então eu estava no caminho certo!

“Nós iremos investigar essa [GROU ABSINTO], salvar os Fauneses e acabar com toda essa palhaçada de uma vez!”, anunciou ela, erguendo o punho.

“Senhorita... sem querer interromper você, mas... não estávamos investigando outra coisa?”, inquiriu Ludwig com maior cara de quem estava se cagando de medo de falar aquilo.

Era até engraçado.

“Ah?!”

“Isso, senhorita! Nós viemos para investigar a ACC e a relação dela com o motim secreto na cidade, lembra?”, prosseguiu Lucy, rindo.

Pelo visto, até ela já tinha esquecido o que tinha vindo fazer ali. Por que eu não estava surpreso? Por mais real que parecesse, uma IA – ainda mais incompleta – era uma IA.

“Ah, sim. Mas como uma futura aventureira e líder da maior guilda de aventureiros do mundo, não posso deixar algo como isso passar impune!”, gritou, batendo o punho cerrado no peito.

E ela já tinha até uma meta?! Ser uma aventureira e criar uma guilda?! Uma meta bem ambiciosa ainda por cima.

“Nossa... ela é bem determinada, não é?”, disse Arthur, rindo sem jeito com a vergonha alheia.

Aquilo era muita cena de anime para mim que eu mal conseguir suprimir meu desejo de incorporar o personagem também –, mas eu tinha medo do que acontecia a seguir.

“Então tá, né?  Se é o que você quer, pode ficar a vontade.”, disse por fim, dando meia volta para sair do recinto.

JUNIORAI!”

“Que foi, porra?”

“Nós iremos investigar sobre esses desaparecimentos e você irá para a [TORRE DO MAQUINÁRIO]. Não sei o quão profundo posso mergulhar nessa poça de lama, mas pretendo concluir esse caso dentro de alguns dias. No máximo, duas semanas. Assim que acabarmos aqui, haverá uma embarcação mercante o qual fretamos quando chegamos na cidade, ancorada no rio principal e pronta para embarcar, então por favor...”, ela segurou me braço e permaneceu de cabeça baixa. Todos somente assistiam, pasmos, outra ação inesperada de sua chefe. Ela ergue então a cabeça e me encara com olhos firmes e que exalavam uma sincera preocupação e temor por mim. “... volte vivo de lá!

Eu sorri, repousando minha mão em seu ombro.

“Relaxa! Você sabe que eu vou dar o meu jeito, não é?”

Ela sorriu, corada. Depois parece que se tocou que estava com aquele olhar bobo e balançou a cabeça, empurrando minha mão para longe de si e desenhando seu famoso semblante duro e carrancudo novamente.

“Mas não pense coisas erradas, ouviu bem?! Não ache que estou preocupada com você ou que eu gosto de você ou... ou... É SÓ PORQUE SE ACONTECER ALGO COM VOCÊ, NÃO VAI MAIS ME SER ÚTIL, E É SÓ ISSO!!”, gritou ela com o rosto corado e emburricado, as palavras saindo trêmulas.

A única coisa que eu consegui fazer foi rir de tão engraçada e fofa que foi ver tamanha bipolaridade.

“Está bem, está bem. Já entendi.”, disse rindo.

E todos riram junto também, mesmo Ludwig e sua turma mais receosos.

“Do que vocês estão rindo?! Eu vou fazer vocês comerem capim pela raiz e com o traseiro, seus...!”

HAHAHAHAHAHAHAHA!!”

Bem, se eu fosse definir o resto da minha noite antes de partir para uma raid de nível alto para mim e me suicidar, eu diria que foi a melhor possível.

Conversamos, bebemos, ouvimos os Stuz soluçar toda uma canção épica de um bardo bem famoso na região – nunca mais vou ouvir um solo de soluço na minha vida! – e tudo isso ao lado daquela NPC que só vivia me dando trabalho, mas que não me saia de vista e da minha mente por um único momento.

Arthur e os outros estavam curtindo – e diferente do mundo real, nesse ele bebia! – e quando Justine adormeceu, fiquei apenas refletindo, divagando novamente sobre o propósito de eu estar preso no meu próprio jogo.

E acabei pensando tanto que capotei.       



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