Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 15: Nova ameaça fantasma

 

VOCÊEE!”, gritamos ao mesmo tempo, um apontando para o outro.

Era Lucy¸ a maga tampinha que esquecemos na ||CIDADE DE LIDOOBERRY|| quando fomos para nossa primeira quest.

O que ela estava fazendo em uma cidade como aquela? Tinha desistido de ser uma maga e agora virou comerciante por acaso?

“Lucy?! O que está fazendo aqui?!”, perguntei, sem entender nada do que acontecia naquela cena.

Às vezes eu duvidava que as coisas estivessem de fato acontecendo de acordo com algum script que o game pudesse montar para nós. Haviam casos que aconteciam que pareciam cenas do mundo real – e que quando estávamos lá dizíamos que pareciam cenas de filmes. Que ironia, não é?

“Você é o cara do machado que eu acompanhei e que me deixou sozinha e perdida em uma taberna! O... Juliusai!”

“É Juniorai!”, corrigi.

“TANTO FAZ! COMO PÔDE DEIXAR UMA MAGA TÃO HABILIDOSA COMO EU SOZINHA EM UMA TABERNA FEDORENTA EM UM MOMENTO DE DEBILITAÇÃO?!”, mal havíamos nos encontrado e ela já exigia satisfações.

Só me fez lembrar o quanto ela era irritante e eu já não me sentia tão culpado em tê-la deixado lá.

“Pra começar, eu não abandonei você! Nós apenas deixamos você lá para ser tratada e então...”

“... ME ABANDONARAM! ME DEIXARAM PARA TRÁS! SEUS LARAPIOS! COMO PÔDE SER TÃO PERVERSO?!

A medida que ela gritava e choramingava, as pessoas e aventureiros que passavam por perto viam toda a cena com maus olhos. A voz de Lucy era tão alta e afinada que prevaleceu mesmo entre a grande algazarra sonora da praça e muitos que conversavam ou faziam alguma coisa pelas redondezas pararam para ver o que acontecia.

Logo nós éramos o centro das atenções! Ela ficou pigarreando e chorando no chão e eu não sabia o que fazer diante daquela reação inesperada. Eu via que as pessoas já começavam a me apedrejar apenas com os olhares ao analisarem a cena errado.

“Porque aquela moça está chorando no chão?”, questiona um senhor, aos cochichos.

“Aquele homem está maltratando aquela menina?”, perguntou baixinho uma mulher que carregava uma criança no colo.

“Esse cara é muito suspeito! Ele deve ter feito alguma coisa grave!”, disse outro cara com a voz mais grave do outro lado.

“Acho que ele machucou ela. Mas que filho da...”, praguejou mais um acompanhado do anterior.

“Se ele fizer mais alguma coisa, vamos pegá-lo!”, disse mais um no meio da multidão.

“Quem faz uma menina chorar? Esse cara é o pior!”, sussurrou outra menina próxima.

Se eu não a fizesse parar logo, daqui a pouco eu seria apedrejado mesmo, e não só com os olhos!

Me ajoelhei perto dela e segurei seus ombros, todos com olhares furiosos voltados para mim. E então, sussurrei no seu ouvido:

Lucy! Lucy! Para, porra! Para com isso, caralho! Senão você vai me complicar aqui!”, fui muito cauteloso para não parecer ainda mais suspeito do que eu já parecia.

“Acho que ele vai machucá-la de novo. Vamos pegá-lo!”, disse um aventureiro atrás de mim.

“Não deixe ele escapar!”, urrou o outro.

Eu me virei rapidamente e espalmei as mãos, mostrando nenhuma intenção de combate.

“Hahahaha! Não é nada! Não é nada! É que a minha...”, eu dei uma pausa, pensando em como deveria descrevê-la. Acho que “pirralha” seria um termo bem adequado, mas não ideal para aquela situação. “... companheira, é um pouco escandalosa, só isso! Hahaha!”

Os três aventureiros parrudos e genéricos bufaram.

“Esse palerma está implicando com você, menina?”, perguntou um deles para ela.

E ela por um momento sossegou, amenizando o choro e me olhando de canto de olho com um sorrisinho malandro. Eu fiz uma careta contorcida de raiva.

“Eu... eu... só fiquei extremamente triste... porque fui abandonada e... largada... de forma tão... covarde... por este que está diante de vós!”, disse ela da forma mais dramática e trágica possível.

Os três se viraram para mim, os olhos ardendo em raiva e prontos para remodelar minha cara no punho.

“N-n-não é... nada disso! Isso é tudo um grande mal-entendido! Um mal-entendido! Não é, Lucy?!”

O figurante maior e que tinha partes mecânicas implantadas em seu corpo, lembrando um ciborgue, me segurou pela gola da camisa e me levantou do chão. Os outros dois me cercaram.

Droga! Onde estava o Arthur para ser meu álibi uma hora dessas?!

“Não... não se preocupem... comigo, bravos aventureiros! Antes de chegarem... esse que me abandonaste estava buscando... uma forma de... reparar seu erro!”, exclamou ela entre suspiros e soluços.

Eles alternaram os olhares entre a vítima indefesa e injustiçada caída ao chão e eu, e então se entreolharam. Pareciam indecisos se era para esmurrar minha cara ou não.

“Senhorita, tem certeza disso? Esse homem deve pagar por ter abandonado você!”, disse o que me segurava, incorporando o “príncipe encantado de lugar nenhum”.

Ela fungou, fingindo limpar do rosto uma de suas lágrimas de crocodilo.

“Tenho sim... apesar de tudo, eu sou... uma mulher forte e vou... sobreviver. Peço-lhes que atendam esse meu único apelo e libertem esse pobre bandoleiro!”, poderia ter tirado a parte do “bandoleiro”, no final.   

Ela pega algo dentro de sua bolsa. Era algo parecido com um bloquinho de anotações de folhas amareladas e sujas e uma caneta bico de pena. Então ela começou a sorrir de canto de boca e rabiscando as folhas rapidamente, enquanto os grandões ainda decidiam se iam me liberar ou não.

“Você teve sorte, moleque! Só vamos deixar você ir porque a moça deixou!”

“Vocês falam isso porque não conhecem a peça!”, pensei comigo ao finalmente ser solto pelo grandão. Toquei os meus pés no chão, podendo, enfim, respirar direito.

A gola da camisa estava completamente esfolada e eu diria que ia rasgar se eu permanecesse mais tempo suspenso pela mão pesada e parruda do aventureiro. Então os três figurantes foram embora e desapareceram entre a massa de pessoas que já retomava seu fluxo costumeiro e agitado. Mesmo depois de um reencontro daqueles ainda vinha mais três figuras totalmente aleatórias me aporrinhar.

É... pelo visto, hoje seria um dia daqueles.

E agora eu respirei bem fundo e controlei minha raiva ao me virar para Lucy, que ainda estava anotando algo naquelas folhas velhas e carcomidas. Me aproximo lentamente e fico de cócoras a sua frente. Estava com uma expressão quase desfigurada e possessa de ódio, como se eu pudesse arrancar sua cabeça apenas com a força do pensamento.

Imagino que eu não tivesse nenhuma habilidade assim, infelizmente. Então ela pareceu terminar o que escrevi e olhou para mim, sorrindo.

“E então, o que achou da minha encenação? Não foi demais? Eu realmente sou incrível, não é?”

Eu não respondi nada. Apenas repousei CALMAMENTE minha mão sobre seu ombro e sussurrei em seu ouvido:

“|AUMENTAR CARGA|.”

“AAARGH!”

A mão pesou abruptamente sobre a clavícula da menina e a derrubou no chão com força, fazendo-a grunhir de dor.

Os cidadãos que ainda estavam em volta e que viram o showzinho da Lucy voltaram a me fuzilar com os olhos e a reclamar. Daqui a pouco o trio de figurantes genéricos que me lembravam os três de Lidooberry, voltariam para me surrar de verdade.

“Calma, calma! Ela teve uma... hã... dor nas costas, e precisa de cuidados. Eu me responsabilizo!”, anunciei.

A maioria cagou e andou para o que disse e os outros que me ouviram apenas voltaram aos seus afazeres. Cancelei a habilidade e a tomei nos meus braços, utilizando também da minha outra habilidade |REDUZIR CARGA| – com aquela skill, Lucy estava leve como uma pluma.

 

Eu a levei até um lugar mais isolado e reservado – o que foi bem difícil de encontrar na maior cidade comercial daquele jogo, pelo visto. Uma pequena passagem localizada na divisa entre duas residências, na borda do rio que separava a cidade.

Eu a joguei no chão como um saco de batatas e ela gemeu com a queda. Ainda era pouco para a quase encrenca que ela quase me meteu. Arthur nos encontrou pouco tempo depois.

“Eu tentei chegar até vocês o mais rápido que pude.”, disse ele, ofegante. “Eu vi o que aconteceu na praça.”

“Essa mulher é louca! Ela quase me ferrou lá atrás com o teatrinho dela! Incrível como aqueles imbecis ainda caíram!”

Ela se levanta do chão, sacudindo a poeira das roupas.

“Ah, você me sujou toda! Logo agora que eu havia conseguido uma roupa tão incrível como eu! Primeiro você me abandona e agora suja minha roupinha...”

“FODA-SE A SUA ROUPINHA! VOCÊ QUASE IA ME FERRANDO COM SUA ENCENAÇÃO DE MERDA!”, gritei tão alto quanto minha garganta me permitia.

Lucy encolheu a cabeça entre os ombros com uma expressão chorosa no rosto.

“Mas eu... só estava... só estava...”

Eu vi que ela ia começar a choradeira de novo e me contive. Mesmo em um canto mais isolado como aquele, alguém podia nos pegar. Era a cena perfeita que Lucy buscava para recomeçar sua cena de vítima indefesa.

“Ah... eu não quis... hã...”

“HAHAHAHA! De novo! Nossa, eu sou muito boa mesmo!”, ela gargalhou, com as duas mãos na barriga.

Eu cerrei o punho, quase levando-o ao cabo do machado. Nunca em nenhum jogo eu fiquei com tanta vontade de decapitar um NPC quanto naquele jogo.

Não me lembro de ter criado uma personagem tão inconveniente quanto Lucy.

“DÁ PARA PARAR COM ESSA PALHAÇADA?!”

E depois de muitos gritos e xingamentos depois:

“E então, o que vieram fazer tão longe, aqui na ||CIDADE DOS COMERCIANTES||?”, pergunta ela, curiosa.

“Nós viemos atrás de um tal de Bazz7. Você tem alguma ideia onde podemos encontra-lo?”

Ela pensa um pouco antes de responder.

“Não... não faço a mínima ideia...”

Nada além do esperado.

“Ah, sim. Então, foi um prazer, desculpa termos largado você e boa viagem...”

“..., mas eu conheço alguém com certeza deve saber.”

Eu parei de andar subitamente, me virando para ela.

“Quem?!”

Ela me lançou uma mirada maliciosa.

“Só se você admitir que curtiu minha performance.”, exigiu.

“Lucy! Sério! Precisamos encontrar essa...”

Ela virou o rosto, esperando que eu dissesse o que ela queria. Pelo visto, palavras ou mesmo ameaças não surtiriam efeito. Acho que a maior vítima e refém naquela história

“Certo... nós A-D-O-R-A-M-O-S sua performance! Foi incrível!”, falei, as palavras rasgando a garganta.

Ela soltou um risinho, acompanhado de um saltinho. Era mais infantil do que imaginei.

“Eu sei, eu sei! Agora, me sigam, camaradas!”, ela saiu andando na frente, em direção oposta por onde viemos.

“Ufa... até que enfim, temos um ponto de partida.”

 

 

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Algum tempo de caminhada depois, subindo as margens do ||RIO TORA|| dentro da cidade.

 

Após uma caminhada exaustiva – quase uma São Silvestre, devo dizer – por uma ladeira interminável, entrando em uma rua, saindo em outra, pegando um beco, virando a viela a direita da casa da senhorinha gorda, passando por mais um ancoradouro próximo ao rio, dobramos mais um beco praticamente escondido pela quantidade de lixo e tralhas que ficavam na entrada.

Debaixo de uma sombra produzida por uma grande arvore localizada do outro lado da rua, a passagem era estreita e as paredes, engorduradas. As placas escarlates da Salamandra de Arthur riscavam a superfície acidentada das paredes.

Depois de cruzar o corredor, nos encontramos em um salão arruinado, lembrando uma taberna que foi abandonada e guardado na penumbra. A única iluminação fraca do lugar vinha pelas frestas de uma ou duas janelas tapadas com tábuas e restos de tecidos velhos montados em cima de uma haste transversal em cima da janela, formando uma cortina improvisada.

Mesas estavam viradas pelo chão – e as poucas em pé estavam praticamente brancas de poeira –, cadeiras desmontadas e os moveis completamente postos a baixo com exceção de uma prateleira com algumas vidrarias dentro que jazia depois do balcão – ou o que sobrou dele.

Onde aquela doida havia nos metido afinal? Em um covil de ladrões? Eu teorizava que ela havia desistido de ser uma maga e virou uma comerciante, mas uma gatuna nem me passou pela cabeça.

“OIEE! Voltei! E trouxe visitas.”, ela parecia que estava chegando na casa dela. Era o NPC mais bugado de jogo até agora, de longe!

No entanto, ninguém responde. Continuamos andando.

“E então... tem alguém aqui pelo menos?”, Arthur pergunta, desconfiado.

“Ah, tem sim. É que ela gosta de se fazer de surda mesmo.”, responde Lucy, rindo.

“Ela?”

Alguns passos pelo meio do salão e avistamos na parte mais escura do lugar, uma mesa separada do resto das ruínas. Três figurões estavam em pé e alguém estava sentado á mesa, como se os três guardassem a que estava sentada.

Por algum motivo, seus contornos e estaturas me eram bastante familiares.

“Lucy. Você demorou. Se perdeu no caminho de volta?”

“Nãaaao. Só tive alguns contratempos. Como alguém genial como eu poderia se perder?”

“Conseguiu mais informações?”, pergunta a mulher.

Nota: a voz dela também era bastante familiar. Será que...?

“Você não seria... Justine?!”, exclamei, apontando para a figura sentada.

“Nossa, mas que mundo pequeno, hein?”, ela se levantou e me cumprimentou calorosamente.

Depois os outros três que estavam com ela eram nada mais, nada menos que Ludwig, Laimonas e Stuz – será que ele ainda soluçava? Todos de Lidooberry estavam reunidos lá!

“Pessoal! Há quanto tempo!”, Arthur os cumprimenta também com abraços e apertos de mão.

Na verdade, não fazia nem duas semanas direito que deixamos a ||CIDADE DE LIDOOBERRY|| e partimos direto para cá. O que eles faziam aqui? De repente, várias perguntas surgiram na minha cabeça.

“São os jovens e bravos guerreiros que lutaram conosco! É uma honra nos encontrarmos de novo!”, disse Laimonas, emocionado.

“Isso aí! Que colírio para os olhos! YUP!”, é... ele continuava soluçando, sim.

“Isso foi uma grande e agradável surpresa. O que estão fazendo aqui na ||CIDADE DOS COMERCIANTES||?”, perguntou Ludwig.

“Ué... nós viemos para encontrar o nosso ferreiro. Nós falamos disso quando estávamos na ||TOCA DO FAUNO||, não se lembram?”, perguntei.

Os três coçaram a cabeça ao mesmo tempo, tentando recordar. Mas que pergunta óbvia, não é? Eles deviam estar muito bêbados na ocasião.

“Na verdade, não me lembro de nada daquele dia.”, disse Ludwig forçando uma lembrança.

“Eu só queria era beber depois de chutar a bunda de uns cultistas! YUP!”, disse Stuz com uma risada.

“Por que eu não fiquei surpreso?”, comenta Arthur com uma risadinha boba.

“Eu já sabia que iria encontrar vocês cedo ou tarde aqui na cidade. Era só uma questão de tempo mesmo, por isso fiz questão de prolongar minha estadia.”, falou Justine, corada.

Eu não entendi muito bem a parte de “prolongar a estadia”, mas ainda não estava claro do porque dela estar ali. Além disso, se não fosse uma “coincidência planejada” do próprio jogo, acho que nunca acharíamos eles em uma cidade tão grande quanto aquela, muito menos eles se escondendo daquele jeito como se fossem criminosos.

“Justine, por que está aqui? O que aconteceu? Depois de tudo o que aconteceu no ||TEMPLO DO CULTO MANJU|| você devia estar em casa, fazendo companhia pro seu pai e se recuperando.”

Ela virou o rosto, mudando sua expressão subitamente.

Ficar em casa não é mais seguro, Juniorai.”

“O que? Como assim?”

Ela se sentou, cruzando as pernas. Os três aventureiros fizeram o mesmo e Arthur catou duas cadeiras inteiras para nós no meio da bagunça.

“Assim que voltei para casa, eu tentei falar com meu pai, mas ele não estava. Mandei uma mensagem por Uhtero e, curiosamente, ele disse não ter tido nenhuma notícia do meu rapto. Como se não bastasse, segundo o meu mordomo Estácio, ele havia programado uma viagem alguns dias antes e partiu exatamente no dia que eu fui raptada. Muito estranho, não concordam?”

Eu ponderei. Apesar de serem coisas realmente bem estranhas – e isso eu falo porque alguns dias antes eu havia falado com o pai de Justine e ele já parecia estar completamente certo de eu ter concluído a quest.

 

(...)

“Pois eu confio nele. A [GUILDA DA CAPITAL] tem um bom histórico com seus aventureiros. Vamos dar esse voto de confiança a ele!”


 

Naquela hora, me concentrei tanto em fazer minha palavra parecer autêntica para eles que sequer parei para pensar do porque daquela confiança cega em um aventureiro maltrapilho como eu.

Sem provas, sem exigir documentos ou mesmo contatar a [GUILDA DA CAPITAL] para confirmar; ele simplesmente me entregou a recompensa, sem pestanejar! Agora, seria obra do próprio script do jogo? Será que ele de fato estava programado para acreditar em tudo o que eu dissesse, não importando o que eu tivesse dito?

Não. Se fosse de fato essa hipótese, Justine também teria acreditado no que eu disse e não foi o caso. Ela era tão NPC quanto seu pai, então porque ela desconfiou de mim? Seria um bug? Uma anomalia na programação? Ou talvez...

“Juniorai?”, ela me chamou, me despertando das minhas vertigens.

Já dava para sentir a baba escorrendo dos lábios.

“Ah, ah! Foi mal! Eu viajei aqui.”, me recompus rapidamente.

“E ele estava avoado, para variar. Será que ele ouviu tudo que você falou, Justine?”, bufou Arthur, repousando o rosto sobre as mãos.

“Então... o que eu estava dizendo é que eu desconfio que alguém armou para mim!”, disse Justine, cruzando os dedos.

“Armou para você? Quer dizer que alguém estaria tentando te matar ou te raptar buscando alguma vantagem com seu pai?”, recapitulou Arthur, incrédulo.

“Eu não duvido nada de que essa pessoa possa ter sido meu próprio pai!”

“Que isso, minha jovem! Está certo que ele não deve ser o melhor pai do mundo, mas mandar raptar a própria filha?! E ainda por cima mandar cultistas loucos e fanáticos? Isso é loucura!”, protestei. Acho que eu mesmo não queria acreditar em algo tão louco quanto o que eu havia concebido em minha mente deturpada.

“Ah é? Então como os cultistas sabiam exatamente onde eu estava? Segundo os registros que eu peguei no escritório do papai, os caras do Culto Manju geralmente atacam regiões mais isoladas ou mesmo usam pessoas a beira da morte em seus sacrifícios”, ela fez uma pausa, revirando os olhos.  “..., mas justamente naquele dia em que meu pai viajou, um bando de cultistas loucos invade a cidade, vão exatamente para a taberna onde estávamos e me rapta, sendo que eu estava disfarçada para não dar na vista?”

“Senhor Juniorai, realmente quando a senhorita Justine pediu nossa ajuda, até mesmo nós percebemos que alguma coisa bem grave estava acontecendo na cidade.”, Ludwig acrescenta.

“Sim... YUP! Havia bem menos pessoas na taberna naquele dia.”, continuou Stuz, fazendo uma rápida pausa para soluçar mais uma três vezes. “Outras tabernas e comércios que frequentamos também fecharam mais cedo naquele dia, o que não era comum de acontecer. YUP!”

“Logo percebemos que alguma coisa estava errada. Não era comum desses lugares fecharem naquele horário e dia. Era como se... eles já soubessem o que ia acontecer.”, concluiu Laimonas, a voz fraca e pausada.

Enquanto eles falavam, eu só ia montando as peças na minha cabeça. Eu mesmo não tinha reparado nesse detalhe, talvez por conhecer tão pouco – ou completamente nada – o lugar.

“Então estão nos dizendo que a cidade inteira teria sido cúmplice de um atentado contra Justine? Por que?! Para que?!”, continuei com as perguntas, na esperança de pelo menos alguma ser respondida até o fim do nosso encontro.

Justine suspirou.

“E é por isso que estamos aqui”, ela fez uma pausa, tirando de dentro do seu sobretudo um maço de papéis, dobrados e alguns rasgados, agrupados por uma garra feita de metal que lembrava um pregador de varal gigante. “Encontrei alguns documentos também no escritório do meu pai que podem ser pistas sobre toda essa conspiração que está acontecendo.”

“Documentos de câmbio?”, Arthur pareceu reconhecer todas as formalidades apenas em bater o olho no papel.

Aquilo nada mais era do que vários contratos e notas fiscais. Atestavam que os Lidooberry haviam assinado acordos comerciais com algumas guildas de uma tal de ACCAssociação Comercial Continental – o qual Justine havia nos informado antes que Bazz7 fazia parte.

Curiosamente, mesmo que as notas estivessem como remetente os próprios Lidooberry, nenhum dos recursos expedidos por nenhuma delas tinha como destinatário final nenhuma força militar da própria cidade, mas sim um grupo marcado com uma letra C.

E mais perguntas sem respostas eram adicionadas à minha lista com sucesso!

“Isso. Meu pai ou alguém da minha casa andou fazendo contratos comercias para receber recursos que nunca vieram!”, Justine ralhou, a voz pesada. “Eu não queria acreditar que fosse ele, minha família ou mesmo alguém que trabalha na minha casa. Quando voltei e vi que ele estava ausente, procurei os outros empregados e contei o que tinha acontecido. Até mesmo eles estavam estranhos; eles estavam agindo como se nada tivesse acontecido. Ninguém se deu conta da minha falta, além de Estácio.”

“Seu mordomo?”, inquiri.

“Sim. Foi ele quem me contou da viagem. Aparentemente, assim que meu pai partiu, todos ficaram estranhos do nada...”

 

 

“O Sr. Louis veio até mim para me contar sobre uma suposta e repentina viagem a negócios até GardenmoonV. Até aí tudo bem, mas depois os empregados da mansão ficaram estranhos. Depois de um tempo, fiquei intrigado do porque a jovem mestra não havia retornado para casa ao final do dia e quando fui perguntar aos outros, todos desconversavam ou falavam coisas estranhas como ‘logo você terá ótimas notícias dela’.”

 

 

“Quando ouvi isso fiquei com medo. Muito medo. Em questão de segundos, eu não me sentia mais segura em nenhum canto daquela cidade, nem mesmo na minha própria casa! Todos viraram meus inimigos e eu sentia que a qualquer momento uma faca voaria no meu pescoço vindo de algum lugar. Eu tive que fugir dali o quanto antes, mas não podia fazer isso sozinha. Eu não tinha como deixar a cidade sem ajuda e Estácio não podia fazer nada que parecesse suspeito.”

“E é aí que nós entramos.”, Ludwig se incluiu na conversa.

“A senhorita Justine nos procurou e confirmou que nós éramos de confiança, assim como a senhorita Lucy.”, continuou Stuz, me deixando surpreso por ter concatenado uma frase sem soluçar uma única vez.

“Como essa brava maga veio de fora da cidade, concluímos que ela não estaria envolvida com os conspiradores.”, diz Laimonas, explicando o do porque aquela desbravadora de formigueiro estar ali.

“Como eles precisavam da minha genialidade e do meu poder tanto assim, não tive como recusar, não é mesmo?”

“Ou você só queria uma outra oportunidade para se exibir, imagino.”, pensei com uma expressão azeda.

“Estácio me ajudou com os preparativos para a minha viagem, mas teve que ficar para gerir a casa na ausência de meu pai. Depois de tudo que eu descobri vasculhando as gavetas da sala dele, conclui que o melhor lugar para começar a investigar sobre isso seria aqui. A única pessoa de confiança que ainda tenho na cidade é Estácio, e sei que ele vai se certificar de cobrir qualquer rastro nosso.”, Justine por um momento fechou os olhos e respirou fundo, como se estivesse prestes a dizer algo importante.

“...?”

“Juniorai... você, seu amigo e todos esses aventureiros que reuni em minha equipe são as únicas pessoas que ainda confio nesse mundo fora meu mordomo, e nesse momento eu sinto que estou sendo caçada. Há muitas coisas que estão nebulosas e que eu não entendo ainda, mas eu preciso descobrir o porquê que está acontecendo isso e desmantelar toda essa conspiração de uma vez. E como falei antes, não posso fazer isso sozinha.”, ela fez uma pausa, olhou intensamente em meus olhos, agarrou minhas mãos com aquele toque que me lembrava o de uma boneca macia de silicone e só disse uma única coisa:

“Por favor... eu preciso da sua ajuda mais uma vez.”

De repente, uma coisa maluca aconteceu: é bem difícil de explicar com palavras, mas era como se o tempo subitamente tivesse desacelerado a um ponto de “quase parada”.

De repente, tudo estava incrivelmente devagar e vários sinais visuais e alertas tomaram minha cabeça e minha visão. Naquele momento, eu tive certeza de que mais um evento do jogo foi iniciado – ou uma cadeia de eventos talvez.

As primeiras que me tomaram a atenção foram uma de alerta de missão e outras duas missões secundárias na cidade que envolviam a Lucy – e que eu já tinha botado na minha cabeça que iria ignorar.

 


MENSAGEM DO SISTEMA

– NOVA MISSÃO PRINCIPAL DO [PRIMEIRO ATO], DESBLOQUEADA!

2X – NOVA MISSÃO SECUNDÁRIA, DESBLOQUEADA!

........

[MAIS DETALHES]


 

Era quase como se eu pudesse selecionar o que eu queria ver e o que não. Já havia visto aqueles sinais loucos que ficavam apitando e poluindo minha vista de quando chegava uma nova missão para mim várias vezes em outras ocasiões.

Contudo, realmente era a primeira vez que tinha um MENU onde eu poderia selecionar as coisas que eu queria fazer e ver os detalhes de cada quest. Era realmente bem interessante experimentar essa interação com as mecânicas do jogo, aplicadas a alguém que veio do Mundo Real.

E o tempo ainda estava extremamente lento, mas não parado. Em uma questão de nanomilésimos de segundos, mas Justine ainda esperava uma resposta minha e para isso, outra aba foi aberta:

 


MENSAGEM DO SISTEMA

– CONDIÇÃO PARA MISSÃO PRINCIPAL REQUERIDA!

|– VOCÊ ACEITA O PEDIDO DE JUSTINE? SIM () NÃO () – |


 

As abas e mensagens do sistema estavam cada vez mais elaboradas e eu tinha que pensar duas vezes agora antes de pular qualquer mensagem que aparecia para mim. Dessa vez, era uma aba de múltipla escolha. Um booleano que me permitia aceitar ajudar Justine ou apenas me recusar.

A palavra SIM estava negritada e bem destacada, já pronta para ser selecionada – e tudo isso era proposital. O jogo e a própria cadeia de eventos que foi desencadeada com aquele encontro realmente estavam me mostrando que era aquele caminho que deveria ser seguido.

Eu poderia dar uma de troll e escolher a opção de NÃO, mas eu ainda não tinha certeza do que poderia acontecer caso eu me recusasse a ajudar. Talvez no mínimo, a programação do jogo me forçasse a ajuda-la ou as circunstâncias e situações criadas inconscientemente por eles – também em razão da lógica do código – acabariam por me fazer aceitar cedo ou tarde.

Uma falsa sensação de livre arbítrio. Duas escolhas que vão culminar sempre no mesmo destino.

Escolhi o SIM.

Ao selecionar a opção naquele mapa mental, a missão foi confirmada e os outros alertas saíram do meu campo de visão. Meus olhos clarearam e o tempo voltou a correr normal, com todos esperando uma resposta minha.

“Tá bom. Eu te ajudo com isso.”, respondi, simples e direto. Eu diria até mecânico.

Ela abriu um sorriso caloroso e senti que ela quase saltou da cadeira na minha direção.

“Eu sabia que eu podia contar com você, Juniorai. Mas não fique se achando só porque pedi sua ajuda de novo! Você nem de longe era minha única opção!”, e ela já estava fazendo manha do nada.

Eu tinha esquecido que aquela porra era bipolar! O que eu tinha que fazer para escolher de novo?

“Sim, mas e agora? Nós ainda temos que achar o Bazz7.”, relembrou Arthur.

“Sim. Eu também tenho que encontra-lo e fazer várias perguntas a ele, então acredito que nós possamos nos ajudar, não é?”, disse Justine com uma piscadela para mim.

Eu não sabia se eu ficava feliz ou com medo daquilo.

“Sim. Foi para isso que viemos aqui. Você tem alguma ideia de onde podemos acha-lo?”, fui direto ao ponto antes que ela inventasse mais alguma coisa.

Tudo que eu não precisava eram de mais missões secundárias para me desfocar do meu objetivo. Já havia apitado mais umas duas ou três para mim até aquele ponto da conversa, fora as duas primeiras da Lucy.

“Sei sim. Venha comigo.” Ela se levantou e saiu andando pelo meio dos destroços.

A seguimos até o lado de fora, onde ela seguiu até a rua. De frente para o topo da ladeira, ela apontava a grande muralha que se erguia seguindo o incólume rio.

“Lá é a região central da cidade, também chamada de Comerca. Uma zona murada de mais ou menos 6 quilômetros de extensão e de formato circular. Há mais ou menos uns três portões principais de entrada, sem contar o portão das docas, e dois secundários. Se seguirem as margens do rio, chegaram ao ||PORTÃO DA FORTUNA||. Lá dentro, na grande praça da Comerca, está acontecendo um grande evento hoje.”, informou ela, categórica.

Fiquei até assustado como ela sabia de tudo isso. Acho que tudo que ela falou já contaria com a descrição da missão, então foco total às suas palavras!

Evento? Que evento?”, pergunta Arthur.

“Um evento mercante; geralmente acontece duas ou três vezes por mês na Comerca, mas esse é diferente. Todos os líderes das guildas mercantes, incluindo alguns de outras cidades-reino, vão estar presentes para uma reunião, incluindo o nosso alvo.”

“Bazz7...”, completei, mirando o topo da muralha.

“Exatamente.”, ela confirmou. “Porém, não tentem nada precipitado, pois lá está entupido de guardas, sem falar os assassinos e guarda-costas dos líderes.”, advertiu.

Ótimo. Uma missão em Stealth para variar. Não sei se eu ia conseguir com um machado de batalha nas costas, mas não custava tentar. Era hora de partir. Não podíamos perder uma chance como essa.

“Apenas finjam que são mais dois compradores ou mercadores interessados nos produtos e ajam naturalmente para não levantar suspeitas tanto dos guardas quanto deles. Fiquem de olho no Bazz7 e quando aparecer uma oportunidade, o abordem sem alvoroço.”, disse Justine, passando as últimas instruções antes de irmos.

“Certo!”, dissemos.

“Ah, mas uma última coisa...”

“...?”

“Bazz7 é tão ardiloso quanto uma raposa. Ele nunca revela suas verdadeiras intenções logo de cara e parece sempre estar escondendo o jogo. Mas acima de tudo...”, ela fez uma pausa de súbito.

“Acima de tudo...?”, repeti. Formou-se uma atmosfera tensa de repente.

“Nunca. Nunca mesmo... apostem com ele! 



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