Volume 1 – Arco 2
Capítulo 14: A cidade mais cara do jogo
Cidade-reino de ||MERISHA||, zona sudeste da região de ||RONEA||, do outro lado do continente.
PLAYER: [???]
“CAIU! CAIU! A... a... a...”, o pobre guarda mal conseguia falar.
“Reporte direito, soldado! O que caiu?”, pergunta o oficial da guarda, descendo de seu potente cavalo marrom.
“||MERISHA||... CAIU SENHOR! A CIDADE... FOI TOMADA!”, gritou o guarda.
Todo o resto da tropa que vinha mais atrás escutou e suas faces petrificaram. O comandante, ainda boquiaberto, não conseguia processar o que estava sendo relatado a ele.
Parecia uma mentira. Um sonho. Uma brincadeira de mau gosto, no máximo.
Contudo, ao longe, além da orla da grande montanha, passando o ||VALE CASTUS||, grandes pilares de fumaça se levantavam de dentro das fortificações muradas da cidade-reino, quebrando os corações e espíritos da tropa de batedores. O oficial observava a todo aquele cenário absurdo e surreal, impotente. Nada podia fazer além de ver sua cidade natal queimar ante o ataque fulminante do inimigo.
Não inimigo. Sua própria irmã a qual cresceram juntas: ||ANDRAS||!
“Senhor... o que fazemos agora?”, perguntou um dos soldados, estacionando seu cavalo ao lado do oficial paralisado.
Ele não respondeu. Ainda assistia a tudo, tentando absorver aquela situação. Nunca sequer havia pensando, nem por um milésimo de segundo, que algo daquele tipo, daquela magnitude, pudesse acontecer.
Era uma situação tão irreal que ele próprio se recusava a acreditar em seus olhos.
Mais um tempo se passou e então ele finalmente responde com meias palavras:
“Não há mais... o que ser feito.”, o soldado calejado empalideceu ao ouvir aquelas palavras tão mórbidas de seu superior.
“Não há dúvidas... só pode ter sido ele!”
_________________________________________________________
Enquanto isso, na cidade-reino...
*VUUULT*
*TOC*
“AAH! Não pode ser...”
O som da lâmina cortando o ar era angustiante para os ouvidos dos conselheiros assustados. O grupo de sete anciãos que serviam de conselho para o rei agora pareciam ratos encurralados na parede. A sua frente se encontrava o cadáver tombado do rei de ||MERISHA||, decapitado. A cabeça rolou a alguns metros do corpo com a força do golpe.
E estava lá, de pé ante o corpo do rei caído, a figura imponente e de olhar tão afiado quanto a grande espada que empunhava: o rei de ||ANDRAS||, Gabriel. Ele balançou seu grande montante de duas mãos, limpando o sangue de seu fio.
“COMO PÔDE FAZER ISSO?! A IRA DOS DEUSES CAIRÁ SOBRE VOCÊ POR ESSA BARBÁRIE!”, grita um dos conselheiros.
Gabriel suspira.
“A partir de hoje, ||MERISHA|| é parte integrante e efetiva de ||ANDRAS||!”, anuncia ele. “Seu rei não quis entender isso. Pelo visto, sua coroa e suas fortunas inúteis valiam muito mais que sua vida para ele.”
“E O QUE ESTÁ QUERENDO COM ISSO?! TUDO O QUE CONQUISTOU ANDRAS JÁ NÃO BASTA?! ESTÁ QUERENDO ARRASTAR TODA ESSA TERRA PARA UMA GUERRA E CARNIFICINA SEM SENTIDO, É ISSO?!”
Depois de gritar essas palavras, o conselheiro azarado tem sua cabeça explodida por uma energia poderosa que veio apenas do balançar da espada de Gabriel. Outro que estava próximo também foi atingido e perdeu o braço esquerdo, gritando de dor.
“Não tenho razões para me explicar para vocês. Hoje seus cidadãos são também cidadãos de Andras! Suas riquezas naturais pertencem a Andras! Seus trabalhadores, estradas, refinarias... tudo nos pertencem e pertencem ao propósito maior pela qual Andras foi formada! Não precisam de muito mais que isso! Sendo assim, mais alguma pergunta?”
Com exceção do que estava agonizando de dor no chão por ter seu braço cortado, o resto se ajoelhou e ninguém ousou dizer mais nada.
Gabriel embainha sua espada.
“Ótimo. Alguém trate de socorrer esse cara antes que morra por hemorragia.”, disse ele se retirando com seus generais.
“Por que isso está acontecendo com a gente?”, pensou um deles, tremendo.
Os soldados parrudos, marcados e vestidos com peles e placas de metal se alinharam para fazer um caminho para o rei passar. Os cidadãos da cidade assistiam assustados, de longe, a marcha militar do Andralinos. Estavam completamente rendidos e assim ficariam agora com a queda de seu rei e seus nobres.
As tropas se posicionam na entrada da cidade. Os portões foram derrubados e as tropas de defesa da cidade-reino foram totalmente subjugadas. Agora os Andralinos tinham acesso a todos os recursos daquele reino e carta branca para ir e vim quando bem entendessem. O maior medo dos merishidas se tornava real.
“É ele... o rei dos bárbaros.”
Vozes sussurram entre o povo assustado.
“A espada que traz o caos. O homem com um demônio selado em sua espada.”
“Dizem que ele já conquistou toda a região de ||RONEA||.”
“Agora ele está expandindo para ||REN DO SUL|| e ||LHASA||. E não vai parar...”
“Ele é um monstro! Um monstro que vai tomar todo o continente!”
Gabriel bocejou, encontrando-se com um grupo na saída da cidade-reino.
“Como foi a tomada da cidade, milorde?”, perguntou uma mulher encapuzada de voz suave.
“Como todas as outras: um tédio.”, responde com uma inexpressiva cara de tédio.
“Entendo que esperava um desafio maior milorde, mas logo terá uma conquista a altura de seu poder e sua glória.”
“Que seja. Quero ir para casa logo e comer.”, responde Gabriel andando na frente.
E assim se passa mais um dia na vida de um grande rei conquistador que todos dizem ter um demônio selado em sua espada. Mais um dia de conquistas entediantes.
Com isso, ||RONEA|| estava completamente em suas mãos.
______________________________________________________
Reino de ||AMINAROSSA||, alguns dias depois...
PLAYER: [Juniorai]
Enfim, voltamos! Tirando a travessia de barco – e eu juro que o barco quase virou na volta – o resto da viagem de volta para ||AMINAROSSA||foi bem tranquila. Agora com habilidades novas, uma armadura decente e totalmente recuperado, eu e Arthur não nos preocupamos com a maioria dos monstros que encontramos no caminho.
Só tem uma coisa que esquecemos com toda a confusão: a maga tampinha, Lucy. Ela ficou em Lidooberry e só lembramos dela quando já tínhamos atracado em Muskin. Que bola fora!
Pelo menos evitamos passar em ||LACUNA|| na volta. Seria meio tosco a gente dizer que esquecemos nossa companheira do outro lado da região.
Talvez depois quando tivéssemos alguma oportunidade de encontra-la de novo, eu pediria desculpas por ter abandonado ela – a palavra “abandonar” é muito forte. Melhor “nos separar” mesmo.
Tive todo o cuidado de manter Picker escondido da vista de todos durante a viagem. Não era muito fácil mantê-lo dentro da bolsa ou na roupa, então as vezes ele se escondia debaixo da minha brafoneira. Suas asas faziam cócegas em meu ombro e era difícil manter uma pose “normal” na maior parte do tempo – eu era um bom ator na escola e eu não estou brincando.
Que bom que ele nos entendia e era compreensível, apesar de muito imperativo e enérgico.
“Estamos quase chegando.”, diz Arthur.
“WIII, WIWIWI!”
Assim que voltamos para a cidade, uma estranha sensação de familiaridade. Como se eu já tivesse estado lá antes – eu sei que não era a primeira vez que eu pisava naquela cidade, mas era uma sensação de como se eu já tivesse estado lá há muito mais tempo do que eu de fato havia estado.
Foi realmente bem esquisita aquela sensação, mas o que não era esquisito naquele jogo?
||GUILDA DA CAPITAL||. Aqui estamos nós de novo. Trouxemos a cartilha da missão com o selo dos Lidooberry para confirmar a missão. Iriamos receber um bônus de periculosidade da própria guilda – esse era o diferencial daquela guilda:
Ela pagava a mais por missões mais difíceis!
“Conseguiram completar a missão? Não acredito!”, um grandalhão chamado Michaelis, bem alto e forte e de roupas simples, com uma espada que lembrava a Buster Sword do Cloud Strife – só não tinha os mesmos detalhes e estava toda lascada –, disse bem surpreso.
Pelo aspecto dele, parecia um aventureiro aposentado daqueles bem beberrões mesmo. Mas a espada era maneira mesmo assim.
“Não foi nada fácil, mas conseguimos!”, disse Arthur, meio sem jeito.
Quase todos que estavam na guilda nos rodeavam, surpresos. Acho que ninguém esperava que dois aventureiros de baixo nível – para não dizer, fracassados – conseguissem completar uma missão de 3 estrelas. Ainda mais em uma região tão turbulenta como ||LHASA||.
“Receberam até recomendação dos próprios Lidooberry. Quem diria?”, diz a atendente da guilda, levemente espantada.
“Como vocês conseguiram sobreviver?”, perguntou uma maga com um tapa olho e um cajado retorcido.
“Eu ouvi dizer que||LHASA|| estava uma verdadeira zona de guerra agora. Parece que as histórias não contam toda a verdade, não é?”
“Vocês voltaram bem mais fortes. Vai ver a missão de 3 estrelas nem fosse tão difícil assim...”
E estava demorando para surgirem comentários cretinos. Especialmente vindo daquele paladino metido a besta chamado Guilvolt. Por isso Arthur não tinha ido muito com a cara dele; e nem eu.
Mas deixando a personalidade um pouco escrota dele de lado, seus status eram bem impressionantes:
FORÇA: 1030(+250) CONSTITUIÇÃO: 670(+330)
DESTREZA: 540(+170) SABEDORIA: 580(+200)
ESPÍRITO: 780(+300) HP: 44.000 / 44.000
MP: 27.500/ 27.500
<TÍTULOS>
- TROVÃO GLORIOSO > + 200 DE //SABEDORIA//
- ESPADA CERIMONIAL DE KIMDAR > + 70% DE RESISTÊNCIA CONTRA STATUS ANORMAIS.
- + 40% DE AUMENTO DE DANO CONTRA MONSTROS DO TIPO ELEMENTAL [ÁGUA].
- +50% DE CHANCE DE CAUSAR [ELETROCUTAR] AO ATACAR.
- SOBREVIVENTE DO CULTO > +20% DE DANO REDUZIDO EM CRÍTICOS.
- ALMA E QUALIDADES DA DAMA DE INTRIGAS> + 100 + //CONSTITUIÇÃO//
- +150 //FORÇA//
- +30% DE AUMENTO NA TAXA DE RECUPERAÇÃO DE VIDA E MANA.
- +20% DE DANO ELEMENTAL DE RAIO AMPLIFICADO.
- OBSCURIDADE DA ESPADA> + 50% DE REDUÇÃO DE DANO CONTRA MONSTROS DO TIPO [TREVAS]
< EFEITOS NEGATIVOS: NÃO TEM>
(....)
Havia ainda muito mais títulos, mas aí eu ia passar o dia lendo uma ficha de personagem praticamente interminável. Então essa era a ficha técnica de um personagem de alto nível? Eu tinha até medo de como seria a ficha de personagem da Thayslânia, por exemplo.
Mesmo com tudo que tínhamos evoluído em nossa missão em Lhasa, ainda estávamos anos luz daquele cara. E de muitos outros que deviam ter uma ficha como a dele, incluindo monstros, é claro.
Paciência, Junior... paciência. Você só está Lv.9 ainda.
Diferente do amigão Lv.75 lá, ainda tínhamos muito chão para pisar – e muito couro para gastar também – ainda sentia minha pele pinicar só de pensar naqueles raios de Edoradd fritando meu corpo. Além disso, minhas esperanças de reaver Gallatin se acenderam de novo depois das palavras do tal Coruja.
Mal podia esperar para recuperar minha arma de novo! Iria me sentir o deus que eu era – ou deveria ser – daquele mundo.
“Quê? Vocês já vão sair em outra missão?!”, Michaelis continuava eufórico.
“Tem algo que precisamos fazer na ||CIDADE DOS COMERCIANTES||.”, expliquei.
“||CIDADE DOS COMERCIANTES||, né?”, de longe uma [GATUNA] de nome Kakuran, finalmente soltou a voz. “O que pretendem fazer em um lugar tão sujo como aquele?”
Ela soltou aquela frase de graça, do nada. Será que ela saberia de alguma coisa?
“Estamos procurando uma pessoa.”, apenas respondi. Eu disse de uma forma a parecer que eu não estava em um interrogatório.
“Se essa tal pessoa está lá, então boa sorte. Não se dá para confiar em ninguém daquela cidade. Você pode até mesmo levar uma facada da própria sombra.”
Kakuran disse aquilo de forma bem sensata. Não duvido nada que ela já tenha trabalhado para alguém de lá e se deu mal. Decepcionada, ela saiu daquele “submundo” e veio para Aminarossa para se tornar uma aventureira comum – o que não era muito diferente de um mercenário de qualquer forma, mas o que vale é a intenção.
“Não se preocupe. Não vamos nos envolver com ninguém e nenhuma guilda.”, respondi.
Ela deu de ombros, voltando sua atenção para sua caneca de cerveja.
“Não que eu me importe de qualquer forma. Encare isso como um aviso.”, conclui ela com outra golada cheia.
“Não vão nem ficar na cidade um pouco? Pretendíamos fazer uma festa hoje a noite.”, disse Michaelis, convidativo.
Confesso que por um momento eu relutei e até pensei em ficar, mas os movimentos de Picker fazendo cócegas no meu ombro não me deixavam pensar direito a respeito. Ele estava lá justamente para fazer questão de que eu continuasse seguindo o caminho que eu deveria seguir dentro do jogo...
...não é?
“Acho que podemos ficar só por essa noite, não é? Acabamos de voltar de ||LHASA|| afinal de contas.”, ponderou Arthur.
Eu assenti.
“É... acho que uma noite não vai matar ninguém.”
E para quê eu disse isso? Acabamos ficando. Melhor se tivéssemos ido logo.
Acabamos torrando uma boa parte do dinheiro na festança, alguns dos nossos itens foram roubados – a maior parte da [GUILDA DA CAPITAL], bem como a maioria dos grupos que frequentavam por lá, era composta por ladinos e derivados –, e para completar tomamos um belo de um porre. Acordamos no dia seguinte praticamente nus e em um beco imundo próximo do prédio da guilda, não sei nem como e com uma ressaca infernal.
Eu estava no meio do beco e Arthur estava na entrada, metade do corpo mergulhado em um barril semicheio de algum líquido que, pelo odor característico de bêbado, só podia ser a própria cerveja que seu corpo rejeitou horas depois – ele nunca foi de beber, nem no Mundo Real. Por que seria diferente nesse mundo, não é mesmo?
Picker foi quem me despertou com seu zunido irritante característico e que eu já começava a discernir muito bem dos outros sons do ambiente. A noite havia sido bem louca e minha mente ainda estava bem zoada – mais ainda do que quando fui trazido para essa realidade.
“WIWIWIWI! WIWIWIWI!”
Eu já começava a identificar padrões nos sons produzidos pela bolinha alada. Do jeito como ele ciciava naquele momento me lembrava uma bela de uma bronca. Algo do tipo: “você é um completo imbecil!” ou mesmo “era para você estar indo para sua missão agora, seu idiota!”.
“Certo... certo... estou me... levantando.”, eu cai algumas vezes antes de conseguir me equilibrar de pé.
A cabeça parecia uma bomba relógio, pronta para explodir. Deixei meus olhos semicerrados, minha visão ainda tentando se adaptar à claridade do ambiente. Parecia que fazia uma eternidade que eu não via a luz do sol.
Procurei por Arthur até que Picker me indicou onde ele estava: dentro do barril. Cambaleei em direção a ele e, ao chegar lá, na verdade era um cara qualquer. Onde Arthur estaria então?
“Ah, então já acordou?”, a voz dele surgiu de repente atrás de mim e me assustou. O susto me fez cair sentado no chão de novo.
“AAH! NÃO ME ASSUSTE ASSIM, INDIVÍDUO!”, gritei, tão irritado quanto envergonhado pela queda tosca.
Arthur riu. Ele não parecia ter bebido nada noite passada. Estava com um ótimo aspecto para quem tinha bebido quase um barril inteiro de cerveja na festa de ontem.
“Eu estava te procurando. Temos que nos arrumar para partir.”, Arthur estendeu a mão para me levantar.
Só de ouvir aquela palavra “partir”, o que partia era a minha cabeça ao meio de tanta dor.
“Partir? Para onde, uma hora dessas?!”
“Para a ||CIDADE DOS COMERCIANTES||. Temos um longo caminho até lá, então melhor nós irmos o quanto antes.”
“Ah, sim... é verdade..., mas... podemos descansar... só um pouquinho?”
Arthur me lançou um olhar de desaprovação. Eu não sabia se eu ficava puto ou triste com aquele olhar.
“Se eu soubesse que você era tão fraco para bebidas, eu nem tinha sugerido a gente ficar.”
“VAI SE FERRAR! EU NEM BEBI TANTO E FIQUEI COMPLETAMENTE DOPADO!! COMO VOCÊ TAMBÉM NÃO FICOU, MISÉRIA?!”, agora eu já começava a dialogar como um bebum nato. Aos berros.
“Salamandra queima minha mana e estamina três vezes mais rápido que o normal. Então, eu não fico bêbado.”, explicou ele.
Bem, isso era algo bem útil dependendo da ocasião. Arthur puxou um saco de moedas e jogou no meu colo.
“E aí está o dinheiro que pegaram de você. Agora a armadura que você ganhou da Justine eu não consegui recuperar.”, disse ele com pesar na voz.
Justine iria me matar se soubesse que a armadura top que ela mandou forjar com tanto esmero para mim foi roubada de mim em uma bebedeira de taverna. Eu já começava a passar tanta vergonha que nem sabia mais se merecia ser chamado de “protagonista”.
Bom... quais eram as chances de eu me encontrar com ela de novo em um mundo de RPG tão vasto como aquele, não é?
“Ai, que merda... justo agora que eu tinha conseguido uma armadura foda!”, aqueles pensamentos espancavam minha cabeça junto com a enxaqueca.
Arthur então me mostrou a brafoneira.
“Isso foi a única coisa que eu consegui recuperar. E quem recuperou nem fui eu, mas o Michaelis.”, disse ele.
“Ah... obrigado.”, eu recebi o item e já o equipei. Além disso, Arthur me trouxe roupas para vestir também.
“Agora vamos nos aprontar para ir. Você já passou mais vergonha do que o necessário.”, completou Arthur, a voz áspera.
Agora eu me sentia mal e não era só porque minha cabeça estava para estourar, mas eu sentia que minha honra como herói em um jogo de RPG e aventureiro havia sido manchada. Jogada na lama e em um barril de vômito. Todas as vezes que pensava nas besteiras que eu poderia ter feito enquanto estava alcoolizado, ficava vermelho como uma pimenta.
Era naquelas horas que seria bom morrer e recomeçar de algum checkpoint, mas infelizmente eu não tinha tal privilégio.
“Alguém mata agora, por favor...”
__________________________________________________________
||CIDADE DOS COMERCIANTES||, porção oeste da região de ||BLYK DO SUL||. 6 dias depois...
Gritaria! Anúncios de itens, bestas selvagens, armamentos, poções, carroças passando para lá e para cá, negociações acirradas e apostas arriscadas. Uma multidão caminhando juntas em um fluxo que lembrava uma colônia de formigas. Uma massa de NPCs que parecia não ter fim!
Não tivemos muito tempo para nos preocupar com alfândega – pelo menos isso era bom. A cidade mais movimentada em que estivemos até agora não cobrava pedágio ou tentava te matar logo na entrada que nem foi em Lidooberry, porém era bem mais fácil se perder por lá.
Um chafariz monumental de pedra com várias imagens do que pareciam ser deusas ou ninfas esculpidas em sua base condecorava o centro da grande praça da cidade, rodeada por tantos comércios e guildas mercantes que perdíamos a conta.
Penso que devia estar acontecendo algum evento naquele dia, visto a multidão que se aglomerava lá – além de várias bandeirinhas e adornos nas arvores e nas próprias tendas, como luzes e armaduras amostra. Lembrava um verdadeiro festival, uma feira, algo assim...
Nem na principal cidade mercante de ||LHASA|| se via tanto movimento e comércio quanto naquela metrópole.
Além disso, bem ao lado da grande praça, um largo rio que vinha descendo da parte mais alta da metrópole fazia divisa entre a área residencial e o centro comercial. Era possível ver todos os tipos de barcos, cargueiros e de passageiros, atracados em um grande porto organizado dentro da própria cidade, às margens do rio.
Tudo que entrava ou saia do comércio passava por aquele porto e entrava pelas embarcações, algumas tão grandes que lembravam fragatas.
A cidade ainda continuava em um aclive até uma grande fortaleza murada no coração da cidade, onde devia ser a sede da administração local. Imagino se o governo de lá interferia em uma rede comercial tão forte e praticamente independente como aquela.
Nada além do esperado da cidade que tinha o nome que tinha, não é?
Contudo, com toda aquela massa quase interminável de pessoas indo e vindo, vendendo e comprando, descarregando e carregando navios, caminhando para cima e para baixo, uma pergunta era deixada no ar: por onde começar a procurar o tal Bazz7?
“Caramba! Foi foda chegar aqui, hein?”, disse acompanhado de um suspiro prolongado.
Aparentava ter se passado mais uma eternidade sentado em mais uma carroça – pelo menos não carregava estrume dessa vez. Que falta um ônibus fazia!
“E agora? Tem muita gente aqui!”, disse Arthur.
Suas palavras as vezes se fragmentavam pelo barulho das multidões. Tivemos que nos comunicar por gritos – não muito diferente das grandes cidades do mundo real.
“Podíamos pedir informações. O que acha?”, sugeri.
“Você ainda se lembra da descrição que a Justine passou?”, perguntou Arthur.
Ao tentar me recordar, minha mente embranqueceu de súbito. Eu sei que seria algo que com certeza eu teria que lembrar, mas para alguém que não lembrava nem o que almoçou ontem era pedir demais, não acha?
Fiz um gesto de cabeça respondendo que não. Arthur franziu o cenho.
“Que merda, hein?”
“Foi bem específico. Acha que eu lembraria de tudo, criatura?”
“Eu não achava que não fosse se lembrar de nada também!”
“A única coisa que eu me lembrei foi da cidade. O resto dos detalhes ficou bem jogado no ar”, e eu continuava me justificando com desculpas esfarrapadas.
Não seria melhor eu admitir logo que eu tinha uma memória tão boa quanto o de uma galinha? Ficaria menos feio.
“Não sei não viu, Junior! Devia ter prestado mais atenção.”
“E você? Não se lembra de nada também?”, perguntei.
A cara de paisagem que ele fez já me deu a resposta.
“Ótimo. Então podemos começar a procurar por informações?”, disse endireitando o foco da conversa.
Arthur anuiu com a cabeça. Que os dois tinha a memória não muito maior que a de um disquete, nós dois concordávamos.
Então saímos perfurando a multidão, visitando algumas tendas e lojas pela cidade para colher informações. Antes de nos separarmos eu havia instruído Arthur para que levantasse o braço de Salamandra enfaixado para cima e ficasse com ele erguido para que eu soubesse onde estava.
Pelo menos, seus contornos e tamanho eu lembrava bem.
Comecei por um [ALQUIMISTA] em um carrinho que vendia poções e buffs, de preferência para grandes grupos de aventureiros. Perguntei uma vez sobre o Bazz7, mas ele desconversou.
Nada de informações hoje, mas buffs ele me ofereceu de baciada!
Próxima vítima: um [ARMEIRO] em uma grande tenda localizada do lado esquerdo do grande chafariz. Pela localização, foi um tanto difícil de andar por ali, principalmente porque passavam várias pessoas a cavalo naquela hora. Era um caminho bastante estreito até o comerciante e sua tenda estava lotada.
Nem precisei imaginar o porquê; as armas a amostra eram incrivelmente lindas e de grau [ÉPICO]. Não tinha quase nenhuma arma para o meu nível. A maioria eram de Lv.75 para cima, todas com ótimas atributos e um preço de chorar sangue.
500 PO por uma espada cravejada com pérolas e de fio cristalizado, Lv.90? Meu peito apertava em agonia!
375 PO por uma besta composta de madeira artesanal, Lv.75? Que roubo!
E a aljava com 50 flechas era mais 50 PO. Se quisesse mais, teria que pagar uma “pequena” quantia a mais.
Era praticamente uma vida de salário para aventureiros de classe média como nós! Fez parecer que praticamente tudo lá era o dobro, até mesmo o triplo do preço em qualquer outro lugar.
Foco, Junior! Eu estava lá para perguntar, não comprar! Por que eu estava tão eufórico com aqueles rótulos? Eu já fui convencido de que não iria comprar nada.
Fiz a pergunta fatal: “Você conhece o Bazz7?”
E o filho da mãe me ignorou completamente que nem o Alquimista. Um outro de uma tenda próxima se interessou na conversa, mas só me rendeu um olhar curioso.
Acho que ele devia ser algum chefe do submundo de lá, ou algo assim. Poderia ser um cara problema e que todos deviam até mesmo evitar tocar no assunto. Se bobeasse, imagino que fosse até um tabu falar nesse nome.
Nesse caso então minha tática de sair perguntando para os comerciantes ou moradores locais não ia adiantar muito.
“Muito bem... hora de mudar de plano.”, pensei.
Primeiro eu tinha que me encontrar de novo com Arthur. Estava quase me tornando um “homem girafa” de tanto esticar o pescoço na tentativa de encontrar o sinal dele. Procurei por um grande braço enfaixado com garras, mas estava complicado até mesmo achar algo olhando por cima.
Imagina no meio da multidão.
“Merda... Arthur!”, então comecei a gritar seu nome, pensando na possibilidade de não encontrá-lo.
Fiquei chamando por um tempo sem resposta até ver um toquinho enfaixado de garras saltitando em meio ao mar de pessoas e meio pessoas: Era ele. Podia suspirar aliviado agora.
A última coisa que eu precisava era me perder naquele lugar caótico. Então comecei a me embrenhar pelo meio da multidão, levado alguns empurrões no meio do caminho e tendo meu pé pisoteado algumas vezes no trajeto.
Estava quase chegando quando eu trombei sem querer com alguém muito baixinho no caminho e a derrubei. Claro que para a vergonha ser completa eu também me desequilibrei e caí logo em seguida. Alguns que estavam em volta se afastaram – não teve um caridoso para me segurar.
Era uma mulher pela estatura e traços finos e delicados do corpo. Ela era tão baixa que eu nem consegui enxerga-la no caminho até Arthur. Isso que podíamos chamar de “camuflando-se à multidão”?
“Ai, ai! Você está bem?”
Seu rosto por um momento estava coberto por um grande capuz roxo desbotado e não pude ver muito bem seus traços. Ela pareceu ficar nervosa quando eu falei com ela.
“Essa voz... não pode ser...!”, ela parecia alvoroçada e ergueu a cabeça rápido.
“O que foi? Por acaso eu...”, e então eu paralisei. Quando ela ergueu o rosto para me ver, o capuz saiu com uma rajada de vento forte e revelou seu rosto.
E como seria a última coisa que eu poderia prever acontecer, justamente foi o que aconteceu.
“VOCÊ!”, gritamos ao mesmo tempo, um apontando para o outro.
E a maga tampinha e exibicionista voltava para nos atormentar mais uma vez.