Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 20: Falha de Comunicação
— Deixa de ser chato, Ryan! Deixa a gente falar com a tua mana! Ela parece ser gente boa, diferente de ti!
Como os bons arruaceiros que eram, o trio tomou para si o direito de ocupar uma sala na hora do almoço.
O lugar vazio ficava incrivelmente amplo e o silêncio seria terapêutico, caso desconsiderada a cena e os sujeitos envolvidos nela.
Ryan agressivamente guardou o celular no bolso da calça e mastigou as várias coisas que tinha para dizer, dado que não valia a pena tentar confrontar esses dois.
Tomou ar fartamente e liberou em um suspiro pesado. Era hora de mudar de assunto, em especial porque ele tinha uma pergunta bem específica a fazer.
— Mark... Lira... O que fez vocês faltarem tanto às aulas?
Aquele questionamento foi o que assassinou qualquer calmaria que o lugar tivesse. Então, o que uma vez foi um silêncio aquietador se tornou em uma cortina densa.
Fez-se ciente do peso da dúvida, pois, de um segundo ao outro, o semblante risonho de Mark murchou.
— Não sei se isso vai ser muita ousadia minha... Mas sei que tem coisas que vocês não estão me contando.
De sua distância, a Suzuki analisava com cuidado. No conforto de sua cadeira, ela teve a mais profunda noção de cada uma das sensações a emanarem de seu peito.
Seu esforço para proferir essas meras palavras era desnecessariamente descomunal, contaminado pelo desespero e pelo medo. Ele não tinha o mínimo de confiança em si mesmo.
Tudo bem. Ela poderia permitir isso.
— Em nenhum momento vocês me contaram coisa alguma sobre si mesmos...
Mordeu a ponta de sua língua até sentir o gosto férrico a tomar a boca. Mesmo enterrado em um fosso de terror, se obrigou a fitar Mark em igualdade.
— Honestamente? Para um acordo em que somos teoricamente um grupo, isso soa injusto para o meu lado... Vocês sabem tudo sobre mim, mas eu não sei coisa nenhuma sobre vocês...
Engoliu a saliva quase inexistente para ganhar tempo.
— Então... Eu queria saber. Quer dizer... Eu estive pensando um pouco sobre isso e... Se for mesmo verdade que existem mais além de vocês... Então eu queria saber quais são esses segredos que podem acabar me afetando também.
Esse dia foi um ultimato para ele. Depois de quase uma semana inteira de ausências, Ryan estava cheio de perguntas desconfortáveis.
Em muitas, sequer queria pensar... Já quanto às outras, viu que não tinha como escapar. Eram coisas que precisava saber.
— Quando...? Quando vocês conseguiram esses poderes e como...? E o que diabos vocês estão procurando, discutindo entre si mesmos... O que é isso que eu não posso saber...?
Sabia disso desde seu primeiro dia naquela escola, mas até então se recusou a aceitar, a optar pelo sonho de que um dia, não tão longe, iria embora dessa cidade.
Descobrir que estava errado foi a gota d’água.
— Olha, vocês estão certos... Eu posso ser só um moleque mimado por causa desse poder que eu tenho, mas...
Seus olhos se perdiam, incapazes de acompanhar os de Mark em sua plenitude.
— Se for para eu fazer alguma coisa... Se for para eu lutar nisso aqui junto com vocês... Então eu queria que fossem ao menos minimamente honestos comigo sobre as coisas que sabem... Era isso o que eu tinha para dizer.
O peso acumulado em seu peito desapareceu. Por todo aquele tempo, tentou de tudo para esquecer.
As brigas com os baderneiros, as conversas com Ashley, as brincadeiras idiotas que fazia sozinho pelos cantos…
Nada além de tentativas de tirar sua cabeça do estresse que era pensar em mais pessoas com esses poderes.
Era alimentar uma falsa esperança e esperar que crescesse e, de repente, se concretizasse; um modo infantil de levar a vida.
Mas as pessoas morriam de verdade nessa cidade e nesse mundo. Crimes sem explicação, massacres diários, ataques a prédios públicos, entre outros vários tipos de barbaridades.
“O que eu estive fazendo esse tempo todo, brincando com uma coisa tão perigosa...? O que me fez acreditar que eu era o único?”
Tinha esses poderes desde que se lembrava. Sua capacidade era perfeita para investigar coisas, então como pôde ser tão leniente com isso?
No fim, Ryan Savoia só podia se chamar de “preguiçoso”.
Não fez porque era confortável. Não fez porque sequer quis pensar na possibilidade. Não fez porque não quis.
— Hunf...
Um suspiro pesado de Mark ocupou o espaço deixado pelo desconfortável silêncio. O rapaz pálido e de aparência raquítica levou a destra rumo ao rosto e deslizou cansadamente.
— Olha, Ryan... Quer que eu seja sincero contigo? Eu não dou a mínima para seja lá o que quer que você esteja pensando.
Mirou naquele à frente e aprontou seus passos, um de cada vez. Tocou o chão sem fazer barulho — uma, duas, três vezes —, até estar bem mais perto dele do que antes.
— Eu não sei o que te levou a mudar de pensamento de um jeito tão rápido ou seja lá o que te colocou enfim o juízo na cabeça, mas eu só tenho uma coisa para te contar sobre isso...
Seu semblante de mais aguda seriedade penetrou o fundo de sua alma. Aqueles olhos vermelhos, brilhantes como luzes da morte, puxaram sua alma para fora; quase.
— NINGUÉM LIGA PARA O QUE VOCÊ PENSA, SEU MERDINHA!
O som do maciço contato de pele com pele reverberou pela sala inteira, singular, preciso e contundente.
— Que foi? Pensando que a gente vai sentir pena de você só porque tá arrependidinho ou sei lá? Ah, por favor...! Me conta outra... TALVEZ EU DÊ RISADA!
Agarrou-o pela gola do casaco preto e o puxou para mais perto para criar um novo contato olho-no-olho.
Uma gota de rubro vivo escorreu da bochecha direita do Savoia diretamente sobre sua canhota pálida. O Menotte sequer se importou com isso, no entanto.
— A gente não liga se tu tiver com vontade de fazer o que quiser, se te der uma doida e resolver se matar por aí, ou se vai ficar do nosso lado...! A gente não tá aqui para ser teus pais, caramba!
Mirou outra mão aberta, que atingiu mais fraco.
— Acho que tu ainda não entendeu o que a gente queria te mostrar lá no supermercado... É, deu para ver que não entendeu mesmo!
O balanço de sua cabeça em negação, somado à encarada sem desistência dos dois poços de ódio, se faziam em uma combinação inigualável.
Porém, Ryan não iria mais se sujeitar a isso.
— É, eu entendi o significado daquele dia, Mark!
Ele parou o terceiro golpe do pálido em seu curso. Seu agarro firme ao redor do pulso esquerdo não iria ceder tão cedo.
— E não é sobre isso que eu tô falando! Eu não tô afim da simpatia de vocês, nem nada! Eu só quero saber!
E pela primeira vez os dois tiveram uma visão plena do brilho das ametistas, quando os dedos firmes do rapaz negro se entrelaçaram no braço fino do Menotte.
— Mas não! Vocês dois precisam continuar agindo como se fossem as pessoas mais virtuosas do mundo, cujas ações são todas justificadas! Tão grandes e perfeitos são vocês...!
Normalmente, Mark sequer se incomodaria com uma afronta daquele tipo, isto é, se viesse de alguém normal.
... Já que se qualquer detalhe sobre sua vida pessoal vazasse...
— Ryan Savoia... Sugiro que pare com isso imediatamente...
Lira se juntou prontamente à comoção e alterou o placar da “guerra de encaradas” para uma nova vitória de seu lado. O brilho rosado, quando focado, o fazia sentir algo que nunca descreveria.
Uma mistura de vertigem com extremo cansaço psíquico. Meramente manter-se neutro demandava incríveis esforços e imensa determinação por parte dele.
“Mas que porcaria... Se não fosse por ela aqui…”
Ryan largou da mão de Mark e tomou distância dos dois, infelizmente incapaz de ter lido qualquer coisa de sua mente.
Podia até tentar afrontar Mark se irritado o suficiente, mas lidar com a diferença de distância da zona de ação garantida pelo poder dessa garota tornava isso em algo impossível.
Foi uma batalha que, novamente, não foi capaz de vencer.
— Parado! Onde pensa que está indo, Ryan Savoia?!
Ele já tinha sua mão na maçaneta da porta daquela sala. Sem mais se importar com nada ali, Ryan respondeu a pergunta com uma encarada fria.
— Seja lá o que eu for fazer ou no que eu pensar, vocês não vão se importar, não é mesmo?
[…]
“Esses dois... Não dá para ter sequer uma conversa normal com eles!”
Bateu a porta com força. Não quis correr, ciente de que não o seguiriam.
Um grupo com uma falha de comunicação e cooperação desse tamanho? Nunca que isso iria funcionar.
Não entendia a tamanha dificuldade que tinham em contar-lhe detalhes tão importantes. Nas opiniões deles, tudo tinha que ser sobre sua fraqueza.
“Ah, é mesmo! Eu me esqueci...! Isso nunca foi um grupo de verdade! Esses dois só estão me usando...!”
Acertou a mão no centro da testa e se perguntou o quão estúpido tinha que ser para acreditar que seus modos de pensar mudariam.
“Não importa para eles se eu souber ou não de algo. Na verdade, quanto menos conhecimento eu tiver, melhor.”
Ele queria rir — uma risada da mais pura amargura sarcástica —, já que, no final, Mark e Lira não passavam de indivíduos tão mimados e infantis quanto tinham a audácia de afirmar que ele era.
Depois de tudo isso, sentia precisar acabar com o estresse de alguma maneira. Para isso, resolveu entrar no banheiro que ficava ali perto.
— Mas... Esse cheiro...
Sentiu cada articulação de seu corpo travar no exato mesmo segundo em que mirou a porta aberta do escuro banheiro masculino.
Dali, via a parede esbranquiçada e nada mais, oculta parcialmente pela penumbra.
Seu foco acompanhou devagar os caminhos dos ladrilhos que podia contar, até chegarem à base da parede em seu contato com o piso. Ali, viu um pequeno brilho prateado.
Era a lâmina de uma faca.
“Mas que merda…”
Pensou friamente em como recuar, mas logo ao começar a andar….
— Gah...!
Caiu sentado mediante aquela súbita e fina onda de dor na base de seu calcanhar.
— Uma tachinha?! De onde isso veio?!
Puxou o prego que perfurou a planta de seu pé direito, pasmo por uma agulha tão pequena ter sido capaz de vencer a resistência de seus rígidos sapatos.
Foi então que se deu conta da realidade: a de que nunca houve sequer a chance de voltar e se esconder.
— Ah, mas olha só...!
Sua forma surgiu das sombras do banheiro masculino. De início, revelou apenas a metade direita do corpo, usando a estrutura da entrada para se ocultar.
Dedos sujos de sangue e que gotejavam, acompanhados de um sorriso largo, pálido como um vampiro, usando um moletom vermelho ensaguentado.
Ele parecia feliz em vê-lo — absolutamente extático —, deixando escapar risadas baixas ao mesmo tempo em que obviamente se segurava para não rir demais.
— Acho que tenho tempo para fazer mais uma obra de arte antes que alguém descubra os corpos e chame as autoridades... Ainda é meio cedo para o fim do intervalo, né mesmo?
Fechou o olho por um simples segundo.
— É uma pena que agora eu tenha que usar tachinhas, canetas e pedaços de vidraça... Não vai ficar tão bonito quanto os outros, mas vai bastar.
O castanho mundano foi substituído imediatamente por um forte brilho em azul-safira e, de repente, tudo ao seu redor ganhou vida.