Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 1: Cadeia Alimentar
— No estado da Califórnia, acaba de ser registrado o terceiro atentado escolar em um período de dois meses. Segundo boletins oficiais, houveram 17 mortos e 42 feridos, encontrados em estado de desorientação mental.
Das escadas, ouviu o destaque do noticiário matinal. Por estar tão cedo, agradeceu alguém mais além dele estar acordado nessa casa um tanto grande.
— As autoridades investigam a possibilidade de um vazamento de gás criminoso causado pelo grupo terrorista ainda não identificado. A energia da Elias High foi cortada minutos antes do ocorrido, impossibilitando registros pelas câmeras de segurança. É apurada ainda a possibilidade do crime estar relacionado aos dois outros ocorridos no estado.
Puxou a maçaneta fria, adentrando a cozinha larga do novo domicílio.
— Aqui é Matthew Anderson, diretamente de Sacramento, Califórnia, para o America Daily News.
Em passos calmos, andou até a bancada próxima e pegou um copo de vidro. Sem delongas, agarrou a porta da geladeira.
— AAAAH…!
O grito de espanto quase o fez soltar o copo. Parado e ainda com a mão na porta aberta do eletrodoméstico, sentiu-se tão azul quanto a luz que saía de dentro, mostrando ovos e garrafas cheias.
— Ryan…! — De dentes expostos, exclamou seu nome. — Não dá para pelo menos dizer que você tá entrando?! Eu quase podia ter jogado isso aqui na sua cara…! Ia fazer um corte feio!
Hannah apontou para ele uma faca com resquícios de geleia de morango, que pingou sobre a mesa graças aos seus tremores assustados, gerando uma oportunidade perfeita.
— Não, eu não podia — deslizou o dedo sobre o tecido, catando a bomba de açúcar. — Primeiro, porque você tava ocupada e segundo, porque isso aí nem ia acertar.
Encarou a irmã em seus olhos largos, usando o mesmo dedo para lhe bater de leve na testa.
— Mas e aí? O que te leva a acordar tão cedo, maninha? A gente acabou de chegar e você nem tem trabalho ainda… E pelo que eu tô vendo, a Joanne já deu o sumiço dela.
A ausência da mãe já era algo esperado, afinal, nunca costumava ficar muito tempo em casa antes de ser chamada a “trabalho”, seja lá o que isso significasse.
— Pois é… — Hannah suspirou, aparentemente esquecendo da confusão inicial. — Ela saiu bem cedo, foi embora na mesma hora que eu acordei, quase… Ela deixou um bilhete falando o que a gente já sabe, mas enfim… A gente já sabe…!
Depressa a água sumiu do copo de Ryan.
— Típico dela. Acho que a gente não vai ver ela mais até a próxima vez de mudar de endereço.
Repousou o copo com resquícios de água na pia, ao passo do silêncio súbito. Pensativa, Hannah experimentava com o sabor de cada uma das palavras ditas.
— Ryan, você acha mesmo que ela vai querer se mudar de novo? Ela falou que essa era a nossa última parada e… Olha o jeito dessa casa! Ela levantou isso tudo sozinha, só para a gente morar! Falando a verdade, parece complicado acreditar que a gente vai sair daqui.
Hannah tinha um ponto; a casa em que estavam agora era bem mais complexa do que qualquer um dos apartamentos alugados que ocuparam nos últimos cinco anos.
— Olha, eu não sei… Mas, a gente sabe como ela é, né? Então vamos esperar para ver… Seja uma coisa ou outra, algo vai rolar…
— Hehe! Típica indecisão sua…! Sempre esperando alguma coisa acontecer…!
— Em minha defesa, senhorita, eu passo metade do meu tempo todo entediado, enquanto na outra metade, fico pensando em jeitos de não ficar entediado…!
Os dois trocaram divertimentos, com Hannah a rir abertamente enquanto seu irmão mal sorria. Tal era o nível da diferença entre eles.
— Mas e aí — começou ele —, já pensando em um lugar onde trabalhar no meio desse nada? Porque olha só… Tem uma pilha de nada lá fora…! Será que tem pelo menos uma clínica no meio desse pedaço de nada?!
A janela da cozinha mostrava a grande Rodovia 93, no momento sem carro ou pessoa alguma. Além de mato, asfalto e árvores, viam-se uma ou duas casas à distância. Na concepção do rapaz, nunca aquilo se chamaria “cidade”.
— Ah, não se preocupa com isso…! Eu andei pesquisando e descobri que tem um hospital até grandinho bem aqui perto, no centro da cidade! — Hannah rebateu, orgulhosa.
— Oh? Essa é nova! Vai entrar lá e conquistar o lugar que nem fez nos outros hospitais em que você já trabalhou?
— Com toda certeza! Me dá uma semana e o lugar vai ser literalmente meu…! Por enquanto, minha meta é bater o cargo de enfermeira-chefe em três dias, que foi o meu tempo mais curto!
— É, eu lembro dessa aí… Detroit, né? Sendo sincero, eu duvidei um pouquinho de ti naquela época, mas depois daquela façanha? Ah, depois daquilo eu vi que você pode fazer de tudo, mana…!
Riu um pouco diante das lembranças de uma enfermeira recém-chegada que conquistou um dos postos mais altos em um dos maiores hospitais dos EUA em questão de oito dias. Antes de tudo, Hannah era alguém espetacular.
“Ela é com certeza mais incrível do que eu jamais seria capaz.”
O breve espaço sem fala deu-lhe tempo para apoiar o queixo na mesa e assisti-lo pensar.
— Mas e você, maninho? Não quer tentar conquistar a sua nova escola?
A menção trouxe amargura aos seus lábios, que expuseram a língua. Ryan mastigou quaisquer pensamentos de volta para onde vieram, olhando longe.
— Eu nem sei se a gente vai ficar, Hannah… Eu não sei se isso é só coisa minha, mas no fundo, eu não quero acreditar na Joanne… Digo, de que a gente vai ficar aqui…
— Você queria estar em um lugar maior, né?
— É — confirmou, sem hesitar —, eu queria pelo menos uma cidade média, onde a gente tenha ao menos uma perspectiva de vida, sabe? Tipo uma faculdade ou coisa assim… Eu só penso que a gente merece coisa melhor.
Hannah inflou uma bochecha, respondendo seu silêncio, mostrando sentir-se tão mal quanto ele acerca do arranjo.
Não julgava as circunstâncias justas, embora por um motivo ligeiramente diferente do de seu irmão.
— Hmm… Olha, tenta pensar pelo lado bom, Ryan… Aqui você vai poder fazer uns amigos, enfim! Não é ótimo?
Esperou alegrá-lo, mas não tirou outra coisa senão uma levantada de sobrancelha.
— Amigos? Nah, eu não acho que preciso disso. Eu tô legal sozinho.
Sua voz não soou ressentida ou amarga, e foi isso o que mais a preocupou. Não se sentia bem ao ver o quão acostumado seu irmão havia se tornado a não ter companhia.
— Enfim, eu acho bom começar a me arrumar… Tá ficando tarde e eu não conheço nada dessa cidade ainda. Melhor sair cedo se eu não quiser acabar perdido no caminho para a escola.
Seus olhos em tom violeta acompanharam a abertura da porta, espertos em brilho antes que pudesse sair.
— Ei, Ryan…!
— Huh? Que foi? Mais alguma coisa?
— Não, só queria saber se você quer que eu te faça umas panquecas! Nossa mãe não deixou nada pronto, então…
— Ah… Eu quero sim. Valeu, Hannah.
Ryan saiu, deixando-a sozinha outra vez, incapaz de evitar torcer o nariz para um humor tão frio.
“Embora eu tenha que entender… Ele tem as suas questões…”
Decidiu não ficar pensando demais, logo abrindo a geladeira para pegar uma porção de massa restante do que fizera para si mesma mais cedo.
[…]
Quinze minutos depois, ele estava de volta, apropriadamente banhado e agasalhado para lidar com a frieza do lado de fora. Ao entrar de novo, porém, deparou-se com uma cozinha vazia.
— Ah… Acho que ela deve ter voltado a dormir.
Sem muito entusiasmo, comeu duas panquecas, sendo esse o máximo que foi capaz de aguentar. Geralmente a comida de Hannah era sempre muito boa e dessa vez não foi diferente. Ao terminar, organizou tudo em seu devido lugar.
“Já que ela tá dormindo, melhor não fazer muito barulho.”
Pegou as chaves do pequeno suporte na parede e abriu a porta, pronto para dar de cara com a patética tentativa do sol de aparecer entre as várias nuvens.
— Incrível… Nem mesmo um pé de vida por onde se olhe…
Tirou da garagem sua bicicleta, dando uma última olhada na estrada vazia antes de tomá-la. Uma coluna de vento cortou o lugar no mesmo instante, soprando folhas secas em seu rosto.
— Nossa, mas que maravilhoso… — disse em sarcasmo.
Notando ser humilhação demais para um dia só, apressou a pedalada, tomando um breve caminho pela rodovia até chegar ao centro da pequena Elderlog, em um lugar chamado Oak Street.
“Então essa cidade tem um pouquinho de graça no final, hein?”
A Oak Street e suas imediações representavam a zona verdadeiramente urbana do espaço, com direito aos pontos comerciais e todas as utilidades encontradas em qualquer pequena cidade, além de, obviamente, ser o ponto de habitação dos famigerados “seres humanos”.
“Acho que eu tô vendo a escola.”
Tomou uma rua aleatória à direita, para se encontrar com uma enorme estrutura repleta de adolescentes entrando sem parar.
“Bem, isso é bem grande para uma escola de interior… Talvez eu tenha subestimado esse lugar?”
Acorrentou sua bicicleta, ajustando a mochila por força do hábito. Ao cruzar os grandes portões, um novo mundo se revelou.
“Ugh… E parece que eu tô sendo o foco das atenções de novo… Aja naturalmente, Ryan… Naturalmente…!”
Se esforçou ao máximo em não ligar muito para os olhares, dando entrada no edifício principal. Não quis perder muito tempo parado ali como um idiota, então logo tratou de encontrar a sala do diretor que, por conveniência, ficava logo ali perto.
Ryan deu duas leves batidas na porta e entrou.
— Uh… Com licença? Eu sou um aluno novo na escola e…
— Ah, sim…! Ryan Savoia, não? A sua mãe me comunicou tudo. Entre, rapaz.
Dentro da sala encontrou um homem calvo em vestes formais, identificado pela grande placa em sua mesa, a dizer “Addison Eastwood”.
A mobília rústica exalava o odor de madeira fresca, o que criava um certo ar de requinte. Junto disso, o nariz capturava cigarros, denunciados pelo cinzeiro à esquerda do homem.
— Eu já tinha reservado os seus documentos, rapaz. Apenas espere um momento…
Eastwood não se deu o trabalho de uma apresentação formal. Em ritmo claramente apressado, puxou de uma gaveta alguns papéis referentes à matrícula e uma pequena chave, entregando-lhe ambos.
— Lhe desejo ótimos estudos enquanto estiver aqui, senhor Savoia. Eis aqui tudo o que você precisa. Mostre a sua matrícula na biblioteca e pegue os livros dos quais precisa, sim?
— Uh… Obrigado…
— Acho que vai querer ir logo, porque o seu primeiro turno de aulas está prestes a começar! Apenas um aviso amigável… Não vai querer acabar tendo problemas comigo no primeiro dia, certo?
O grande relógio na parede atrás dele mostrava serem 7:37 AM. Em pouco menos de meia hora seu dia se iniciaria.
“Sujeito bizarro”, pensou, embora não a fim de desafiá-lo. — Obrigado, irei fazer isso.
— Sim, sim…! Vá, vá logo! — respondeu, expulsando-o de sua sala.
Ryan fechou a porta, apertando os lábios para a postura de Eastwood.
— Caramba, mas que velho ranzinza… Agora, deixa eu ver… Ele falou na biblioteca, né? Onde será que eu encontro isso?
Felizmente viu um informativo pregado na parede que continha toda a planta do edifício, o que o levou sem dificuldades para a biblioteca da escola. Ao chegar, apresentou sua matrícula, depressa tendo em mãos um total de doze livros.
“Todo mundo tá me olhando esquisito… Quer dizer, acho que sempre foi assim quando eu era novato nas outras escolas também…”
No andar de cima, guiou-se pela numeração de sua chave até o corredor dos armários, abrindo o de número 214.
“Mas espera aí… Tem coisa estranha aqui.”
Sem pensar muito, jogou os livros ali sem fazer muito caso dos pequenos cochichos e olhares dirigidos a ele.
“Parece que a primeira aula vai ser química.”
Antes de fechar, pegou o tal livro, de uma feia capa rosa, e trancou. Suas aulas começariam em 15 minutos, então desde que não se envolvesse em problemas, tudo correria bem.
Embora não fosse isso o que o destino tinha reservado para essa manhã.
— Olha só…! Chegou um novato no pedaço!
“Ah, puta que pariu… Eu sabia que tava bom demais para ser verdade…!”
Bastou virar para a esquerda e esbarrou em um rapaz alto e forte, cuja expressão não mostrava ter bom caráter. Sua presença ali não era mera coincidência e disso sabia bem.
“Eu bem que me senti seguido, e entendi logo que não era só a galera me olhando.”
Esse cara o queria emboscar e tinha conseguido, seu olhar como o de um lobo em busca de presa, focado no novo elo mais fraco na pirâmide social da escola.
Tinha de falar alguma coisa. Se uma coisa seus anos o ensinaram, foi que impor respeito era uma lei naquela selva falsamente civilizada.
— Sai do meu caminho, cara. Agora eu preciso ir para a aula.
Tentou passar por ele, uma estratégia que claramente falhou. Sequer dois passos depois, o caminho inteiro se viu bloqueado.
— Que foi? Não quer ter uma conversinha não? Bora conversar, cara!
Deu um passo a frente, empurrando-o. Ryan decidiu seguir o fluxo e andou dois passos para trás.
— Tu não vai falar assim comigo, filho da puta! Tá pensando que manda em quê?!
A comoção rapidamente atraiu o foco para o corredor e os alunos se acumularam em círculo para verem o espetáculo. Era sempre apreciável ver alguém na base da cadeia alimentar apanhando.
— É sério isso? Vai ficar agindo que nem um valentão clichê de série? Porra, essa é a a primeira vez que fazem isso comigo… Os outros pelo menos ameaçavam um pouquinho mais antes de partir para a agressão…!
Derrubou o livro de propósito. Se confusão era o que queria, seria o que teria e por isso assumiu uma postura combatente e sem medo diante da intimidação.
A plateia foi ao delírio ao ver sua reação, cada estudante puxando seu smartphone para gravar. Naturalmente, as regras implícitas da hierarquia escolar pregavam a superioridade absoluta de qualquer outro sobre o novato e isso era senso comum.
Em outras palavras, significava dizer que o recém-chegado era um louco por pensar ser capaz de vencer.
— Que foi? Desistiu? — desafiou abertamente e sem medo. — Ou será que ficou nervosinho com as câmeras?
Seu rosto se contorceu em raiva, pondo-se à altura do desafio e desejando calá-lo de vez, mirou o soco mais forte que tinha.
— Não fica se achando…!
Mirou em seu rosto, porém falhou. Em um desvio, o novato rodopiou para a esquerda, respondendo com um golpe próprio, que acertou seu rosto em cheio.
— Me achando? Mas eu já tô bem aqui.
Não sabia com o que estaria lidando e, cego em sua fúria, não se preocupava em tentar descobrir.
— Ora, seu…! Não vai ser o engraçadinho depois dessa…!
Ryan puxou de seu interior aquela estranha energia. Não sabia de onde vinha ou sequer como a conseguiu, porém…
— Então chega mais.
Graças a ela, era um pouco diferente de todos, e por meio dela, faria de Charles Vincent um exemplo para cada um de seus observadores.