Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 139: Arma Biológica, Ato 2

— Já faz um tempo, né? Quer dizer… desde que ela deu o chá de sumiço na gente.

Organizar prontuários de papel era sempre a tarefa mais tediosa do dia, mais ainda que cuidar de tantas pacientes enquanto se é privado do mínimo de iluminação natural.

Adotar um modelo de preenchimento 100% eletrônico não só pouparia o espaço de tantas estantes, como tornaria muito mais simples a execução de algo tão básico, em teoria.

Ao menos essa servia de justificativa para o real motivo da reclamação, afinal, foi como se o lugar houvesse retornado a um estado pior que antes, após a saída dela.

— É, a Hannah podia ter ao menos nos avisado que ia só chutar o balde do trabalho e deixar a gente com a carga toda…! Eu nem gostava tanto assim dela, mas reconheço o quanto ela me poupava de precisar trabalhar de verdade…!

Os plantões voltaram a ser ocupados e os pacientes, repulsivos quanto sempre foram antes da presença angelical da Savoia.

— Dito como uma verdadeira encostada…! — disse a colega, ao fim de ter colocado um fichário em seu devido lugar. — É, ela era legal… meio boba e guiável, mas legal. Curtia como ela deixava a gente descansar e levava a maioria do trabalho nas costas… se bem que isso tornava ela bem idiota!

As duas trocaram risos singelos. Ninguém gosta de um “bonzinho competente”, em especial quando essa pessoa só te faz lembrar do quão incompetente você próprio é de verdade.

No caso delas, porém, não era como se a autoconsciência fosse mudar alguma coisa; antes de tudo, se sentiam até felizes por não precisarem mais competir por atenção com a máquina de agradar e trabalhar chamada “Hannah Savoia”.

— Eu me pergunto o que ela tinha em mente… — começou a primeira, em claro deboche. — Deve ter dormido com pelos menos uns cinco doutores, para todo mundo gostar tanto dela daquele jeito…!

— Né isso! — rebateu a outra, em concordância plena e um sorriso sarcástico. — Aquele reconhecimento todo, a “Senhorita Enfermeira Padrão”...! “Oh, olhem para mim! Eu sou a Hannah e eu sou incrível…! Vocês devem me invejar!” Hah, se ela pensa que nos enganou…!

— Deve ter percebido que aqui não é lugar para isso! Apostei o meu salário que ela não ia durar três meses aqui dentro! A Odessa, lá da traumatologia, tá me devendo uma grana preta!

— Queria eu ter ouvido dessa aposta antes!

A necessidade de mostrar trabalho real era a parte ruim, mas, contanto que o tamanho incômodo pessoal gerado por Hannah não existisse mais, qualquer coisa valia para as duas.

O mesmo não podia ser esticado para o restante do corpo hospitalar, no entanto.

— Eu soube que a Mary ficou meio triste… Claro, né! A Hannah foi meio que a única a fazer amizade com ela.

Um novo fichário achou lugar na estante, a restarem ao menos mais uns vinte.

— É mesmo, né? Pobre Mary…! — zombou, reduzindo o número em um a menos. — Agora, é capaz que ela tenha um ataque de pânico de verdade!

Felizmente nenhum paciente resolveu ser corajoso o bastante para andar por aí, fato que não impedia outras pessoas de se sentirem terríveis com os comentários das profissionais.

— Huh? — A segunda olhou para trás, deparada com uma mulher mais velha a observá-la. — Precisa de alguma coisa, senhora?

A idosa, de postura cansada e olheiras profundas, nada respondeu ao ser questionada, escolhendo dirigir-lhe uma encarada de desaprovação, antes de tomar o próprio rumo.

— Uhh…

Ela murmurou brevemente algo inaudível por entre os lábios flácidos e a boca desprovida de dentes, a sumir pelo corredor, ao caminho da direita.

— Velha bizarra…!

Na verdade, as duas não se importaram com qualquer comentário, ao invés disso, decidiram focar em algo que chamasse a atenção para valer.

— Olha lá ele…! É aquele ali! Aquele que olhou para mim passando, ontem…!

Ao perceber a presença do homem no andar em questão, a mais baixa do par fez o possível para esconder o sorriso bobo a brotar de forma quase inconsciente.

O sujeito em questão subiu depressa às escadas, a manter o ritmo apressado conforme se aproximava da intersecção entre os vários corredores.

Além da careca perfeita e dos óculos escuros, as vestes formais serviam de indicativo mais claro para a posição de agente da lei.

— Ele passou o dia me encarando, a cada vez que passava…! É um gatinho! Quem sabe vai pedir o meu número? — perguntou, sem notar as implicações da estranha movimentação.

Além dele, outros sete acompanharam, surgindo segundos depois, com armas em punho e expressões sólidas como rochas. Brevemente, ele comunicou algo pelo pequeno dispositivo no bolso do terno.

— Uh… Acho que ele não tá aqui para pegar o seu número…! — notou a companheira de fofoca, enfim percebendo os detalhes plenos do que acontecia.

A entrada foi um movimento estratégico e no segundo onde atingiu a intersecção de corredores, ativou um comando no aparelho, antes de exclamar:

— Atenção! O hospital está sendo alvo do ataque de um sujeito hostil! Ordenamos a todos os funcionários, pacientes e acompanhantes, que se escondam em locais seguros até segunda ordem!

— O… O quê…?!

O pequeno objeto fez a função de um megafone, amplificando o barulho a ponto de quase ser ensurdecedor. 

Apenas segundos depois se notou ter, na realidade, vindo do próprio sistema de sons e informativos do hospital.

— Atenção! — repetiu. — O hospital está sendo alvo do ataque de um sujeito hostil! Ordenamos a todos, sem exceção, que se escondam em locais seguros até segunda ordem!

— … VEM! — exclamou a mais alta, ao agarrar a amiga. — Vamos nos esconder na sala de descanso…! A gente precisa obedecer…!

Ao passo que ambas cortavam os corredores em função do desespero, o grupo de homens armados com grossos calibres fechou o caminho de qualquer entrada ao andar de cima.

“Droga… O que tá acontecendo lá embaixo…?!” perguntou em pensamento, ansioso por receber até a mais estúpida das respostas.

Caso não fosse pela reação rápida em deter o avanço daquela mulher maluca, as pessoas no térreo teriam morrido.

Por sorte, os protocolos de treinamento e a agilidade em fechar o perímetro serviram. Os visitantes foram capazes de se protegerem em sua maioria e a situação até pareceu otimista de primeira.

“O que foi aquilo…? O que é aquela… coisa?!”

O dedo no gatilho tremeu, já que, por mais letais e perigosas que fossem as armas…

Por que não morre?!”

… de nada adiantaram para a fração destroçada de pacientes e acompanhantes no primeiro andar.

Tec-Tec… Tec-Tec…

— HOMENS, EM ALERTA…! — exclamou, ao topo dos pulmões. — Está subindo…!

Os rifles oscilaram e a pressão ansiosa de dar o primeiro tiro cresceu ao ponto de quase afogar cada um, os oito metros de distância dos lances de escada insignificantes, perante o absoluto terror.

— Em posição…!

A cena lá embaixo ficaria marcada na mente de quem conseguisse sobreviver — em caso de existir alguém — e a noção de impotência, consolidada nas juntas e ossos, passava a mensagem final:

A de que as ferramentas de trabalho, em geral tão confiáveis, não os salvariam agora.

Tec-Tec… Tec-Tec…

O ritmo de caminhada, excruciante de tão curto, roubava os ritmos dos vários corações e, agora bem mais perto, a antecipação por seu surgimento o fez querer gritar.

— Renda-se pela última vez…! — brandiu, sem confiança verdadeira. — Apareça e se ajoelhe…! Fique de mãos para o alto…!

Tec-Tec… Tec… Thum.

Atingiu o segundo andar, e sua perna sangrenta foi a primeira coisa que viram.

— … Ajuda… Me… ajudem…

E o que viram não representou o que esperavam ver.

— Cessar…! — sinalizou com a mão para o alto. — Você! Como conseguiu escapar?!

Era só mais uma enfermeira, bastante debilitada por um ferimento enorme em sua perna esquerda. No canto esquerdo do peito, em letras verdes, lia-se seu nome: “Mary Brandon”.

— Eu me fingi de morta…

O corte na altura da coxa sangrava com violência e o sangue coagulado se sobrepunha ao mais novo e oxigenado, em uma mistura de odor férrico terrível.

— Como conseguiu andar até aqui?! Há outros sobreviventes além de você?! Onde… Onde está aquela mulher?! … Um de vocês…! Me ajudem a transportá-la…! Os outros ficam!

A carne de Mary podia ser vista pulsando e a baixa temperatura do corpo pálido, já quase sem consciência, denotou a perca de grande volume sanguíneo.

— Eu… Eu…

— Esqueça…! — rebateu, consumido pelo próprio desespero. — Precisamos de um modo para conter o sangramento…! Uma toalha… Um torniquete…! Qualquer coisa…!

Outro agente armado chegou nas proximidades e se ajoelhou para apoiar com a condução e, depressa, os dois dividiram o peso longitudinal do corpo da fraca enfermeira.

— Agente… Agente… eu…

— Por favor, não se esforce…! — interrompeu, tentando soar menos ríspido. — Sinto muito por antes, mas…!

— Agente… — insistiu, ao agarrá-lo com fraqueza no braço esquerdo. — Eu… não me sinto muito bem…

— São os seus ferimentos, Mary… Você…

— Eu sinto que tem algo… querendo sair

PHLOW!

A caixa torácica da enfermeira explodiu no meio, abrindo uma grande fenda a revelar seus pulmões, coração e ossos. De repente, sangue e carne esvoaçavam por todos os lados e, em especial, sobre os rostos dos dois homens nas proximidades.

— ACK…! — O líder cambaleou para trás, cegado pelo evento absurdo. — UGH…!

— Pobre Mary…! — Aquela voz soou no ar, brincalhona. — Ela se sentia tão sozinha por dentro!

Sons de múltiplas saraivadas de tiros ecoaram além da visão obscura do agente, infinitos pelo curto tempo pelo qual duraram.

— Que bom que ela me teve para fazer companhia antes de morrer, né?

A figura da coisa brotou de dentro da fenda carnosa, por mais que sequer pudesse caber lá em primeiro lugar. Do nada, sua carne pálida se materializou, a exibir sua enganosa forma humana.

— Essas armas parecem legais! — afirmou, um largo sorriso a mostrar os dentes. — Eu também queria poder brincar com uma!

— MORRA, MONSTRO…! 

O agente desesperado descarregou todo o conteúdo do rifle semi-automático nos mais diversos pontos do corpo da aberração de cabelos rosados, abrindo incontáveis buracos pela superfície de seu tórax, abdômen e cabeça.

Os projéteis espalharam o sangue da coisa pelas paredes brancas, levando-a ao chão. De joelhos, a figura sangrou litros, mais pálida a cada gota passada.

— É AGORA! — Trêmulo, ele puxou da cintura uma pistola. — MORRE…!

O primeiro tiro acertou em cheio no topo da cabeça e o ferimento de saída deixado espalhou a massa branca cerebral, manchando o chão.

— MORRE…!

O segundo disparo abriu um rombo acima do olho esquerdo e o osso dilacerado apareceu sob o lago de sangue formado em um piscar de olhos.

MORRE!!!

Sem olhar para onde atirava, descarregou as outras quatro balas da arma de fogo, cada uma mais imbuída de agonia, em relação à predecessora.

— Armas são legais…

A polpa de carne desfigurada sorriu para ele, lábios cheios de vermelho. A metade superior esquerda do rosto já não existia mais, e de alguma forma permanecia existindo.

Ele, junto dos demais, só puderam se questionar que tipo de pesadelo deu origem a algo tão temível.

— … É uma pena que elas só me machucam.

O único olho azul restante da abominação em formato de garota cintilou, sobrenatural e ao derramar restos de massa encefálica e pele solta, se ergueu como se nada tivesse acontecido.

— Querem ver uma coisa que eu sei fazer? Olha só que legal!

Ela deslizou um par de dedos para dentro da própria garganta, para provocar o próprio reflexo de vômito.

— Tudo isso ficou alojado nos meus ossos! Podem pegar de volta! — saltitou, em aparente animação ao falar. — Gostaram do meu truque? Eu direcionei todas para o meu estômago…!

Os olhos horrorizados dos homens armados marcaram o ainda maior abandono de suas almas à desesperança, quando ela vomitou dezenas de projéteis sem reclamar.

— Meu… Meu Deus…

Ele não alucinava ou delirava, qualquer um podia ver e até sentir o cheiro ácido da cobertura de muco transparente sobre os vários pedacinhos de metal amarelado.

— Isso… Isso é…!

— Agora… eu também posso brincar, né? — questionou, sádica. — Prontos ou não, é a minha vez…!

— DEFENDAM-SE! HOMENS, BATER EM RETIRADA…!

— Ah, mas eu não fugi de vocês no primeiro round…! Não é justo! Vocês precisam brincar direito!

Ela correu até o primeiro homem em uma demonstração de velocidade super humana e enfiou-lhe a mão no rosto, sem dá-lo qualquer chance de reação.

— Ugh…! AAAARGH…! — O agente armado se debateu, aparentando sentir imensa dor quando a mão inteira dela se uniu magicamente ao seu corpo.

— Só vai doer um pouquinho! E agora…

Ao puxar o braço para fora, no lugar da mão não existia nada e o agente até segundos atrás são, voltou-se contra os próprios colegas, pronto para abrir fogo.

— … Vai ser a minha vez de ser a caçadora!



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