Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 138: Arma Biológica, Ato 1

— Finalmente…! Consegui terminar com o relatório da missão em Montana!

Gordon não soou tão animado quanto gostaria — fato notado por si próprio antes mesmo de anunciar em voz alta —, porém, sua motivação para mudar isso também não iria a lugar nenhum e, portanto, nem tentou soar alegre de verdade.

Até porque, ao se descrever as loucuras vividas naquele pedaço de interior, o único lugar a restar na consciência só servia para calcular as terríveis repercussões dos eventos presenciados.

Aquelas coisas deveriam ficar em um livro ruim de Ficção Urbana, local de onde jamais seria esperado que saíssem.

— Ugh… Tô precisando tomar um café…

O escritório de pouca lotação fez simples o caminho até a máquina. Diferentemente de qualquer outra daquelas várias cooperativas e empresas além da janela, aquela só contava com os melhores.

E, por falar nos melhores, evitar admirar o novo rosto empolgado da firma se tornou seu mais novo desafio impossível.

“Eu me pergunto quanto tempo ela vai durar, até o estresse corroer esse sorriso…”

O gole amargo desceu ríspido pela garganta. Gordon não desejou pensar isso a partir do pior modo; ele só sabia o bastante sobre o próprio ramo de trabalho para compreender como o esquema tendia a funcionar com os novatos.

A maioria começava como ela — empolgados, sorridentes e altamente prestativos —, até, com o tempo, serem lixados e polidos de suas melhores características, como uma peça metálica que tem sua ferrugem removida.

A rotina maçante, burocracias, desilusões com a impossibilidade de fazer coisas grandiosas na nova posição que ocupam e, é claro, o embate pelas melhores promoções.

De certo modo, pode-se afirmar se um tipo de “Jogo Mortal”.

“Bem, não vai me machucar ter uma palavrinha com ela.”

Copo plástico no lixo e um pouco mais de coragem psicológica guiaram-lhe os passos até a mesa da novata; Agente Robinson, como ela se chamava, organizava alguns folhetos com notável agilidade, os ordenando quase como uma máquina.

— Hm-hm-hm…! — murmurava uma música irreconhecível, plenamente focada. — Hm-hm-hm! Hm-hm…! … Oh…! Agente Wal… Digo, Senhor Agente Walker…! Bom dia!

O sorriso brilhante da moça afro-americana o trouxe um pouco de brilho, junto da estranha sensação de um alívio diferente.

— Não precisa de toda a formalidade! — sinalizou em negação com a mão frente ao rosto. — Sei que sou tecnicamente um dos seus superiores, mas não nos tratamos assim!

Um tipo de calor no peito, típico de se estar passando por um ótimo dia. De imediato, Gordon sentiu como se houvesse dormido muito bem e o céu nebuloso além das vidraças pareceu até mais bonito.

Ele se questionou seriamente se a animação de uma única pessoa podia contagiar com tanta intensidade.

— Oh! Desculpe, Senhor… Digo, Walker…! Uhm…!

Agente — corrigiu, sem repúdio verdadeiro pela atitude da novata. — Me chame de “Agente Walker”.

— Claro…! — Outra vez, sorriu abertamente. — Agente Walker…!

“Hmm…”, admirou em silêncio, atento ao novo rosto. “Eu… não acho que vi ela antes… Sim, não vi, mas…”

Por mais que nunca antes a tivesse visto — e disso tinha certeza — algo em Robinson o chamou a atenção desde o instante em que a viu pela primeira vez, sentimento esse potencializado pela nova proximidade.

“As características faciais dela não me são estranhas… É quase como se eu já tivesse visto alguém muito parecido…”

A mente treinada de investigador punha ocasionais armadilhas, a mostrar que, nem sempre, tentar buscar conexões em tudo se provava proveitoso de verdade.

“Acho que eu tô pensando demais… Olhando agora, muitas pessoas podem se parecer com ela em algum ponto ou dois… Ugh, tô precisando me desligar um pouco…”

E, por efeito colateral de um cérebro tão acostumado à análise, o excesso de foco no processo dedutivo o poderia levar a falhar na ação rápida e, com isso…

— Agente Walker…? — perguntou, aparentando preocupação com o superior. — Você tem me encarado por um tempo… Tem algo com que eu possa ajudar?

Não só de excesso de afinco lógico pode viver alguém cuja vida se encontra em risco por livre e espontânea vontade.

— Oh…! Perdão…! — Ao ser puxado de volta à realidade, até os barulhos ambientes ficaram mais altos. — Fui inconveniente e peço desculpas… Estava apenas pensando em algo não tão relevante assim.

Somente ele próprio soube mensurar o quanto teve de se enganar para não auto-admitir essa grande mentira.

— Ah, entendo…! Às vezes, o trabalho pode acabar com a gente…! Compreendo perfeitamente!

Como esperado, ele tomou o comentário com certo grau de ceticismo. Novatos fazem qualquer coisa para agradar os superiores e crescerem em seus conceitos, prática vinda desde os tempos de escola.

Sem chance de que ela, uma simples jovem, provavelmente mais um prodígio de universidade, compreendesse o real peso de lidar com algo que impacta o futuro do mundo.

— Me perdoe se eu estiver sendo indelicada e invasiva, mas…

— Huh…? — Ele reagiu com surpresa, ao notá-la pegar suavemente sua mão destra.

— … Nenhum homem nasceu para carregar o peso do mundo nos braços — começou, olhando-o no cerne. — O que fazemos… o que você faz… é uma loucura sem comparação e é perfeitamente compreensível que hajam instantes onde questionamos nosso lugar real no meio dessa engrenagem caótica.

O toque da mão fina e pequena sobre os enormes dedos calejados pelas barras da academia e a prática de tiro-ao-alvo amplificou a sensação anterior de plenitude e cuidado.

Agora, era como se o próprio sol da manhã o envolvesse de corpo inteiro, na forma de uma manta.

— E é nesses momentos onde é importante nos lembrarmos de quem somos e que, acima de qualquer outra coisa, somos apenas pessoas feitas de carne, ossos e sangue, bem menos significantes ao destino quanto gostamos de imaginar, todos os fatores levados em conta. Sei que não gostamos de ouvir isso, mas é a realidade.

Cada palavra o atingia de um modo como nenhuma outra jamais acertou, dado que, além de falar para o corpo, os fonemas se miravam contra a própria alma do agente.

— Contudo, se uma coisa podemos mudar e atuar, isso é a nossa própria visão sobre os fatores que nos rodeiam e a percepção que temos das cartas que o jogo da vida nos deu, então, para deixar mais direto…

Era como se ela pudesse ler o que se passava em ambos, mente e coração.

— Priorize as coisas que pode mudar, a começar por si mesmo. Ehehe!

E, como sempre, o sorriso caloroso, cheio de dentes, veio no final.

— Uh…

Ela não mais o tocava, mas parte dele desejou profundamente que continuasse, infelizmente reprimida pela necessidade da compostura enquanto profissional e o básico respeito pelos limites da novata.

As palavras acertaram ao cerne final, ao ponto de deixá-lo ausente de respostas.

— Agente Walker…! Agente Robinson…! Tá acontecendo algo horrível em Montana…!

Como a mais típica piada do destino, veio a interrupção, personificada na atribulada Adrianna, a correr em pânico na direção dos dois.

Ela veio em forma quase explosiva pela porta de entrada, com o fiel tablet nas mãos e uma expressão de aparência nada confortável.

— O que houve, Adrianna?!

Sem esperar, ela repousou o aparelho sobre a mesa de Robinson.

— Nossos membros no hospital emitiram um pedido de socorro…!

A tela indicava o mapa da pequena Elderlog, mais especificamente nas proximidades do hospital onde se encontrava Pryce, sendo o fator mais relevante a série de pontos vermelhos pulsantes sobre a construção.

Cada ponto simbolizava um pedido por apoio e já haviam algumas dezenas deles.

Algo está atacando aquele hospital…! — disse a mulher, os encarando com olhos a quase saltarem para fora das órbitas. — Nossos agentes e os pacientes estão sendo massacrados por um deles…!

[...]

“Meu Deus… Meu Deus…”

O primeiro andar do hospital existia em meio ao mais pesado nível de solidão, cena o exato oposto do corriqueiro. Oculta, uma mulher alta e de longos fios loiros os coçava quase a ponto de arrancar.

“Eu tenho que fugir… Eu… preciso fugir…”

A médica ortopedista não tinha o luxo de mover um músculo, oculta atrás da maca metálica virada de lado sobre o chão, atuando como uma barricada improvisada, criada pelo destino.

Até os barulhos das máquinas soavam distantes e até confusos, e na ausência de pacientes e demais profissionais em suas rotinas habituais, o ar em si adquiria trejeitos a cada instante mais terríveis.

Os únicos sons eventuais vinham dos distantes sons de densas trocas de tiros, aparecendo nos piores momentos, nunca falhando em assustá-la quando mais estivesse desprevenida.

E os mecanismos por trás de tamanha agonia não se resumiam a apenas um.

“Todo mundo… Eu… Eu não tô ouvindo ninguém… Eu…”

A mente acelerada da doutora ainda proibia a queda da ficha, incapaz de processar em plenitude o fato de que o sangue a escorrer pelos azulejos e manchar o branco das paredes provinha de funcionários e pacientes.

Até o nome dela, estampado no jaleco, mal podia ser lido por se encontrar besuntado de sangue.

“Tá… vazio… Tudo vazio…”

A mulher colocou em mente a necessidade de permanecer o mais controlada quanto possível — o sofrimento podia vir depois — e, com rota de fuga planejada, máxima eficiência garantiria o amanhã.

“O corredor à esquerda, depois um pouco para a frente… Lá… tem o elevador…”

Ajustou os óculos redondos e mordeu a língua ao deixar o relativo conforto do esconderijo, impedindo-se de respirar, para não captar o odor do sangue empoçado de tantos caídos. 

Apenas no princípio do corredor de sua ala do centro de traumas, contou sete, somando aos outros dois dentro da sala de radiografia.

Haaah… Haaah… — Rapidamente cobriu a boca, ao notar os excessos de barulho na respiração. “Não… Sem chamar atenção… Sem… Calma… Calma, Anna… Calma…”

A Doutora Anna não sabia o que raios causou aquilo, mas rezou para que o bisturi oculto em uma das gavetas fosse o suficiente para, ao menos, intimidá-lo.

“Sair… Eu vou sair… Eu…”

O lado de fora parecia mais frio, inteiramente vazio dos sons de convivência. A maioria das salas se encontrava vazia, com apenas um ou dois pacientes ainda restantes em algumas, visivelmente mortos.

“Eles… devem ter evacuado a maioria…”

A julgar pelo número de ocupantes totais, as baixas tinham a sensação de serem poucas e, como uma profissional da vida, se julgou por dentro por ficar aliviada com o pensamento.

O local reduzido a uma versão macabra de um espaço liminar, branco decorado por rios de vermelho, quase ausente de outras formas humanas, nenhuma delas capaz de contar a história do ocorrido.

Era somente ela e a coisa responsável pela destruição.

“O elevador…!”

Anna quase caiu de alívio ao ser agraciada com a porta dupla metálica, limpa em comparação a todo o restante — “um ótimo sinal”, interpretou ela — e depressa se jogou nele, apertando o botão com violência.

“Rápido… Rápido…!”

Do terceiro piso, o transporte se preparou para uma excruciante descida até o primeiro, abrindo para revelar a ausência absoluta. Somente ela estaria lá e saber disso a trouxe grande alívio.

— Haah… Haaah…! — suspirou, de costas para a parede da cápsula. — Eu preciso chamar alguém…!

A polícia, o exército, as forças especiais… Não importava; qualquer um haveria de servir.

A viagem até o térreo a deixou logo na entrada, sendo um pouco mais veloz. Dali, viu os vidros e a porta automática, ambos quebrados, possivelmente pela fuga ágil de quem estivesse dentro.

“Não tem ninguém… Não tem absolutamente ninguém…!”

Sem corpos, sem sangue, somente os sinais de um escape bem-sucedido. Se o foco da coisa foi apenas o andar de cima, o caminho de escape seria mais simples, impossível.

“Eu vou sair…!”

Anna deixou de se preocupar com dosar o som dos passos e os ecos pesados dos tênis fechados trouxeram algo mais.

— … Tem alguém aí…?! Por favor… Me ajuda…! 

“Huh?!”, parou, prestando atenção na voz próxima.

— Eu… eu te ouvi…! Por favor, eu não consigo sair sozinha…! O meu pé…! O meu pé tá quebrado…! Não dá para andar…!

“Ugh…!”

A luz da saída até já a iluminava, a bastarem poucos passos. Se saísse, encontraria a chance de salvação do lado de fora e, quem sabe, poderia até ajudar seja lá quem fosse, porém…

“Ela… pode não sobreviver…!”

— Por favor…! Socorro…!

A mulher no corredor à direita necessitava de ajuda e negar apoio ia contra os fundamentos básicos da profissão de um cuidador da saúde como ela é.

— Ok, eu tô chegando…!

Tão rapidamente quanto pôde, a médica correu em tiro até o final do corredor à direita, obscurecido pelas luzes apagadas.

— Cheguei…! — exclamou. — Vamos, eu te ajudo a se levantar…!

A mulher sem nome se encontrava quase no exato centro do caminho, o grande ferimento de torção no tornozelo a sangrar rios. Caso não passasse por cuidados, a jovem até poderia morrer de hemorragia.

A escuridão parcial bloqueou o suficiente da visualização de cores para impedir uma boa definição das características da aparente adolescente, ajoelhada no chão.

As únicas coisas definíveis perpassaram os aspectos mais típicos: ela usava pijama hospitalar e tinha cabelos soltos, não muito longos.

“Deve ser uma paciente que não teve sucesso na fuga…!”

Ela ajoelhou em frente da paciente e na profunda impaciência impulsionada pela adrenalina, ignorou completamente o estranho odor vindo de seu corpo.

— Você está ferida em algum outro lugar?! Acha que consegue pular com a perna saudável?

— Não… Eu… Eu acho que tô bem… Muito obrigada… — agradeceu. — Eu… Eu posso pular sim…

— Ótimo — começaram o caminho até a saída, devagar. — Sabe o que aconteceu aqui?

— Ah… Eu… Eu não vi muito… só as luzes piscaram, as pessoas começaram a gritar e… Não sei…

— Hmm… Certo. Vamos andando. Quando tomar um ar, pode tentar se lembrar melhor, okay?

— … Okay… — cedeu. — Mas, doutora… Eu tenho uma pergunta…

Ambas tomaram um passo a mais em meio às trevas e uma estranha sensação passou a tomar o ar.

— … Você acha que eu conseguiria ser como você?

A pergunta esquisita quebrou o clima de tensão de forma nada natural e, confusa, Anna se embaralhou com a possível resposta.

— … Como assim…? Ser uma médica…? Se for isso, vai precisar estudar bastante…! Mas… por que a pergunta?

— Ah, nada…! É só que…

A adolescente envolveu o braço em torno do pescoço da profissional, em um gesto de sufocamento.

— Eu só acho que tem um jeito bem mais fácil e menos tedioso do que esse…!



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