Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 130: Máscaras
Dos pés à cabeça, “perfeita” talvez fosse uma palavra pequena demais para descrevê-la.
— Ele não vai mais te incomodar, eu prometo! — sorriu. — E se mexer com você de novo, só precisa falar comigo e vai ter uma testemunha, tá certo?
Para começo de conversa, a característica mais importante e a primeira notada: os grandes cabelos ondulados, além da linha dos ombros por quase quatro palmos.
Os fios, grossos e impecáveis, brilhavam como poente, poderosamente ruivos e, de tão fartos, se envolviam em torno dela como se formassem ondas feitas de algodão doce.
A pele, alva e praticamente sem marcas, gerava contraste absoluto, a criar o mural perfeito para os grandes olhos castanhos-claros, piscinas de puro mel.
Até andar na lua seria mais simples que apontar qualquer fator além do impecável na quase mulher, alta e de porte esbelto, dona de longas unhas bem-cuidadas e dentes polidos.
E tal combinação de fatores não era para menos, pois, ao se tratar de especificamente ela, ser algo menor que a mais intricada criação da realidade a beneficiaria em nada.
— Eu vi o que ele fez… O Mitchell foi bem nojento e é desse jeito desde a primeira vez que o vi! — disse, enfática. — Ótimo. Você já tá bem menos pálida agora.
A ausência de outras pessoas à mesa acabava não sendo tão estranha de se imaginar. Rebecca, assim como a própria Abigail um dia foi, se tratava de alguém “grande demais” na visão dos outros.
— Ah… Obrigada… — confirmou com o melhor sorriso possível. — Ele… eh…
— Tá tudo bem. Não precisa falar sobre isso se te incomodou tanto. Eu sei como é, por isso não achei nada legal — enfatizou. — Sabe, a real é que eu tô preocupada contigo, Abigail… Tipo, eu sei que a gente nem se fala, você só tá aqui a menos de uma semana, mas, ehh… Depois daquilo…
O tópico fez subir um fundo de amargura na garganta, feita voltar com a dificuldade de se engolir uma lâmina.
A voz de Rebecca soou cheia de vergonha alheia, mostrada na face moldada como a de quem comeu um limão azedo por pura obrigação.
— Posso não saber o que rolou ou ter uma gota do contexto real, mas fica claro o quanto isso te incomoda. Quer dizer… eu não sei se ia conseguir superar tanta gente zombando da minha cara por uma coisa que não foi a minha culpa! E olha, eu só tô falando por mim, mas…
— … Mas foi a minha culpa.
Os barulhos de conversas e talheres compuseram os sons do ambiente ao instalar do quase silêncio e na expressão geralmente dispersa, a portadora de cabelos roxos exibiu algo difícil de ler.
— Eu fui insistente em abordar um assunto que já devia ter morrido — confessou, sentindo o peito pesar. — Ninguém sabe a verdade e ficam falando coisas…
As gravações ganharam engajamento nacional em poucos dias e, tão logo, o “surto adolescente” ganhou a mídia sob a forma de uma história sem sentido.
Ver as pessoas espalhando todo tipo de boato, além de vendendo a narrativa sob suas próprias óticas particulares, em busca de um segundo ou dois de fama, a fazia quase doente.
Somente ela conhecia a verdade e o fato de tantos acreditarem cegamente em fofocas tão infundadas só a desencorajava em tentar prová-los errados.
— Errei no jeito como abordei a situação — confessou, cabisbaixa. — Eu…
— Eu já te entendi — confirmou a ruiva, rindo de canto ao piscar. — Você queria falar sobre, mas ele não. Deu para pegar o contexto direitinho.
Se assim pudesse, voltaria no tempo apenas para fazer do jeito certo, ao invés de pressionar um assunto tão delicado.
“Se fosse tão simples assim de definir…”
A dor ao fim de cada pronunciamento a abalou com a mais intensa falta de orgulho pelo ato teoricamente heróico e o mero ato de relembrar chegava a doer.
— Olha, o motivo dele ter surtado não me é claro e nem nada… Quer dizer, eu não sei de nada do que vocês viveram e só vi a tragédia toda pela TV, então pode ser que eu diga alguma besteira, mas…
A atenção plena da ruiva se prendeu a ela, voz soando determinada e a culminar numa singela mostra de dentes.
— Você e ele passaram por isso, Abigail — anunciou, confiante. — Olha só, você tá viva!
A mensagem penetrou fundo pelo buraco no coração da Halsey, instalando um novo sentimento na forma das pulsantes ondas de seus batimentos.
— De novo, eu não sou ninguém para falar, mas… julgando como tá sendo a sua reação e os teus últimos dias aqui, dá para presumir que esse cara é bem importante, mas e aí? O que vai fazer com isso?
— Mas eu nem sei onde ele mora! — exclamou, frustrada. — E além disso, vai que ele acha ruim saber que eu tô “perseguindo” ele ou sei lá?
— Vai que ele não acha? — Rebecca rebateu, apontando o garfo plástico. — E além do mais, vai ser mesmo “perseguir” ele? Vocês dois sobreviveram a uma tragédia juntos! Sempre tem tempo para pedir desculpas.
As pessoas ao redor assistiam à conversa com curiosidade, por mais que não entendessem quase nada e à distância, alguns gravavam e faziam fotos da atenção especial recebida por ela.
— Mas… eu…!
— Tá na cara que você não faz a menor ideia de como desenrolar esse problema, então, o que acha de eu te ajudar?
Levou alguns segundos até a mente acelerada da jovem compreender a proposta a ser feita.
— Eh?
— É! Olha, eu vou ser bem sincera… Tô afim de ser sua amiga, Abigail — curvou os lábios para cima, olhos cheios de brilho. — A gente pode ir nessa juntas! A gente caça onde o cara mora, você vai lá e tem uma conversa decente com ele, enquanto eu fico na sua retaguarda! Não soa como um plano?
De alguma forma, o ânimo da “mais bela” em arrumar a bagunça soava supremo e, empolgada, a mais alta tomou a liberdade para entrelaçar seus próprios dedos entre os dela.
— A gente pode ser uma equipe legal! Hehehe!
O riso legítimo reverberou pelas paredes, sem se incomodar com a opinião alheia, e por mais que a atenção excessiva de início tenha soado errada demais, bastou ligar os pontos para perceber.
“... Ela…”
Rebecca era como ela, um dia, também foi: intocável.
Uma figura a ser vista e apreciada de longe, cultuada pela escola como uma deusa: amada pelos garotos, invejada pelas garotas e o colírio aos olhos dos professores.
Ninguém de fato se aproximava ou considerava as chances de firmar uma amizade verdadeira; existia esse viés inconsciente e mutilante de inferioridade.
Sequer ameaçavam descascar um pouco e aprender algo legítimo sobre ela, afinal, não queriam se deparar com a realidade de ainda se tratar de alguém como eles.
Abigail conhecia isso por experiência; pessoas te tratam bem pelo seu status, beleza, ou algum outro atributo e esquecem de você quando tais coisas passam a não importar mais.
“Tch”.
Suas supostas amigas, por exemplo, foram as primeiras a fugir, quando perceberam o perigo representado por Jacob.
Descaradas, se recusaram a lutar por ela, mesmo que por só um segundo, e por baixo das palavras de apoio eterno e infalível, dos almoços juntas e das conversas banais…
… apareceu a mentira que a empurrou para fora do banheiro feminino, trancado às pressas.
“Não tem lugar aqui para você, Abigail! E vê se leva esse seu namorado maluco para bem longe de nós!”
Conexões reais se tornam quase impossíveis quando se é esse tipo de ferramenta; as pessoas te conhecem por uma máscara e usam das conquistas para avaliar suas decisões.
“Em quase uma semana, nunca vi ela falando de verdade com ninguém.”
A convivência nas salas de aula acusava o fato: Rebecca não tinha amigos e sim, admiradores. Para eles, a complexidade de sua pessoa se resumia a marcas de maquiagem, roupas bonitas e outras banalidades.
“... Quando eu vi alguém perguntar algo de verdade para ela…?”
Semblantes de seu próprio “período popular” atravessaram-a na forma de filme.
“Não perguntaram… Eles nunca perguntam.”
Para pessoas como elas, por ventura ouvir de alguém a pergunta se está “tudo bem” jamais passaria de um gesto de educação — uma máscara —, pois através de máscaras eles as julgariam.
— Ei, Abigail...! Me fala! E aí?!
Por um momento, hesitou, e ao pensar, veio a resposta mais cabível: o brilho daquele olhar merecia a chance de ser visto por alguém que o fosse valorizar de verdade.
— Eu…
Os acontecimentos que a trouxeram a esse instante passaram em loop pela cabeça da jovem mulher, pesados sobre o pescoço. A história por ela comprada cabia só a ela viver.
— Eu agradeço o acolhimento e essa conversa de agora, mas a questão é que esse é um assunto meio pessoal e…
Portanto, ela jamais haveria de se permitir deixá-la tomar o mesmo caminho. Rebecca tinha uma vida para tocar e arruinar isso pela simples vontade de se apoiar em alguém seria o gesto mais egoísta.
“Não posso deixar…”
Portanto, preparou a resposta já alocada no fundo da língua e ao dizer…
— Senhorita Abigail Halsey?
… …. …
A pressão sentida no ombro esquerdo quase fez o coração saltar pela boca.
— Ah, perdão pelo susto. Peço desculpas — disse a voz grave, surgida de trás. — Poderia ter uma breve conversa com você sobre um assunto em particular? Não vai demorar muito, é uma promessa.
As cabeças se moveram de modo síncrono para a imagem do homem esguio e de pele pálida. Com uma mão no bolso e a outra a abordar a jovem, ele carregava um leve sorriso despreocupado.
“Hkkkkk…!”
Porém, por mais inócua que fosse sua aparência em trajes formais, o deslizar dos dedos por cima do tecido a preenchia de agonia.
— Vindo por trás desse jeito, qualquer um se assustaria! — Diante da situação, Rebecca interviu. — Abigail, tá tudo bem?
A palidez a cobriu a face e o suor frio fez brilhar a testa. De imediato, Rebecca entrou em alerta, a repreendendo de modo não-verbal pelas próximas palavras ditas.
— Tá… Tá sim… — engoliu a saliva, virando devagar para descobrir de quem se tratava. — … Com o que eu posso ajudar?
Infelizmente, não havia muito a ser feito além de acatar e o “me desculpa” mandado quase por telepatia determinou os novos humores do horário de almoço.
Ele teria perguntas e honestidade não haveria de contar como resposta.
As vestes em preto e branco do homem anteciparam o motivo da abordagem e sem mais delongas, suas suspeitas foram confirmadas à retirada de um distintivo do bolso.
— Novamente, peço perdão pelo incômodo… Sou o Agente Menendez, FBI, e adoraria ouvir o seu relato acerca do ocorrido nesta terça-feira. Se incomodaria de me acompanhar?
Alguns indivíduos como ele eram ocasionalmente vistos nas ruas de Elderlog, rondando esquinas ou parados em frente a viaturas, quase sempre em meio a entrevistas, fornecendo detalhes à imprensa.
Quando não, todavia, assumiam posturas baixas e sombrias, discutindo em termos incompreensíveis sobre um grande plano ou missão — ao menos é o que ela se levava a imaginar.
As investigações seguiam a todo vapor, logo, assumir que algo da magnitude do evento de terça-feira não chamaria atenção seria mera tolice, a significar uma coisa:
“Eu vou precisar mentir bem.”
Proteger a integridade de quem a salvou representava o mínimo e a história a se contar já ocupava espaço em seu intelecto perspicaz.
— Tudo bem — disse, ao se levantar da cadeira. — Eu vou responder tudo o que sei.
— Ótimo! — O homem assentiu. — Então, por favor, me siga!
Abigail deixou a mesa com agilidade, mas logo ao dar os primeiros passos, se viu impedida pelo contato quente de Rebecca contra o pulso frio e molhado.
— Espera aí…! Abigail…!— exclamou ao alto, apontando a bandeja praticamente intocada. — Ela nem almoçou…! Quer dizer… ela ‘tava passando um pouco mal mais cedo e…
— Quanto a isso… — Menendez parou, devolvendo a encarada. — Como eu disse, vai ser algo bem rápido. Conversamos com o pessoal do refeitório e ela vai poder continuar tão logo terminemos… Na realidade, vai ser liberada pelo restante do dia, a julgar o caso.
Grande surpresa se instalou no semblante da ruiva, não ao notar a falta de argumentos, mas ao se deparar com a categórica resposta da Halsey à tentativa.
— Tá tudo bem, Rebecca. Eu já tô me sentindo melhor... A gente se conversa na segunda.
Sob tremores, o fino pulso escapou dos dedos já bem menos firmes e a decisão em cada passo ditou a distância crescente do relativo conforto do refeitório.
Assim que saíram da vista de Rebecca e dos demais curiosos, o caminho até a sala da Diretoria ficou claro e, para além disso, vieram as primeiras perguntas.
— É sua amiga? — Menendez questionou, andando devagar. — Parece ser uma das boas.
A arroxeada não se sentiu confortável em ter de responder, porém, se forçou a tal, pelo bem de seu pequeno plano genial.
— É, sim — mentiu. — Só se preocupa um pouco demais, às vezes.
— Ah, sim! Entendi.
A ausência de estudantes ou quaisquer outras pessoas assumiu um caráter enervante. Diante de seus olhos, o corredor até a sala designada pareceu se esticar, quase ao infinito.
— Amigos assim são bons de verdade, afinal, nunca se sabe, né?
E justo o fato da inexistência dos demais a fez se questionar de onde vinham aqueles barulhos similares a passos.
— …! — tentou gritar, mas nenhum som saiu.
— Ela certamente vai se questionar sobre esse nosso pequeno momento — falou o agente, com uma seringa em mãos. — Esteja pronta para dizer que correu tudo bem… ou não!
Um tecido grosseiro era pressionado contra suas boca e nariz por outro agente vindo por trás. Veloz, o homem muito mais forte a arrastou para dentro de uma sala vazia, trancada à entrada de Menendez.
— …! — debateu braços e pernas na tentativa de acertar o enorme homem treinado, sem qualquer efeito.
— Eu sinto muito por isso, verdadeiramente.
O líder da operação travou olhares com a jovem assombrada, ambos seringa e agulha brilhando sob a luz branca, refletida no líquido sem tonalidade, cravado no “5 ml”.
— … Mas eu vou precisar da sua máxima colaboração — injetou, sem cerimônia. — E não admito mentiras nos depoimentos.
A droga aplicada no pescoço adentrou sem dor alguma e bastaram meros segundos para a manifestação de seus efeitos.
— Uuungh… — Abigail gemeu, presenciando o mundo girar.
As várias partes de seu cérebro passaram a brigar para continuarem funcionando — uma luta sem chance de vitória —, e em meros dez segundos, já não diferenciava mais formas e cores, tampouco tinha o menor controle sobre o próprio corpo.
— Não se preocupe. Você não vai lembrar de nada quando terminarmos. Vai acordar em casa e será só mais uma manhã.
Aos vinte e três segundos, desfaleceu, e o corpo sem resistência cedeu ao eficiente transporte pela rota de fuga planejada.
Agentes interditaram corredores, impedindo o tráfego humano, e com o caminho livre para o lado de fora, preocupações se faziam inexistentes.
Preocupação com alarde não teria lugar de sequer começar, pois, em poucos minutos, Arrowbark High seria bombardeada de amnésicos — em suma, o sequestro perfeito.
“Todo dia, eu fico um pouquinho mais próximo de você…”
O veículo descaracterizado saiu em alta velocidade, ganhando ruas em direção à base de operações, insuspeitável aos olhos da pessoa comum.
“... [Quebra-Mentes].”