Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 129: Fama Indesejada
“Você não faz ideia do que tá acontecendo agora! Não faz ideia de quanta merda o mundo tá passando… E não faz ideia do quanto lidar com isso tá sendo difícil…!”
“Me desculpa…”
“Isso aqui tem cara de ser história de super-herói?! É algo para se sentir grato?! Hein? Me responde… Me fala…!”
“Me desculpa…”
“Eu sujei minhas mãos…! Sujei, para tentar limpar a sujeira que já existia nelas…!”
“Me desculpa… Me desculpa… Me desculpa…”
A semana correu depressa demais e ao se contar daquela simples terça-feira, os três dias se passaram em um piscar de olhos.
— Ao ler o texto, claramente percebemos a intenção do autor de nos comunicar um sentimento. Alguém poderia me dizer qual seria?
A classe permaneceu em silêncio, na tentativa de fingir ignorância, gesto muito contrário aos eventos dados após o almoço indigesto.
— Alguém? Ninguém? — O professor em sala bateu o pincel na mão. — Caso ninguém diga algo, irei chamar aleatoriamente.
Várias versões de diferentes ângulos da “confissão”, como passou a ser chamada, passaram a circular pela internet, a ponto de viralizarem. Com tal fama, parar na televisão foi o próximo passo lógico.
— Okay, já que ninguém se voluntaria a dar a própria opinião, eu vou ser obrigado a apontar…
Ter de ler as palavras cruéis dirigidas a ele, sem contexto ou chance de defesa, a revirava o estômago.
— Senhorita Halsey — chamou. — Vejo que está bem atenta ao livro… Deve saber a resposta ao que estamos discutindo agora. Por que não compartilha um pouco com o restante da classe?
O chamado a arrancou do mundo interno, tal qual um peixe é pescado para fora d’água.
Por mais que a página fosse a certa e estivesse teoricamente tão focada, as palavras no papel não passavam de borrões azulados, entre tantos pensamentos mais importantes.
— Ah… eu…
Adrenalina cursou entre as veias; ela não sabia de nada. Absorta na própria cabeça, a fala do professor Wattson foi reduzida por sua mente a um mero barulho abafado de algo distante.
— Eu… não sei dizer, professor. Eu… não estava prestando atenção.
A sala de aula logo se viu inundada de pequenos cochichos, cujos autores jamais teriam a coragem de falar com ela de frente, cujo tópico de interesse permaneceu, até a intervenção dele.
— Silêncio, vocês todos — bateu na mesa com o pincel, mandando um eco pela sala. — Imagino que ninguém aqui tenha uma resposta melhor, ou teriam se manifestado quando eu pedi.
Por mais que soasse como se a defendesse à princípio, rápida foi a mudança na atmosfera, quando se direcionou em especial para ela.
— Dito isso, srta. Halsey… — adicionou amargor ao tom, seu olhar se fazendo sensível mesmo sem ser visto diretamente. — Vai levar uma advertência por não estar prestando atenção, então é melhor manter a compostura… E que isso não se repita, estamos combinados?
Os lábios dela se torceram e as palavras azedas deixaram, à pulso, o ambiente confortável do mundo das ideias.
— Sim, senhor Wattson.
A atenção da classe pesou sobre os ombros como uma cortina densa de ferro, tornando o simples ato de respirar em uma tarefa colossal.
Derrotada, Abigail se prendia na pequena imperfeição da madeira de sua mesa, pressionando os lábios, tão forte quanto podia suportar, contra os dentes frontais.
— … Senhor Wattson… Eu não me sinto muito bem… Posso… Posso sair da sala?
O fedor do julgamento contaminou o pequeno espaço fechado e os segundos se dilataram a quase horas. Acelerado, o coração pulsou além do limite, desejando por escape.
Pressão a esmagou os pulmões — ar não entra, nem sai — e, de espírito fraco, se encolheu em torno de si mesma, até…
— Sim. Pode ir, srta. Halsey. Consigo dizer quando um aluno não está bem — citou, mais suave. — Aproveite e molhe um pouco o rosto. Pode ajudar a te despertar.
A confirmação de forma alguma deixou as coisas melhores.
— Obrigada, professor… — levantou, sentindo-a ainda mais pressionada pelo excesso de atenção. — Se me permite…
Passo a passo, traçou o caminho entre as mochilas e garrafas do chão, hiperconsciente do próprio corpo e do risco de cair ali. Era a primeira vez que receber encaradas causava tamanha vergonha.
— Ei, professor! Eu posso tentar responder a pergunta?
Mas o foco de todos mudou e o mundo se aliviou, da água para o vinho, quando ela falou. De braço direito levantado, uma novata — assim como ela — se atreveu a tentar.
— Oh, claro! Srta. Campbell! Sinta-se à vontade!
A empolgação dos outros a deu a capacidade suficiente para abrir a porta e deixar o ambiente opressor despercebida.
— Bem, segundo a minha concepção, a narrativa fala sobre…
CLUNK!
— Haah…
Enfim, ela podia respirar.
A remoção do peso metafórico a fez querer cair de joelhos no chão frio do corredor; com continência, se sustentou nas duas pernas, repousando o corpo contra a porta.
“Eu fui uma idiota.”
As vibrações da explicação reverberaram com fraqueza sobre a musculatura tensa de suas costas, cheia de pequenas dores, reminiscentes da enorme bagunça que foram os seus dias.
— Eu preciso voltar.
Se obrigou a uma caminhada forçada pelos espaços vazios e a cada passo, desenterrou uma memória dos torturantes minutos pelos quais precisou correr por sua vida.
— Eu tenho que voltar para a aula.
Se arrastou até o banheiro, lugar onde tentou se esconder dele, sem sucesso. Até o momento, não compreendia ao certo como Jacob destruía barreiras sólidas com tamanha facilidade.
— É como ele falou — encheu as mãos unidas com água da torneira, jogando-a ao próprio rosto. — Acabou. O Jacob não tá mais aqui. Eu posso viver normalmente agora.
O frio trouxe certo alívio ao calor crescente do início de verão, contudo, junto revelou a perturbadora sensação de se notar o próprio rosto sobre o crânio.
— Eu…
Os dedos molhados tremeram e o azul se destacou entre os fios de roxo no vidro polido. De repente, Abigail Halsey era somente si mesma e a noção disso a contou a verdade.
— … Eu não quero voltar…
Após ser exposta às tamanhas loucuras e vivenciar, na pele, um fragmento da realidade nua e crua, voltar e religiosamente fingir a acertava de todos os jeitos mais errados.
— Eu não quero ser “normal”... Não quero uma “vida normal”.
Travou os dentes. Como tudo em sua vida, ficar de fora e se recusar a fazer algo não compunha parte de suas próprias regras e mesmo se tratando de algo tão maluco e desconhecido…
— Eu não vou só fingir que nada tá acontecendo e aproveitar a minha própria vida de um jeito tão egoísta…!
De olho no reflexo, deu dois tapinhas molhados em cada bochecha e assumiu postura. De repente, a dose de ânimo se perfluiu entre as veias e comemorou.
— Caramba…! De início eu não tinha botado fé, mas…
“Eh…?”, paralisou, pasma com o fato de outra estudante ter resolvido entrar na hora mais errada.
— Tu é doidona mesmo, viu! Que nem o carinha lá do vídeo… — adentrou na primeira cabine, passando por ela. — Liga de mim aqui não. Continua aí, fazendo tua palhaçada. É até engraçado.
O comentário a reduziu outra vez ao ponto de geléia humana, com a diferença de que, ao invés de cair e se espatifar, Abigail ficou congelada na posição de “heróina” pelo excesso de vergonha.
“Eeeeeh?!”
[...]
O horário do almoço continuaria a ser o mesmo evento sem ânimo de sempre, cheio de gente passando com bandejas na mão, a cacofonia de vozes mistas em algo indistinguível e a massa humana distribuída de modo nada uniforme entre as mesas…
… Entretanto, desde aquela terça-feira, qualquer semblante de paz presente em tal ritual virou fumaça, pois bastava ela dar um passo no refeitório e o alvoroço começava.
— Ih, gente! Olha lá! — Um rapaz de uma mesa ao fundo apontou para ela. — É a “beldade rejeitada”! Ei, vem sentar com a gente! Tem espaço aqui!
O anúncio de uma única pessoa mobilizou, em onda, ao refeitório inteiro.
— Não vai na desse cafajeste! Tu fica melhor sentando aqui com a gente! Chega mais!
— Nada! Ela vai vir sentar com a gente! Tem canto aqui!
— Não ouve eles! Chega aqui, junto de nós! Bora conversar melhor!
“Ehhh…”, sorriu, devorada pela profunda vergonha.
A escola como um todo ficou do lado dela. Sem ouvirem a história toda, assumiram Ryan Savoia como um “grande vilão, destruidor de corações” e não poupam esforços em afirmar máximo suporte ao coração partido de Abigail.
— Ah, desculpem…! Eu… Eu acho que vou preferir ficar sozinha…!
Já havia mirado um canto para ficar — uma mesa onde teria a liberdade de ficar sozinha —, mas o excesso de interrupções tomou o ponto máximo ao toque indesejado em sua coxa.
— Não diz isso…! Olha, eu posso te tratar bem melhor que aquele cara! Ele não te merece!
A mão fria dele a congelou, quase a levando a derramar a comida e contato — breve como fosse —, extraiu uma lembrança dolorosa.
— Senta aqui! — riu. — Bora conversar!
“Ugh…”
O ritmo cardíaco tomou impulso, as mãos na bandeja começaram a suar… Com pouco sucesso, a jovem de fios tingidos em púrpura tentou se acalmar, respirando para dentro e para fora.
“Já passou… Não é o Jacob. Eu não preciso ficar pensando nele… Não é a mesma coisa…”
Para dentro, para fora… Para dentro, para fora… Para dentro, para fora…
— Que foi? Tá se decidindo? Só vem logo! Esses caras aí não querem nada de bom contigo.
“Se move, Abigail! Se move, por favor…!”
O toque a distanciou de tudo e, de repente, as pessoas a observando passaram a ser meros vultos coloridos, o tom da voz dele sendo a única coisa ainda captada pela mente em tumulto.
“Não…! De novo não…! Sai… Sai…! SAI!”
Aqueles dedos sujos, quando não os queria.
“Para dentro e para fora…”
A dominação daquela carne sobre a sua, a extirpando da chance de negar.
“Para dentro e para fora… Para dentro e para fora…”
O movimento a rasgar-lhe de corpo e alma, para dentro e para fora.
… … …
— Para de ser babaca, Mitchell!
O toque leve — porém firme — no ombro e o cheio floral de um perfume caro a ergueram do fundo do oceano da própria consciência. Do nada, a sensação dos pés no chão se espalhou em um choque.
— Não tá vendo que ela não quer sentar com vocês? Deixa de ser tão idiota!
A manifestação dela fez o refeitório se calar e logo, incontáveis olhos — ambos orgânicos e mecânicos — se voltaram para ela.
— Você não tá nada bem… — falou, perto de seu ouvido. — É ali que você vai ficar, né? Vai, eu fico contigo. Ele não vai mais mexer com você, porque eu não vou deixar.
Ela falou em alto e bom tom, compreendida em essência. Devagar e com leves aplicações de força, envolveu Abigail com os longos e esbeltos braços, a guiando até a mesa já antes visada, ao fundo.
— Desculpa — disse, suas expressões se moldando em leve desgosto por um segundo. — Eu podia ter agido antes… Ele não te fez nada, né? Você tá pálida… e bastante suada.
As reações dos demais sequer podiam ser descritas, mistas entre a mais pura surpresa e a mais óbvia inveja amarga do pequeno universo criado entre as duas.
— Já tá tudo bem agora — envolveu a mão dela com suas duas, pressionando devagar. — Eu vi o que ele fez, e, se quiser, posso até ir com você até a diretoria. Não merece passar por isso, Abigail.
Quente afago veio com o contato do guardanapo com a testa molhada; as pessoas assistiam sem dizer nada em voz alta, resumidas a cochicharem vários boatos sobre ela.
— Meu Deus… é horrível… — Preocupada, a peça central do resgate pegou um guardanapo de papel. — Com licença, tá?
Com movimentos vagarosos, ela usou o objeto para limpar o excesso de suor frio da testa da Halsey e, ao terminar, enrolou numa pequena bola, jogada na lixeira mais próxima.
— Três pontos!
Ela conhecia aquela face — mesmo que não tão bem assim — e estar diante de tão radiante figura foi difícil de digerir no começo.
— O seu cabelo é muito bonito! Sabe, eu sempre quis te perguntar que tom é esse, mas nunca dava tempo! — apontou a colher de plástico. — Que bom que a gente tá podendo conversar, né?
As duas compartilhavam algumas aulas e o fato de estar sempre tão rodeada de atenção virava sempre o tópico principal.
— Pode contar comigo, tá bom? Eu vi que não você não tá passando muito bem na aula, então decidi te cobrir... — parou, olhando ao longe. — Se quiser falar sobre, eu sou toda ouvidos.
Ela se chamava Rebecca Campbell, a figura mais popular de Arrowbark High.