Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 99: Monstros
— Heh… Hehehehe…
Por tanto tempo, tamanha barreira se mostrou um empecilho perpétuo em seu caminho e, agora, com sua queda, sequer podia conter a onda de felicidade a consumi-la, de dentro para fora.
— Ahahahahaha…!
O oponente, tão imbatível, havia caído; estatelado no chão podre, molhado e escuro, ficou para ser assistido, conforme a vida lhe era drenada.
— Você não é de nada, Mark…!
O chute nas costelas não rendeu resposta verbal, mas o corpo desfalecido fez um giro completo, parando de bruços.
— Os teus ideais não serviram de nada…!
Outro chute, pouco menos potente, mas ainda firme o bastante para deslizá-lo. Extática, Samantha agia ambos como atriz e receptora direta de uma série de mudanças internas e externas.
— Agora é meu, Mark… Tudo o que, um dia, foi seu…! — riu, tomada pela súbita sensação a invadir-lhe as veias. — … É meu…!
Energia em massivas quantidades foram acrescidas à alta moça e a descarga de adrenalina levou as pernas a estremecerem; tudo vinha a ela, tornando-se parte integral de sua própria carne.
— Então essa é a sua força…? Pode garantir que eu vou usar bem…!
Aplicou um terceiro chute na base das costelas, atingindo o exato centro, e sem deixar um segundo a mais passar, usou da mesma força para segurá-lo pelo pescoço.
— Eu nem imaginei que fosse dar tanto trabalho assim te derrubar, mas agora, dá para perceber o motivo.
A loira o suspendeu com facilidade, sofrendo igualmente pouco para mantê-lo na posição. Para ela, era uma pena que ele não pudesse reagir, mas a intenção parecia servir o bastante.
— Tu é mesmo uma coisa e tanto, hein? Mesmo tomando força de tanta gente, tu ainda me arrancou um dente… Seu merda…! — finalizou com um soco.
O golpe manchou-a do sangue já parcialmente coagulado e, sem paciência para o planejado, o soltou de volta com um baque descuidado, rindo de forma mais profunda.
— Eu tive que roubar força de vinte pessoas para ter a segurança de vir aqui e dar minha carinha à tapa, com medo de você me trucidar, como sempre…
Em meio à profunda amargura de tal fala, uma suave brisa fez esvoaçarem os vários fios de cabelo ao longo do braço, adicionados de mais um; tal era o poder despertado por Samantha Wilson.
— No fundo do meu desespero, quando eu já não tinha mais nada pelo que continuar vivendo, isso veio e me arrancou daquele sofrimento, me dando aquilo que eu mais precisava para fazer você e todos esses bastardos pagarem…
O aumento do brilho azulado nos olhos veio em confluência com a exacerbação da euforia. As energias de Mark viam o perigo do fim depressa, drenadas como a água desce por um ralo.
— … E me deu justo a capacidade de aplicar a vingança pelo mesmo método injusto que usaram comigo…! — sorriu, mas entre os lábios e dentes, notou-se profunda dor. — Agora é a sua vez de pagar…! Te vejo no inferno, Mark…!
Apertou as mãos com força e o fluxo de glicose a invadiu; de repente, a força muscular sofreu picos e o ajuste em cada fibra pulsátil propagou ondas de pura satisfação por cada centímetro.
— Eu vou usar isso…! Muito melhor do que você nunca soube usar…! — Os delírios traziam luz à mente, ao mesmo tempo que a remodelaram. — … E no fim… No fim…!
Plantou o sapato no centro do peito do rapaz. Com tal força, matá-lo com um golpe seria uma tarefa simples, tal qual esmagar uma noz, então ela se preparou, focando a força no calcanhar e…
CRACK!
— … Me diga, minha digníssima Samantha Wilson…
Dor — repudiante, nauseante e crítica — invadiu os sentidos da jovem mulher, tomada de supetão pela origem tão absurda e imprevista do barulho captado.
— Em que ponto do nosso pequeno acordo ficou específico que você poderia matar Mark Menotte quanto bem desejasse? Se não me engano, não foi dessa forma que conversamos…!
Ela precisava gritar, mas algo muito maior a impedia, formando uma rolha imaginária nas cordas vocais, se estendendo para roubar o controle do corpo inteiro.
— Hehehehehe! — A risada tóxica reverberou até o fundo da alma. — Oi, oi! Sentiu falta de mim, Samzinha?! Não acredito que tentou pegar a diversão todinha só para você! É errado ser egoísta assim, sabia? Não é desse jeito que se brinca…!
Se permitiu esquecer das condições que a removeram das grades, em meio a tanto ódio, afinal, reencontrar alguém que jurou exterminar com tanta paixão não é algo que acontece todo dia.
“Eu… não consigo… respirar…!”
Porém, os termos do contrato sempre foram claros e os responsáveis por propô-lo fariam a mais absoluta questão de fazê-los válidos.
— Suponho que lembre bem do que eu disse, logo assim que te visitamos naquela pocilga… e aqui estava eu, imaginando, tão fielmente, que você seguiria uma regra tão, mas tão básica…
O contato frio da lâmina contra a pele fina do pescoço acelerou os ciclos respiratórios e, tão logo, começou a transpirar litros… Caso pudesse falar, sem dúvidas iria preferir ter o outro punho quebrado.
— Acho que estou me sentindo caridoso o suficiente para deixar essa passar, afinal, qual recruta não acaba cometendo um erro ou outro no decorrer do treinamento, certo? — abriu os dedos, livrando a torta massa óssea. — Hoje, vai sair com a mão esquerda quebrada, mas que isso não se repita, certo?
Caiu de joelhos, suprimindo os mais terríveis gritos de agonia. Jogar pelas regras deles jamais foi uma opção e a brutalidade dos métodos evidenciava o tipo de negócio com o qual se envolveu.
— Ouviu, Samzinha?! Hoje, a gente vai te deixar ir, porque somos os seus melhores amigos e ótimas pessoas! Mas é bom aprender com os erros, viu?! Nada de ficar sendo malcriada assim…!
Engoliu as próximas palavras para tão fundo quanto pudessem ser mandadas e a dor em cada osso da mão sequer se equiparava ao nojo de receber um abraço de alguém tão maníaco.
— Ooh…! Vamos lá, Samzinha! Se anime…! — A mulher de cabelos rosados atirou-se sobre ela, envolvendo-a pelos ombros. — Foi só uma correçãozinha, mas nós não te odiamos! Agora que sabe brincar pelas regras, podemos ser amigas do jeito certo, então, que tal a gente tomar chazinho com bolo assim que sairmos daqui?!
“Larga de mim… sua psicopata…” manteve na mente, prendendo os lábios por medo de falar.
— Sabe, eu consegui uma casa de bonecas nova e a gente pode brincar juntas qualquer dia desses…! — bateu algumas vezes nas costas da fugitiva, rindo aos quatro ventos.
— Se cure disso, mande esses ferimentos para algum desses pobres bastardos que selecionou, mas que o aviso fique claro — O rapaz repetiu, cruzando os braços e dando as costas para Mark. — Vamos embora. Muito tempo já foi desperdiçado aqui e alguns sujeitos grandes estão chegando. Não queremos bagunçar demais a cena.
O tom de sugestão caiu mais pesado que qualquer ordem e antes de perceber, o puro medo a levou a cegamente obedecer.
— E antes que pergunte…
A frase afundou o coração, parando os passos já lentos e afogando o espírito desmoralizado em águas gélidas.
— Mark é um ator importante e por isso não podemos matá-lo no momento; caso essas não fossem as condições, a deixaria livre para fazer o que quiser, mas não se preocupe! Outras oportunidades de acabar com a vida dele surgirão, e convenhamos que…
O único olho azul por trás da enorme franja e relembrou do terror absoluto das capacidades de tal indivíduo e, principalmente, do fato de não haver escapatória.
— … Matar ele assim seria pouco demais…! — sorriu, dando de ombros. — Não acha que ele merece sofrer mais por tudo o que te fez passar? Acabar assim seria, no mínimo, um anticlímax dos grandes…!
Não se esforçou em fazê-la sentir-se melhor de verdade. Tal indivíduo só se importava com a própria agenda e agora que se envolveu, teria de se adequar.
— … Eu… certo… — concordou, ciente de ser isso, ou pagar com a vida.
— Ótimo! — comemorou, com gestos artificiais e repletos de maneirismos. — Agora, vamos! Temos muito trabalho para fazer e algumas peças dessa grande engrenagem precisam ser postas em movimento! E uma vez concluído, nosso serviço há de desabrochar em algo lindo…!
— Poxa…! Eu nunca entendo metade das suas palavras…! — A segunda se introduziu ao reclamar. — Por que você sempre precisa ficar falando que eu não vou entender?! Às vezes, me passa a sensação de que faz isso porque não gosta de mim…!
— Bem, não é minha culpa se você é tão estúpida a ponto de não compreender a graça e a intrincada relação de todas as coisas.
— Ei…! — A rosada apontou, visivelmente frustrada. — Você me deixou muito triste! Feriu os meus sentimentos…!
— Nesse caso, abandone seus sentimentos.
— Que inteligente…! Digo, isso foi horrível…! Chato! Chato…!
As interações de caráter bobo e infantil escondiam detalhes abomináveis a respeito da real natureza daquelas criaturas.
"Eles são monstros…”
Após vê-los em ação, se convenceu de jamais ter presenciado a verdadeira maldade antes.
As pessoas que conheceu na prisão não chegavam aos pés daqueles três no quesito "crueldade", friamente ágeis em despachar dezenas de pessoas com aqueles poderes estranhos.
Por sinal, onde estaria o terceiro integrante?
Se manchavam de sangue sem cuidado ou pena, em deleite, mediante o sofrimento alheio, abrindo sorrisos largos ao vê-los de cima, infinitamente superiores.
"Eu… não gosto disso…"
Olhou as próprias mãos e roupas, sujas de sangue, percebendo o quanto, em nenhum momento, a profunda sensação de desconforto com o peso de tais atos a deixou.
"Eu não sei se queria…"
Por ordens deles, facilitou um massacre e participou diretamente de outro, tomando vidas cujos fins foram encomendados muito antes.
"Eu… não sou uma assassina, né…?"
As existências escolhidas cessaram por pressão e entre ela ou eles, a escolha de quem morrer só podia ser óbvia.
"Eu só fiz o que me mandaram."
Não foi culpa dela, afinal, onde estava o poder de escolha? A responsabilidade sobre uma ação é guiada pela intenção consciente de realizá-la e a noção das repercussões, logo…
— Minha cara Samantha, não sente nada de diferente na atmosfera desse belo momento?
A linha de pensamento, quebrada pelo súbito chamado, ecoaria pelo espaço inteiro da quadra, caso se fizesse física e em meio ao turbilhão de mil e uma noções, o questionou.
— Do que… você tá falando…?
— Sinta com o seu poder…! Ou se quiser, dá uma olhada atrás de você, embora, se for fazer essa segunda opção, sugiro que faça rápido…
A resposta do enigma aflorou as tumultuosas energias interiores e enfim prestou a devida atenção no vórtex de pura agonia a se formar no centro do estômago.
— Hkkk…! — movida por curiosidade, virou para trás e o que viu a fez congelar.
— Heh…! — cruzando os braços, lançou um sorriso de canto. — Agora isso vai ficar bem divertido…
— … — O cenho quebrado do mero adolescente se organizou para mostrar somente o mais profundo ódio.
— …! — Samantha tentou se segurar mediante a imensurável pressão, mas tal tarefa não podia ser mais impossível. — Bluergh…!
A golfada ácida a fugir pelos espaços dos dedos liberou a agitação interna vinda de meramente notá-lo e frente a tamanha opressão, não viu outra opção senão cortar a conexão.
— Haaak…! — arrancou o fio de cabelo do próprio braço. — … Mark…?!
Ele não deveria estar acordado e muito menos se movendo…
"O que… é isso…?"
O brilho escarlate se intercalava com tons escuros de um fluido espesso a recobrir o corpo que, acumulado em quantidade, gotejava pelas pontas dos dedos.
"Mas que porra… é essa…?"
A substância de consistência gosmenta evaporava poucos segundos após atingir o chão, adicionando peso ao ar a ponto de torná-lo sufocante.
"Isso… só pode ser mais uma ilusão…!"
A suposição a levou a assumir posição de combate com prontidão, atenta a cada pequena pista ambiental potencialmente indicativa da presença dele.
— Mark…! Eu sei que você tá aí…!
A visão acumulada de várias pessoas podia superar as ilusões, alterando sua percepção do ambiente de forma exponencial.
— Se revela, seu merdinha…! Vai fugir?!
Justo por isso passava por tamanho pânico ao ser confrontada com a mesma imagem, segundo após segundo.
— Samzinha…! — De certa distância, a moça vestida de rosa chamou-a pelo nome. — Aí vem ele…!
"Huh…?"
Quase me reflexo, girou o pescoço para a esquerda e ao alinhar do queixo com o resto do corpo, a mente foi absorta, afogada no mais puro vermelho.