Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 98: As Coisas como Sempre Foram

— … E foi mais ou menos por aí que a história toda aconteceu, e depois que eu quase afundei a cara da Julie na mesa, coisa que só não fiz porque não queria forçar o tiozinho da limpeza a limpar aquele reboco todo, eu conheci a Lira e a gente começou essa saga de ninguém… E deixa eu te dizer, foi um negocinho cansativo…!

A calmaria do lugar dava a impressão de que o tempo jamais passaria e no levíssimo calor ameno, ele se deleitava e ver o céu de azul mais puro.

— Mas aí que vem a parte complicada de verdade, hein…! A gente começou a correr por aí que nem um casal de loucos, juntando evidência, conversando com a galera para criar os nossos argumentos… Claro, tiveram aqueles que não quiseram concordar de começo e a gente não podia forçar, então foi uma pena, mas no final? Ah, que resultados…!

Folhas de um verde brilhante e vivo, distante do tom escuro monótono da cidade, formavam agradável sombra sob suas cabeças.

— A gente prendeu ela…! — sorriu, dando um soco no ar. — E quando a polícia levou, a escola inteira respirou aliviada… Bem, só por um tempo, mas pelo menos rolou. Naqueles dias, a gente pôde ter um pouquinho de paz… Ou quer dizer, era isso que eu pensava, porque rolou outro problema aí que vai ser um rolê e tanto para te explicar.

Duas figuras, compartilhando o paraíso na forma de um simples banco de praça, acomodados em um espaço preparado e desprovido de quaisquer interrupções.

— … Naquela hora, bateu em mim a impressão de que eu tinha algo para fazer… uma responsabilidade mesmo, sabe? Tipo colocar o lixo para fora ou encher as garrafas da geladeira… Eu só pensei que não ia dar para ficar calado com relação àquilo que eu vi.

Um canto somente para eles, de aproveitamento, recordação das conversas e, principalmente…

— Mas, no final, não deu em nada. Depois de tanto trabalho, a minha jornada acabou aqui… Eu sei que você deve me achar patético… Não julgo, até porque também me acho.

De reviver as culpas e ressentimentos deixados para trás.

— Até porque, quer dizer… Quem é que vai ficar de boa sabendo que uma saga de vida não foi concluída…?

O suspiro pesado o livrou, por hora, do peso, o levando a cogitar o aceitamento de sua condição, pois, nessa altura do campeonato, já não havia qualquer coisa a ser feita.

— Eu só queria ter feito isso dar certo… Só queria… ter te vingado do jeito certo… Sophia.

Não se sentia merecedor de ter essas mãos, tão gentis, lhe acariciando os cabelos, pois, acima de tudo…

— Eu continuei fraco demais.

Conforme tanto falava, o questionamento incessante quanto aos pensamentos dela o torturava; Sophia detinha de qualquer motivo para estar brava e o ato de estar recebendo cuidados o doía.

— Eu não sabia que esse rolê do caramba de agora ia rolar… Quer dizer… Quem acredita em superpoderes, Sophia…? Superpoderes…! Isso é coisa de louco! Aí, para te ferrar mais, rola uma coincidência do destino, onde seu pior pesadelo acaba virando a versão maligna da Supergirl…! Como é que se ganha disso?!

O papel de palhaço tomou ares propositais e a interação, antes tão fluida, arranhava a garganta por meio das gargalhadas; por dentro, a implorava para parar.

— Aí entrou toda uma galera envolvida nesse meio, virou bagunça, e antes de eu ver, uma nuvem de insetos me pegou, uma vagabunda muda ficou me vigiando igual criança jogando bandeira na quadra, e a maluca chegou para me descer uma sova… Olha só como o meu dia foi legal…!

Não suportava mais continuar rindo e os atos de carinho serviam de golpes contra as grossas paredes tão reforçadas e por mais que quisesse receber alguma reação diferente, esta não viria.

— Me desculpa… Eu só… Me desculpa…

Porque a dona daquelas não forneceria outra coisa senão carinho.

— Tá tudo bem, Mark — partiu os lábios e disse, na voz mais suave. — Tá tudo bem.

— Sophia, eu…!

— Shhh… — O interrompeu, fechando a boca do rapaz com o indicador. — Eu disse que tá tudo bem.

Devagar, inclinou o tronco para frente, até ser capturada em pleno pelo campo visual verticalizado do Menotte e por um segundo, parou de acariciar os fios negros, sorrindo de modo tímido.

— Mark, você sempre foi demais para mim… Sabe disso, né?

Os óculos redondos, o rosto cheio de sardas e as várias demais características, unidas do jeito certo para classificá-la do modo mais fofo… Sequer podia começar no quanto sentiu falta de tal imagem.

— Huh?! Mas o que você quer dizer? Eu tô literalmente te dizendo que falhei…! A Samantha me deu uma bica que me mandou para marte e agora…!

— Não é disso que eu tô falando, bobinho! — Outra vez, o cortou. — Entenderia se me deixasse falar um pouco…!

A farpa neutralizou a atitude forçada, deixando mais contido de forma espontânea.

— Ah, foi mal… — virou o rosto para a esquerda. — Pode ir falando, então…

— Não…! — Com gentileza, segurou as laterais da cabeça do jovem. — Primeiro, você olha para mim!

O encontro dos olhares revelou o que ela temia, mostrando a inversão de necessidades, pois, agora, seu herói precisava ser salvo.

— Você sempre se cobra demais, né? E isso é desde que éramos crianças, Mark.

— Me cobro?! Não, não, não! Eu só…!

— Shhh! Nada de falar enquanto eu não terminar! Doei o tempo para te escutar falar sobre aquilo tudo, agora você me dá o tempo para falar o que eu acho sobre as coisas que me disse…!

O modo como foi dito soou nostálgico.

— Heh… — Mesmo de canto, mostrou dentes em sorriso. — Por que isso é tão a sua cara…?

— De qualquer forma, deixa eu continuar…! — apontou para cima, encarnando uma professora. — Desde quando a gente se conheceu, percebi que você é esse cara esforçado para colocar uma marca no mundo, e isso não é uma coisa ruim…! Muitíssimo pelo contrário!

Cada palavra criava pequenos sorrisos reflexos nos lábios dele… Então esse é o poder de se relembrar de momentos tão bons? É assim, tão profundamente, que se vive a falta de alguém querido?

— Você sempre foi além pelo que queria fazer e nunca deixou te dizerem que não conseguiria; quando as pessoas precisavam, se colocava no caminho delas e fazia o seu melhor para fazer acontecer, e eu sempre te admirei demais por isso.

Suprimiu o riso de escárnio contra si mesmo; o que ela queria, afinal? Pois, na situação atual, tais palavras soavam longe de representar qualquer conforto.

— Eu sei que você passou a sua vida tentando, Mark… até porque fui eu quem estive lá para acompanhar de primeira mão, andando do seu lado… Ou ao menos, era assim que eu achava, até refletir um pouquinho melhor.

Por breves segundos, paralisou no lugar, movendo o foco dele para tomar o calmo ambiente ao redor, em preparação para a avassaladora revelação que ele não teria como negar.

— Eu sempre fiquei atrás de você.

Profundo silêncio cortou o ar, interrompido pelo farfalhar das árvores. Impassível, a menina acompanhou o movimento de algumas folhas como se buscasse as palavras a falar.

— Por esse tempo todo, você limpou o caminho por mim, me protegendo das coisas e dos eventos que pudessem me machucar… Você trilhou um caminho de luz que eu pudesse seguir e por isso sou muito grata, mas…

A pausa desconfortável o levou a pensar… O que ela diria? Que não deveria ter tentado tanto? Que perdeu tempo e a extirpou da possibilidade de crescer sozinha ao enfrentar os próprios problemas?

Seja a coisa que fosse, estaria preparado para ouvir e aceitaria qualquer argumento que apontasse o quanto fazer isso foi excessivo e estúpido, pois merecia ouvir a tal.

— … Só agora eu percebo o quanto você sofreu, carregando o mundo nas costas enquanto não tinha ninguém com quem contar… Eu sinto muito por isso, Mark.

De pronto, as muralhas tão fortificadas cederam diante de algo o qual estava por inteiro despreparado para ouvir.

— Sophia, você sabe que não é assim…! Eu nunca tive problema com isso! Eu…!

— O que eu te falei sobre ficar calado e me deixar falar? Nossa, é um mau-hábito e tanto, viu? — Gentilmente, o estapeou na testa. — Me deixa terminar…!

— Grrr… — frustrado, rosnou, antes de afundar o rosto entre as pernas da garota, brevemente. — Tá, vai…

— Obrigada! E então, como eu dizia… Olha, que tal se eu te der um exemplo prático? Lembra de quando a gente tinha seis anos, quando eu fui atacada pelo cachorro do vizinho da casa da frente no meu aniversário?

Desejou contestar e questioná-la o motivo de trazer coisas tão distantes à tona, mas o conforto ainda vencia a inquietação, o obrigando a mastigar as frases para que jamais viessem ao mundo.

— Aquela coisa ia me matar…! O cachorro era bem maior que eu e começou a me perseguir por todos os lados… De início, ninguém levou a sério, porque achavam que ele queria brincar, mas rapidinho isso mudou quando você entrou em cena…

Ele não compreendia a razão por trás de desenterrar tal memória e se revirava no banco, caçando o melhor ponto da coxa esquerda para apoiar a cabeça, sem muito sucesso.

— Você foi o único que percebeu a má-vontade daquele monstro felpudo e invadiu a cena bravamente para impedi-lo, quando os adultos teoricamente responsáveis só riam e diziam para corresponder a brincadeira… Eu lembro do tamanho da mordida no seu braço, e só então eles notaram não se tratar de algo amistoso.

Reflexivo, coçou o braço esquerdo, dedilhando o trajeto das marcas já inexistentes, apagadas pelo tempo.

— Aquele sangramento foi horrível e eu lembro de ter chorado muito de preocupação, enquanto os adultos se esforçavam para conter aquela coisa e levar ela para longe de você… Me lembro de olhar com pânico, mas, mesmo sangrando tanto, você só sorriu para mim e me assegurou de que estava bem…

Os dedos finos e suaves alcançaram o ponto mais profundo no escalpo do jovem pálido e a sensação de ter a própria alma acariciada o preencheu de tranquilidade.

— Nunca pude fazer nada igual por você antes, então, por favor, não me rouba esse momento, tá bom? — riu de canto, antecipando uma possível interrupção. — Eu sei o que você vai dizer: que nada disso é necessário, que tá feliz só com a minha companhia e etc, mas… tenho coisas para dizer.

“Vai fundo”, pontuou mentalmente, dando um leve sinal com as sobrancelhas.

— Só tô dizendo que… eu nunca pude mudar por você e até os meus últimos dias, fiquei no lugar da pessoa protegida, te seguindo, andando a sua trilha… E eu não quero que isso mude, Mark.

Algo molhado colidiu com a bochecha dele.

— Então, nessa vez que eu tenho para te ajudar, só quero te dizer para não deixar essa determinação de lado e se focar nas coisas que sempre fez da melhor forma… Parece contraprodutivo falar desse jeito, mas é assim que sempre foi e assim deve ser.

De alguma maneira, ele sequer se assustou.

— O seu tempo não acabou, Mark, então não precisa se segurar mais; desista das barreiras que te restringem e faça o que precisar, porque vai vencer e eu tenho fé nisso.

Nem mesmo teve a curiosidade de perguntar, aceitando de forma tão natural àquela vista grotesca.

— É o que eu iria querer, Mark. Nunca se esqueça disso.

Sophia o confortou pela última vez, mostrando as fileiras de dentes tortos, presos de modo tão frágil ao crânio despedaçado, sem olhos ou nariz distinguíveis, cuja carne, branca e gosmenta, o besuntava por inteiro.

Mark somente aceitou o empurrão que o fez rolar para fora do banco e colidir com o chão, desfeito ao primeiro toque, para revelar um mar de infinitas sombras.

Grato, cedeu pelas trevas infinitas, puxando para baixo sem qualquer resistência opositora, colidindo com o fim invisível, ressurgindo no topo do outro lado.

Dor veio primeiro, avassaladora e de proporções indescritíveis, irradiando do dedo do pé ao mais alto fio de cabelo, unida em um uníssono surdo de natureza constante e aparentemente inexorável.

E outra coisa veio depois, varrendo para longe o sofrimento da carne e se apossando dele com as proporções titânicas do menor fragmento de sua forma, estufando-o de si e o chamando de “seu”.

“...”

Mark Menotte abriu os olhos, atento aos sons sem sentido, vindos de dentro — do fundo do peito — queimando no aterrador poço de ódio feito de sua alma.



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